13.05.13
Jane Reis: “O Supremo não é oráculo”
Conversas acadêmicas com Jane Reis
Por Israel Nonato
“PENSAR O SUPREMO como oráculo das melhores respostas”, adverte Jane Reis, “encerra o risco de atrofiar os órgãos representativos, lançando-os em um círculo vicioso de irrelevância”. Juíza federal, doutora em Direito Público e professora adjunta de Direito Constitucional da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Jane Reis é a nova participante do Conversas Acadêmicas, do blog Os Constitucionalistas.
Nesta entrevista por e-mail, Jane Reis afirma que “vivemos um momento de tensão e rivalidade quanto às fronteiras de ação de cada Poder”, referindo-se aos recentes embates entre o Supremo e o Congresso. E é categórica: a PEC 33 ameaça o poder do Supremo Tribunal Federal, que “deixaria de funcionar como órgão contramajoritário, já que seria autorizado o controle plebiscitário da Constituição”.
Para a professora da UERJ, os juízes e tribunais, quando no exercício da jurisdição constitucional, devem atuar com humildade institucional, pois “a atividade de interpretação da Constituição requer um constante exercício dialético, abertura às visões antagônicas e consideração à liberdade de ação do legislador”.
Autora do livro Interpretação constitucional e direitos fundamentais, sua tese de doutorado, Jane Reis considera “arriscado o uso das ideias de sociedade aberta de intérpretes e da noção de representação argumentativa como suportes de defesa do Supremo como espaço democrático privilegiado”.
Quanto às teorias dialógicas, segundo as quais não haveria última palavra em matéria de interpretação constitucional, a nova entrevistada do Conversas Acadêmicas assinala que a metáfora dos diálogos “tem que ser conciliada com a noção de que, em determinados cenários, alguém terá que ter a responsabilidade de dar a última palavra, ainda que como solução de curto ou médio prazo”.
Indagada se o trancamento de projeto de lei, como ocorreu no MS 32033, violaria o princípio da separação dos poderes, Jane Reis suscita uma interessante questão: “considerando um panorama político no qual a oposição é débil, a atuação contramajoritária do Judiciário não se tornaria mais importante do que nos cenários de maior equilíbrio?”
Leia a seguir a entrevista exclusiva de Jane Reis.
Os Constitucionalistas: O Supremo vive hoje uma crise com o Congresso?
Jane Reis: Talvez seja precipitado falar na existência de uma crise. Penso que vivemos um momento de tensão e rivalidade quanto às fronteiras de ação de cada Poder.
A Constituição de 1988 conferiu um papel importantíssimo ao Poder Judiciário. Mas na última década mudanças legislativas, emendas constitucionais e viradas hermenêuticas ampliaram exponencialmente a esfera de atuação e de influência do Supremo Tribunal Federal.
Atualmente, há um certo consenso de que o STF ocupa uma posição de protagonismo e centralidade nas grandes disputas políticas. Essa ascensão do Tribunal gerou efeitos positivos quanto à proteção dos direitos fundamentais. Mas também criou uma arena de atrito com o Legislativo, além de suscitar preocupações quanto à reorganização da geografia do poder causada pela jurisprudência ativista.
O que os recentes embates deixam evidente é a profunda insatisfação de determinados setores do Poder Legislativo com o aumento da relevância política do Supremo. Algumas dessas insatisfações são legítimas – porque ligadas à própria autoestima institucional do Legislativo – enquanto outras estão calcadas no revanchismo e na contrariedade a interesses políticos.
OC: A PEC 33 ameaça o papel contramajoritário do STF?
Jane Reis: Um ponto importante a destacar na discussão sobre a PEC 33/2011 é que a Constituição de 1988 conferiu ao Judiciário o papel de frear reformas ao texto constitucional que agridam os direitos fundamentais, a federação, a separação dos poderes e o voto direto secreto e universal (art. 60, §4º). Estes pontos configuram a identidade básica da Constituição de 1988, aquilo que a Assembleia Constituinte quis tornar inegociável. Desse modo, a pergunta que devemos fazer é: a PEC 33 avança contra essa identidade básica? Estamos dispostos a romper com o compromisso firmado em 1988?
