28.09.10

Ficha Limpa no STF: empatou, desistiram e agora?

RODRIGO FRANCELINO ALVES

“Juízes independentes não temem tomar decisões impopulares”

Eros Grau, ministro aposentado do STF

Após grande expectativa, começou o julgamento que seria um marco para jurisdição constitucional brasileira. Na quarta-feira, dia 22 de setembro de 2010, precisamente às 14h53m, os ministros adentraram no Plenário do Supremo Tribunal Federal para julgar se a Lei da Ficha Limpa afrontava ou não a Constituição. O processo escolhido como representativo da controvérsia foi o RE 630.147, tendo como recorrente Joaquim Roriz, então candidato ao governo do Distrito Federal.

O tema da Lei da Ficha Limpa logo despertou interesse no mundo acadêmico. O blog Os Constitucionalistas publicou vários textos sobre o tema (clique aqui). O primeiro deles foi publicado exatamente no dia seguinte ao protocolo do projeto de lei no Congresso Nacional (clique aqui).

A lei de iniciativa popular contava, e ainda conta, com o apoio da opinião pública e da opinião publicada. Nunca antes na história da Suprema Corte brasileira um julgamento foi tão aguardado. A pressão sobre o Poder Judiciário era enorme. Inúmeros populares se instalaram na porta do Supremo Tribunal Federal. Várias entidades da sociedade civil organizada se manifestaram em defesa da constitucionalidade da lei e de sua aplicação imediata.

Diante de todo espetáculo criado em torno do julgamento, estudiosos do Direito Constitucional afirmavam que o julgamento deveria ser sobre constitucionalidade e aplicação da lei nas eleições de 2010, e não sobre impugnação do candidato. Estaria em julgamento apenas a tese, a questão constitucional, e não a vida pregressa daquele candidato que levou o primeiro caso do Supremo Tribunal Federal.

Mas o voto do relator surpreendeu a todos. O ministro Ayres Britto, ao votar pelo desprovimento do recurso, citou no seu voto trechos das conversas telefônicas constantes do inquérito policial instaurado contra o recorrente, o mesmo inquérito que, em 2007, levou Joaquim Roriz a renunciar o mandato de senador.

O recurso extraordinário tinha como objetivo declarar a lei inconstitucional, resguardando o princípio da irretroatividade das leis, especialmente o da anualidade da lei eleitoral. Era uma discussão puramente jurídica, de índole constitucional. Não se tratava de uma instância ordinária de revisão do julgamento do TSE, menos ainda de julgar o candidato pelos fatos que motivaram a sua renúncia. Então, para que ler trechos de interceptação telefônica? Seria para acalentar a iniciativa popular?

Os fatos eram para reforçar a tese da constitucionalidade da lei? No plano jurídico, se tratando da jurisdição constitucional, não deveriam. Tanto que durante o julgamento nenhum outro ministro fez remissão a tais fatos.

O ministro Ayres Britto continuou o seu voto afirmando que a Lei da Ficha Limpa não introduziu elemento surpresa na eleição, afastando a incidência do art.16 da Constituição, que prevê o princípio da anualidade da lei alteradora do processo eleitoral.

Após o voto do relator, o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Cezar Peluso, suscitou uma questão de ordem para que o tribunal discutisse, ainda que ex officio, a questão da inconstitucionalidade formal da lei. É que houve alteração do texto do projeto lei no Senado Federal, com a alteração do tempo verbal nas causas de inelegibilidade. De logo, Peluso antecipou a sua posição sobre o tema: “É o caso de um arremedo de lei”, sustentando a ofensa ao art. 65 da Constituição, arrematando que: “A lei não pode ser feita de qualquer jeito”.

A questão de ordem causou enorme debate no Plenário, pois envolvia a possibilidade de discussão de tema não versado na causa de pedir do recurso extraordinário. O presidente arvorou-se no precedente AgRSE 5206, relator ministro Sepúlveda Pertence, que admitia a causa de pedir aberta do recurso extraordinário, isto é, posto o recurso em julgamento, era possível ao Supremo Tribunal Federal discutir as questões constitucionais não suscitadas pelas partes.

Inconformado, o ministro Ayres Brito respondeu ironicamente: “Isso é um salto triplo carpado hermenêutico”. Foi o suficiente para o ministro Cezar Peluso retrucar: “Isso é muito bonito do ponto de vista publicitário, mas não do ponto de vista jurídico”. A temperatura subiu no Plenário, como todos falando ao mesmo tempo. O ministro Dias Toffoli, que seria o próximo a votar, acabou pedindo vista.

