11.03.10
Ficha limpa versus princípio democrático e presunção de não-culpabilidade
VENÂNCIA MEDINA LOPES
Especial para Os Constitucionalistas
em homenagem ao Dia da Mulher
Na área do Direito Eleitoral, o tópico do momento tem sido a discussão sobre os projetos chamados de “ficha limpa”, com destaque especial para o Projeto de Lei Complementar nº 518/2009, de “iniciativa popular”, que altera a Lei Complementar nº 64/1990 para, entre outras coisas, regular o art. 14, § 9º da Constituição, que prevê inelegibilidade por falta de idoneidade e moralidade aferida na vida pregressa de candidatos a cargos eletivos. Entretanto, se todos nós entendemos e até nos orgulhamos dessa manifestação popular de força, organização e defesa da moralidade, ao mesmo tempo devemos ter os pés no chão e a mente voltada para os perigos que a realização dessas propostas apresenta.
No século passado, vivemos, ao todo, mais de três décadas sob a sombra de Constituições anti-democráticas. A nossa Constituição de 1988 veio inaugurar o período constitucional mais democrático de nossa história. Passamos a um Estado Democrático de Direito do qual a democracia participativa é um dos princípios fundamentais. Foi feito um convite, nessa Constituição, ao povo, para que participasse da atividade legislativa diretamente, entre outros, por meio da “iniciativa popular”.
O projeto de iniciativa popular que recebeu o número 518/2009 foi coordenado pelo Movimento de Combate à Corrupção, organização que integra 43 entidades, entre elas, a CNBB. Com uma divulgação maciça na internet (Facebook, Orkut, Twitter, blogs,…) desde 2007, o projeto conseguiu a “adesão” de aproximadamente 1,3 milhões de eleitores até setembro de 2009. Entretanto, como tantas outras “iniciativas populares” que não foram elaboradas em conformidade com as normas reguladoras deste instrumento, o PLP 518/2009 não prescindiu de “padrinhos”, sendo assinado pelo Deputado Antônio Carlos Biscaia (PT – RJ) e mais 32 outros deputados de diversos partidos.
Na Câmara dos Deputados, o projeto em apreço foi apensado a outros 10 projetos(1) que tratam do mesmo tema (normatização do § 9º do art. 14 da Constituição Federal). Todavia, é interessante notar as semelhanças e diversidades entre eles. Podemos identificar desde projetos com a intenção de limitar as hipóteses de incidência da inelegibilidade (PLP 22/99) até projetos que chegam ao absurdo rigor e despótica subjetividade de condenar à inelegibilidade os que forem réus “contumazes” em processos administrativos de prestação de contas em andamento ou em processos criminais quando o juiz eleitoral demonstrar a indignidade da candidatura por decisão fundamentada, ainda que contra eles jamais tenha pesado qualquer condenação (PLP 519/99). Apesar das peculiaridades de cada projeto, é intenção do Presidente da Câmara que o grupo de trabalho chegue a um consenso para que seja apresentada proposta única neste mês de março. Aparentemente, a tendência é que a proposta que deve ser apresentada pelos deputados ao plenário não se distancie muito do PLP 518/09.
O ponto nevrálgico da discussão sobre a “ficha limpa” é o (des)respeito da garantia fundamental de não-culpabilidade em oposição ao princípio democrático, à vontade do povo de ver “moralizado” o sistema político brasileiro. Dos onze projetos que tramitam em conjunto sobre o tema na Câmara, apenas dois deles(2) mantêm a necessidade do trânsito em julgado de sentença condenatória para afastar a elegibilidade dos cidadãos em razão de sua vida pregressa. Dentre os nove restantes, seis(3), admitem menos ainda que uma sentença (citação por edital em juízo penal por falta de domicílio civil conhecido, denúncia recebida em qualquer juízo penal, apresentação de representação, entre outros) para declarar-se a inelegibilidade de um candidato.
É compreensível, e mesmo louvável, a preocupação de nos fazermos representar por pessoas idôneas. Mas seria, de fato, democrático impor tantos limites ao registro de candidaturas? Não seria mais legítimo deixar que o próprio povo, ou, de outra forma dizendo, que cada cidadão defina seus próprios critérios de escolha de seus representantes, cabendo ao Poder Legislativo traçar apenas os limites mínimos da restrição de elegibilidade?
Segundo pesquisa do site Congresso em Foco, divulgada em fevereiro de 2009, em maio de 2008 143 parlamentares (aproximadamente 25% do total do Congresso Nacional) respondiam a 281 processos. O percentual de líderes e integrantes das mesas réus em processos penais era ainda maior: aproximadamente 29%. Se fôssemos levar em conta as demais hipóteses de inelegibilidade que se apresentam nos projetos de lei complementar hora na Câmara, que nem consideram necessário haver contra o candidato processo em curso para que seja considerado inelegível, certamente o número de potenciais inelegíveis já em exercício seria bem maior. Se o povo tivesse tido acesso a esses dados, será que necessariamente teria escolhido diferentemente seus representantes?