Há uma questão de lealdade ao pacto constitucional que antecede qualquer discussão sobre o redesenho de nosso sistema de jurisdição constitucional. Ressalto essa questão porque há quem aborde o tema apenas sob a ótica do que seria um modelo ideal de interação entre os Poderes. Mas o primeiro ponto aqui em pauta não é esse. Se não queremos romper com a Constituição de 1988, qualquer discussão sobre mudança no design das instituições deve ter como ponto de partida os traços elementares que ela estabeleceu.
Não existe uma fórmula única de separação de poderes. Diversas sociedades em contextos históricos diferentes podem eleger estruturas institucionais distintas. Mas temos uma Carta em vigor e vivemos um cenário de normalidade institucional. O primeiro ângulo de análise dessa reforma não pode ser a conveniência e oportunidade de adotar um controle fraco de constitucionalidade. O ponto inicial a debater é se a PEC 33 viola a essência da Constituição de 1988, se ela desintegra o seu núcleo de identidade.
Adotando uma postura de lealdade ao nosso compromisso constitucional, a disputa não pode ser tratada sob o ângulo da correção política do modelo proposto pela PEC, mas, sim, à luz dos limites impostos pela Carta de 1988 ao poder reformador.
O que precisamos questionar é se as mudanças propostas configuram um desmonte do núcleo essencial do modelo de separação dos poderes estabelecido na Constituição. Devemos lembrar que os parlamentares em atividade não são constituintes, portanto, não podem tudo, e, principalmente, não podem derrubar os limites que o texto originário de 1988 – de onde retiram a legitimidade do poder que exercem – estabelece para haver a reforma da Constituição.
Com essas considerações, respondo a pergunta: a PEC 33 é uma ameaça à função contramajoritária do Judiciário. E nosso texto constitucional originário coloca essa função contramajoritária como um elemento essencial na equação da separação de poderes.
OC: O que mudaria com a PEC 33?
Jane Reis: A PEC 33 contempla três mudanças na arquitetura da jurisdição constitucional: i) a submissão das súmulas vinculantes ao Congresso e aumento do quórum para sua aprovação, ii) o aumento do quórum para declaração de inconstitucionalidade e iii) a submissão ao Congresso das decisões que pronunciam a inconstitucionalidade de emendas.
Quanto às súmulas vinculantes, por terem sido introduzidas pela EC 45/2004, entendo que poderiam ser removidas da Constituição ou ter sua configuração e requisitos alterados. De qualquer modo, torná-las suscetíveis de revogação pelo Congresso – como prevê a proposta – pode gerar uma série de dificuldades e inconsistências. Na eventualidade de a súmula versar sobre a inconstitucionalidade de emenda tendente a abolir cláusula pétrea, seria legítimo que o Congresso a revogasse? Essa faculdade corresponderia à possibilidade de o Parlamento modificar as interpretações da Constituição sumuladas pelo STF? Parece-me que tal modelo não aperfeiçoaria o sistema, mas criaria uma série de zonas de atrito e insegurança jurídica.
As outras duas mudanças propostas na PEC 33 ameaçam inequivocamente o poder contramajoritário do Supremo e, consequentemente, corroem o núcleo de identidade da noção de separação de poderes adotada em 1988.
O quórum de 4/5 para declaração de inconstitucionalidade, por exemplo, é excessivamente elevado, quase correspondendo à unanimidade. A imposição de ônus tão alto ao Judiciário tem o nítido propósito de enfraquecer o sistema de controle. Essa supermaioria também tornaria o processo de nomeação para a Corte mais suscetível a ingerências estratégicas de caráter político, já que o presidente da República poderia com maior facilidade modificar o equilíbrio de forças na Corte. Até mesmo a omissão em indicar ministros – que tem se tornado frequente – poderia interferir facilmente na formação do juízo de inconstitucionalidade. Ou seja, a imposição de uma regra supermajoritária diminuiria substancialmente o insulamento político do Tribunal, fragilizando seu potencial de proteger minorias vulneráveis e de assegurar as regras do jogo democrático.