Na quinta-feira (23/9), antes mesmo do voto-vista do ministro Dias Toffoli, o ministro Marco Aurélio iniciou a sessão afirmando que a Lei da Ficha Limpa merecia aplausos, mas que se deve pagar o preço de vivermos em um Estado Democrático de Direito. Sobre a questão de ordem, sustentou que uma vez conhecido o recurso extraordinário, estariam devolvidas ao Tribunal todas as possíveis questões constitucionais, mesmo que não arguidas, por se tratar de recurso cuja causa de pedir é aberta para o STF. Reafirmou o precedente do AgRSE 5206.

Antes mesmo da manifestação do relator sobre a questão de ordem, foi então dada a palavra ao ministro Dias Toffoli, que votou pela rejeição da questão de ordem. Ainda que fosse admitida, não seria o caso de declarar a inconstitucionalidade formal da LC 135/10. Em seu voto, não verificou a inconstitucionalidade material, afastando assim o argumento da irretroatividade, ao fundamento de que as causas de inelegibilidade são verificadas na data do registro de candidatura para cada eleição, ainda que baseadas em fatos pretéritos. Entretanto, o ministro Toffoli abriu divergência para afirmar que a Lei da Ficha Limpa só se aplicaria nas eleições de 2012, incidindo no caso o principio da anualidade previsto no art. 16 da Constituição.

Por opção do ministro Cezar Peluso, Presidente, o julgamento prosseguiu sem que se votassem separadamente cada uma das questões prejudiciais, procedimento que dificultaria a proclamação do resultado final.

Após o voto-vista do ministro Dias Toffoli, votou a ministra Cármen Lúcia, que acompanhou integralmente o voto do relator, o ministro Ayres Britto. Para afastar a incidência do art. 16 da Constituição, seu voto fez ampla colação de todos os precedentes do Supremo Tribunal Federal sobre o art. 16 da Constituição, a começar pelo RE 129.392 que permitiu a aplicação da LC 64, de 1990, já para as eleições realizadas naquele mesmo ano. Entretanto, o voto não tratou da ADI 3685, precedente mais recente que afastou das eleições 2006 a aplicação da EC n° 52/2006.

Este era o ponto nodal do debate em torno do art. 16 da Constituição. Como permitir a aplicação da LC 135/2010 nas eleições 2010 sem contradizer o precedente da ADI 3685? Esse ponto não foi enfrentado pela ministra Cármen Lúcia, que, ressalte-se, não participou do julgamento da ADI 3685.

Na sequência votaria o ministro Ricardo Lewandowski, mas o ministro Joaquim Barbosa pediu para antecipar o seu voto. Dele, merece destaque o seguinte trecho: “Creio que essa marca distintiva da LC 135 (iniciativa popular) por si só já deve constituir um norte interpretativo importante a guiar a análise do presente recurso extraordinário”. Estava finalmente sendo ressuscitado um fundamento utilizado pelo Tribunal Superior Eleitoral, de que a iniciativa popular, o amplo apoio do povo, seria marcante na análise da constitucionalidade da lei. Mais adiante esse fundamento seria fortemente contestado pelos ministros Gilmar Mendes, Marco Aurélio e Cezar Peluso.

A divergência inaugurada pelo ministro Dias Toffoli foi reforçada com o voto do ministro Gilmar Mendes, que não apenas afirmou a incidência do art. 16 da Constituição como afastou a possibilidade da Lei da Ficha Limpa apanhar fatos do passado para fins de inelegibilidade. Esse mesmo posicionamento foi seguido pelos ministros Marco Aurélio, Celso de Mello e Cezar Peluso. O voto do ministro Celso de Mello divergiu apenas no tocante ao acolhimento da questão de ordem.

Assim, quanto aos vários capítulos do recurso, e também quanto à questão de ordem, formou-se maioria contrária ao provimento do recurso, contabilizando-se votos suficientes à declaração de constitucionalidade da alínea “k” do art. 1°, I da LC n° 135/10 – ressalte-se que não estavam em jogo as demais disposições da lei, dentre elas as outras causas de inelegibilidade e a previsão de mandatos sub judice (art. 26-C acrescido à LC 64/90). Mas quanto à incidência do princípio da anualidade, que afastaria a incidência da LC n° 135/10 para as eleições de 2010, o resultado foi um empate: cinco ministro a favor, cinco contra. Nas palavras do ministro Peluso: “um impasse”.

Estando o Supremo Tribunal Federal desfalcado de um ministro, desde a aposentadoria do ministro Eros Grau, e não tendo sido sequer iniciado o processo de nomeação do novo ministro, como resolver a questão?