E se admitíssemos ser democrática a norma que desrespeita o princípio de não-culpabilidade porque atenderia aos anseios do povo, estaria ela considerando a supremacia da Constituição, os fundamentos mesmos do Estado de Direito? Não estaríamos, assim, nos aproximando deveras de uma “ditadura da maioria”, de um estado de total violação aos direitos individuais?
Historicamente, o motivo do surgimento das Constituições foi a proteção do indivíduo e de seus direitos fundamentais contra o Estado. Para que a liberdade seja mantida, não só é fundamental a proteção das garantias individuais contra o Estado como também a proteção das minorias em face de “abusos democráticos”(4). A garantia de presunção de não-culpabilidade é inseparável do conceito de democracia pelo menos desde a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (século XVIII). Nossa Constituição, no artigo 5º, inc. LVII, estabelece uma das mais caras garantias dos indivíduos contra o despotismo: que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, fixando explicitamente o princípio da presunção de não-culpabilidade entre os direitos fundamentais. Assim, todas as normas infra-constitucionais e mesmo o poder de reforma da Constituição estão sujeitos ao respeito dessa garantia fundamental.
Ainda que o legislador ordinário ou reformador tenha a tarefa constitucional de restringir certos direitos, está obrigado a resguardar o núcleo essencial dos direitos fundamentais(5). Assim, já nos diz textualmente a Constituição Federal, em seu art. 60, § 4º, que é vedada a apresentação de qualquer proposta de emenda tendente a abolir direitos e garantias individuais. No caso em questão, para que se estabeleçam critérios de aferição da moralidade e idoneidade da vida pregressa de um candidato, a lei complementar deve respeitar os limites impostos pela Lei Maior.
Em nossa história jurídica recente, já tivemos lei que muito se assemelha à maioria das propostas referentes à vida pregressa dos candidatos hoje em estudo pela Câmara dos Deputados:
Art. 1º, inciso I, letra ‘n’, da Lei Complementar nº 5/70:
“Art. 1º – São inelegíveis:
I – para qualquer cargo eletivo:
……………………………………………
n) os que tenham sido condenados ou respondam a processo judicial, instaurado por denúncia do Ministério Público recebida pela autoridade judiciária competente, por crime contra a segurança nacional e a ordem política e social, a economia popular, a fé pública e a administração pública, o patrimônio ou pelo delito previsto no art. 22 desta Lei Complementar, enquanto não absolvidos ou penalmente reabilitados;”
É mister notar o período em que vigorou essa lei: 1970 a 1982, ou seja, pleno período de ditadura, de restrição de direitos, de abusos do Estado, de desrespeito aos direitos fundamentais. Não por acaso, à medida em que a ditadura foi se enfraquecendo e a democracia tomando forma, também foram ganhando força os direitos e garantias fundamentais, entre eles o do indivíduo não se ver privado de seus direitos de cidadão senão após trânsito em julgado de sentença penal condenatória.
Admitir o que preconiza a maioria dos projetos que tratam do tema na Câmara implicaria cominar ao cidadão punição, pena acessória, sem que a pena principal lhe tenha sido imputada. Seria permitir que o juiz de primeiro grau, que nem eleitoral é, pudesse decretar inelegibilidades, tornando ineficaz uma eventual decisão contrária ao final de processo, afastando definitivamente da vida política o cidadão idôneo. Agrava-se o cenário se considerarmos que nos referidos projetos de lei complementar a inelegibilidade só é afastada após o trânsito em julgado de sentença absolvitória, o que diante da morosidade de nossa Justiça e nosso sistema recursal, poderia demorar mais de uma década. Ou seja, se admitirmos que esse tipo de proposta venha fazer parte de nosso ordenamento jurídico, estaremos também admitindo a legitimidade de um cidadão não-culpado ter seus direitos políticos restringidos por vários anos sem que nada devesse à sociedade, em nome da dita “moralidade”.
Imaginamos que novos critérios para se aferir a moralidade e idoneidade da vida pregressa de nossos candidatos possam e devam ser estabelecidos. Acreditamos também que, uma vez estabelecidos critérios mínimos e constitucionalmente legítimos de limitação dos direitos políticos passivos, o povo é capaz de escolher seus representantes sem que haja desnecessária redução do espectro de possíveis candidatos. Para isso, uma eventual divulgação, pela Justiça Eleitoral, da vida pregressa dos candidatos, seja no que concerne a processos judiciais, seja no que concerne a processos administrativos, seria instrumento útil para que o eleitor pudesse, por si, decidir o que lhe parece imoral ou inidôneo sem, contudo, afastar de pronto candidatos presumidos inocentes. Ainda aqui, seria necessária extrema cautela na formulação dos meios para que o direito à informação dos eleitores fosse exercido em equilíbrio com os demais direitos fundamentais.
Para fortalecimento de nosso Estado Democrático de Direito, conquistado após décadas de sacrifício dos direitos fundamentais de inúmeros cidadãos, acreditamos que as garantias constitucionais devem prevalecer. Com isso, deve preponderar a presunção de não-culpabilidade até o trânsito em julgado de sentença condenatória. Esperamos que nossos representantes possam perceber a tempo as implicações do desrespeito ao princípio da não-culpabilidade, as consequências desastrosas que tal desrespeito provocaria no Estado Democrático de Direito brasileiro. Todavia, se sensibilidade não tiverem para tanto, confiamos que o Supremo Tribunal Federal, como guardião maior de nossa Constituição, não se afastará de seu dever de declarar a inconstitucionalidade de norma que viole tão preciosa garantia fundamental.
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VENÂNCIA MEDINA LOPES é bacharel em Direito pela Universidade de Brasília (UnB) e pós-graduanda em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP).
Notas:
(1) 168/93, PLP 22/99, PLP 35/03, PLP 203/04, PLP 404/08, PLP 446/09, PLP 487/09, PLP 499/09, PLP 518/09, PLP 519/09, PLP 544/09.
(2) PLP 22/99 e PLP 544/09.
(3) PLP 35/03, PLP 203/04, PLP 499/09, PLP 518/09, PLP 519/09.
(4) ALDÉS, Roberto Blanco. El valor de La Constituición. Madrid, 1998, p.116-117.
(5) BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. In: MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 4 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 279.
Sou cidadão brasileiro, jamais filiado a nenhum partido politico, formado em Educação Física pela Univesidade Federal de Santa Catarina, atualmente resido em Dublin, Irlanda. Venho umildemente apresentar minha opinião após leitura do artigo redigido pela Sra.VENÂNCIA MEDINA LOPES, acredito que pessoas como vc deveriam deixar seus estofadas poltronas em seus modernos escritórios e caminhar por ruas de periferia das cidades brasileiras para que consiga ver a verdadeira realidade do povo brasileiro, e com isso reformular seu discurso democrático em favor da verdade. Pois em minha opinião, acreditar que restringir alguns politicos corruptos de participar em futuras eleições é ir contra o direito democrático, é negar o direito de justiça tão regresso em nosso Brasil. Aliás a justiça no Brasil é uma vergonha, e acredito que por suas palavras não esteja continuará assim por muito tempo ainda…
O projeto 518/2009 é tão democrático quanto a lei que proíbe um candidato a cargo na Polícia Federal de tomar posse caso ele esteja, além de outras coisas, com o nome sujo no SPC, SERASA, cartórios, …
Por que um candidato a policial tem que ter a ficha limpa e um representante do povo não?
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Se o nosso país tivesse Políticos que praticassem política, concordaria com a nobre advogada, que deveríamos aguardar o tramitado e o julgado, afinal nossa constituição garante a qualquer cidadão o direito de ser inocente!! mas infelismente não temos política temos políticagem instalada legalmente nos tres poderes deste pais.
POLÌTICA é a arte de administrar o que é Público.
POLÌTICO é aquele que pré dipõe fazer Política.
POLITICAGEM é a arte de usar a Política, e
POLITIUEIROS são aqueles que praticam a Politicagem.
Não sou filiado a nehum partido político, sou apenas um cidadão que Vê todos os dias seus direitos constitucionais básicos transgredidos sem nada que os tres poderes façam para que se cumpram!!
A conciência política só virá quando esta se tornar matéria escolar obrigatória até o fim do segundo grau… daí para frente o carater do cidadão estára formatado para obem ou para o mal!!
olá caros amigos!
É com prestimosa estima que vejo o artigo da Dra. Vênancia Medina..Concordo em muito com seu artigo que muito contribuiu para a minha formaçao tanto crítica quanto política.
Sou acadêmico de Direito e procuro sempre contribuições como esta que ora torna-se pública devido à sua esmerada vontade de ampliar a discussão em torno desse projeto de lei que tanto tem causado polêmicas.
Um abraço
Ótimo texto.
Sinceramente, entendo que o TSE está altamente equivocado. Uma lei feita em um ano não deve ser aplicada no mesmo (Art. 16, CF).
Por outro lado, em se tratando de uma pena, então, pior: pois a lei não pode retroagir para prejudicar. Andou mal a corte maior do eleitoral.
Não deve o TSE tornar-se orgão paladino da moral, até porque moral e direito guardam distância significativas, e, por outro lado, o que se vive é um Estado de Direito, e não um Estado de Moral.
O precedente que o TSE promove é perigosíssimo.