O Ministro Ricardo Lewandowski sugeriu a aplicação do art. 146 do Regimento Interno do STF, que indica no caso de empate que prevaleça a tese contrária à pretensão recursal. Ou seja, o recurso seria desprovido, prevalecendo a decisão do TSE, que dava pela aplicação da LC n° 135/10 já para as eleições de 2010. Também se argumentou que o empate não poderia prevalecer a pretensão recursal porquanto o art. 97 da Constituição exige maioria absoluta para a declaração de inconstitucionalidade de lei.

Contudo, outros ministros, como Gilmar Mendes e Marco Aurélio, indicaram que outro dispositivo do Regimento Interno do STF, o art. 13, IX, concedia ao presidente da Corte o voto de qualidade. Assim, empatado o julgamento, prevaleceria o voto do ministro Cezar Peluso, que era exatamente pelo provimento do recurso para afastar a aplicação da LC 135/10 nas eleições 2010.

Para sustentar a não incidência do art. 97 da Constituição, que estabelece a cláusula de reserva de plenário, sustentou-se que a incidência ao caso do art. 16 da Constituição, que prevê o princípio da anualidade, não pressupõe a declaração de inconstitucionalidade da LC 135/10. Exatamente o contrário, porque o art. 5° da mencionada norma em nada ofende o texto constitucional quando determina a sua vigência a partir da publicação, sem tratar do plano da aplicação.

O mencionado art. 13, IX, “b” do Regimento Interno do STF determina que é atribuição do Presidente “proferir voto de qualidade nas decisões do Plenário, para as quais o Regimento Interno não preveja solução diversa, quando o empate na votação decorra de ausência de Ministro em virtude de: (…) vaga ou licença médica superior a trinta dias, quando seja urgente a matéria e não se possa convocar o ministro licenciado”.

O ministro Dias Toffoli ponderou que seria recomendável aguardar a nomeação do novo ministro para o STF, que assumiria já com a incumbência de desempatar o julgamento.

A controvérsia esquentou ainda mais o clima, e os debates foram intensos. Já era madrugada de sexta-feira (24/9) e o Supremo Tribunal Federal viu-se diante de um impasse: como proclamar o resultado de julgamento que terminou empatado? Pior que isso, a decisão a ser tomada naquele recurso, em razão da repercussão geral, valeria, e valerá para outros processos.

Após afirmar que não tinha vocação para déspota, e que seu voto não valia mais que o dos outros ministros do STF, o ministro Cezar Peluso acabou acolhendo em parte a sugestão do Min. Dias Toffoli e suspendeu a proclamação do resultado do julgamento, adiando o desfecho do caso. E se o novo ministro não fosse nomeado até a diplomação dos eleitos o STF voltaria a debater o tema, para tomar uma decisão sobre a proclamação do resultado.

O julgamento acabou não agradando nem a gregos nem a troianos. Os defensores da Lei da Ficha Limpa ficaram decepcionados pela não-decisão do tribunal, prevalecendo a dúvida sobre a aplicação imediata da lei nestas eleições 2010. Já os que se opunham à lei, também não se conformaram com o resultado. Sustentam que o tribunal deixou-se influenciar pela pressão popular, a despeito do texto constitucional e de seus próprios precedentes. Também não ficou imune a críticas o Min. Cezar Peluso, por não exercer o voto de qualidade, segundo dispõe o art. 13, IX do Regimento Interno do STF.

Resta então a inusitada situação: aguardar a nomeação do novo ministro para o STF, o que só ocorrerá depois das eleições, acaba transferindo o poder de jurisdição constitucional ao presidente da República. Essa circunstância torna a aplicação da lei nestas eleições de 2010 ainda mais casuística.

Quando da formação da lei, coube ao presidente Lula decidir sobre a sua eficácia para este ano, quando poderia protelar a sanção ou a sua publicação no Diário Oficial. Se o fizesse após o início do prazo para convenções partidárias, 10 de junho, a lei não valeria em 2010. E agora, após a sujeição da norma ao exame da Corte Constitucional, cabe ao presidente da República indicar o homem que desempatará o julgamento.

Ninguém duvida que a escolha do décimo-primeiro ministro do Supremo Tribunal Federal recairá em um jurista que concorde com a tese que sirva aos interesses do governante, especialmente quando já se saberá o resultado das urnas e até que ponto a aplicação da LC 135/10 influenciará na diplomação dos eleitos.

É louvável o argumento democrático do ministro Cezar Peluso quando sustentou: “Eu não tenho nenhuma vocação para déspota, nem acho que meu voto vale mais do que qualquer um dos outros ministros”. Todavia, o voto de desempate não é uma faculdade, mas sim um dever, um ônus do cargo que ocupa. O ônus é semelhante ao conferido aos ministros do STF, a quem compete a precípua guarda da Constituição, ainda que o façam contra a vontade da maioria da população.

Não bastassem todas essas controvérsias, na tarde de sexta-feira (24/9) o candidato Joaquim Roriz, então recorrente, renunciou à candidatura e desistiu do recurso perante o STF. Nova discussão: o tribunal deve prosseguir no julgamento do RE 630147 ou tê-lo por prejudicado?

Para defender a primeira opção, sustentam que não havendo mais candidatura o processo perde o objeto, ou mais tecnicamente, não subsiste mais interesse jurídico a ser tutelado. E isso é mais flagrante após a formalização da desistência do recurso, que é direito concedido ao recorrente.

Por outro lado, após a EC n° 45/2004 e a instituição do regime de repercussão geral, o recurso extraordinário aproxima o controle difuso, antes de caráter puramente subjetivo, do controle concentrado, de caráter objetivo. Portanto, uma vez reconhecida a repercussão geral e iniciado o julgamento de mérito, não seria mais lícito ao recorrente desistir do recurso. Ou pelo menos os efeitos dessa desistência não prejudicariam o debate do caso, ainda que a decisão do STF só produza efeitos quanto a outros processos, e não mais em favor do recorrente.

Essa segunda opção tem lógica. Caso o STF entenda possível a desistência de recurso extraordinário com repercussão geral já reconhecida, especialmente quando iniciado o julgamento de mérito, ter-se-á que a jurisdição constitucional está à disposição da parte recorrente.

Imagine, v.g., a situação de bancos, ou mesmo da União Federal, que costumam ter demandas de massa, que veem um de seus recursos ser escolhido para julgamento em Plenário. Quando a votação caminhar pelo desprovimento do recurso, que terá repercussão em centenas ou milhares de outros recursos já interpostos, bastará ao advogado subir a tribuna e desistir do recurso. O Supremo terá perdido tempo e gasto dinheiro em vão. Ter-se-á que destacar outro processo representativo da controvérsia para submetê-lo a julgamento. E este outro processo, em geral, poderá estar sobrestado nas instâncias inferiores, aguardando a posição do STF naquele caso que já estava com repercussão geral reconhecida.

A desistência de recurso com repercussão geral reconhecida e com o julgamento de mérito já iniciado pode repercutir no prosseguimento do julgamento da tese? Penso que não. Apesar da renúncia do candidato Joaquim Roriz ao governo do Distrito Federal e da desistência do recurso, o STF deveria prosseguir no julgamento da questão constitucional já posta sob o seu exame no RE 630.147.

Apesar destes argumentos, cogita-se a possibilidade do Supremo Tribunal Federal mandar o recurso ao arquivo. É lamentável, mas será um bom destino, pois a verdadeira jurisdição constitucional tem vergonha de tamanha indecisão.

__________

RODRIGO FRANCELINO ALVES é advogado e pós-graduando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). É professor de Direito do Consumidor e de Lei Orgânica do DF.



6 Comentários

  1. Israel disse:

    Caro rodrigo,

    Seus comentários são de uma precisão cirúrgica. A parte final, acerca da possibilidade de desistência do recurso, evoca uma situação fática de extrema insegurança jurídica. O STF, pressionado pelo clamor popular, tem se mostrado um tanto “indeciso”. Abraços…

  2. Ricardo Monteiro disse:

    Excelente artigo,

    A melhor sacada foi a “vergonha da jurisdição constitucional”, acho que nem é vergonha, mas vexame.

    O Supremo não pode agradar, mas julgar.

    Parabéns.

  3. Leandro Antunes disse:

    Grande Professor RODRIGO,

    Parabéns pelo artigo!!!!
    Muitos fundamentos teóricos!!!!
    Excelente arcabouço!!!

  4. Robson disse:

    Belíssimo trabalho Dr. Rodrigo. Seu texto resumiu bem o que aconteceu na desastrosa votação da Corte. Como advogado me senti envergonhado pelo que acompanhei, sobretudo pela falta de coerência e impasse para o desfecho do embate.
    Pedindo venia para os que pensam em contrário, mas a solução para o desempate é encontrada no próprio Regimento Interno do STF. Não enfrentar a discussão pelo texto aprovado pela Casa, é colocar em dúvida o rumo da controvérsia, se realmente jurídica ou simplesmente política.

  5. irineu disse:

    Não há o que comentar, só elogiar e aplaudir de pé.

    PARABÉNS..

  6. […] um resultado final: O dia em que o Supremo decidiu não decidir. Intalou-se a controvérsia: “Ficha Limpa no STF: empatou, desistiram e agora?”, foi o questionamento respondido pelo artigo escrito por Rodrigo Francelino Alves, da equipe Os […]