Não tenho uma posição fundamentalista quanto a esse tema do quórum ideal para a pronúncia de inconstitucionalidade. Creio inclusive que poderia ser debatida, com honestidade de propósitos, a elevação do quórum para evitar a declaração de inconstitucionalidade por maiorias apertadas. Mas estabelecer tal maioria no patamar de 4/5 não parece razoável, já que diminui a performance deliberativa da Corte e reduz drasticamente o seu insulamento político.
A terceira mudança sugerida, de submeter as decisões do Supremo que pronunciem a inconstitucionalidade de emendas a um controle ulterior pelo Congresso e, na hipótese de divergência, a um plebiscito, é a que se choca de forma mais abrangente com o cerne da Constituição de 1988. Essa última mudança abriria a possibilidade de uma ação abrasiva do Parlamento sobre os direitos e princípios alçados à condição de cláusulas pétreas pela constituição originária. Em última análise, equivale ao que os portugueses chamam de tese da dupla revisão: é uma modificação dos limites impostos ao poder reformador para viabilizar uma mudança no núcleo de identidade da constituição. Submeteria as decisões fundamentais postas na Constituição às maiorias eventuais. Isso contradiz diametralmente o modelo constitucional vigente. Seria uma inequívoca ruptura com o pacto constitucional originário. O Supremo deixaria de funcionar como órgão contramajoritário, já que seria autorizado o controle plebiscitário da Constituição. Ainda que o modelo de democracia plebiscitária tenha simpatizantes, a questão é: estamos dispostos a abdicar do entrincheiramento de direitos e princípios promovido pela Carta de 1988 e colocá-los à mercê das maiorias ocasionais?
OC: Suspender a tramitação de projeto de lei, como ocorreu no MS 32033, não significaria também ofensa ao princípio da separação dos poderes?
Jane Reis: Nosso sistema não admite, como regra, o controle judicial das leis ainda em formação. Há, contudo, hipóteses em que a própria Constituição determina que não haja sequer discussão legislativa. O art. 60, § 4º, estabelece que “não será objeto de deliberação” proposta de emenda tendente a abolir cláusulas pétreas. Nessas situações, o STF admite a impetração de mandando de segurança pelo parlamentar, com base em seu direito subjetivo de participar de um processo legislativo hígido.
Interessante observar quanto à referida exceção é que o fundamento da intervenção do Judiciário não é o conteúdo do projeto vir a ser inconstitucional, mas a circunstância de que a Constituição estabelece um impedimento à tramitação da proposição legislativa. Trata-se de uma regra de procedimento que evita a discussão de certos temas.
Além desse fundamento textual, relativo ao que está explícito na Constituição, a impossibilidade de o Judiciário trancar projetos de lei repousa na proteção à independência do Poder Legislativo. Estancar a deliberação parlamentar em estágios preliminares impediria que as disputas políticas seguissem seu curso natural e fossem resolvidas internamente. A possibilidade de bloquear o debate ainda no começo pode tornar o Tribunal a instância principal de solução de embates partidários, deformando o processo político. A judicialização da política deixaria de ser um mecanismo de correção de desvios já concretizados para se tornar uma ferramenta de asfixia dos órgãos de representação.
É certo que o caso do financiamento de novos partidos, pendente de julgamento no STF, tem singularidades. No contexto em que se estabelece uma coalizão política muito abrangente, a movimentação da máquina parlamentar para frear a formação de uma corrente de oposição, por si só, pode gerar distorções importantes. Essa é uma reflexão que se impõe (e para a qual não tenho uma resposta definitiva): considerando um panorama político no qual a oposição é débil, a atuação contramajoritária do Judiciário não se tornaria mais importante do que nos cenários de maior equilíbrio?
De qualquer sorte, não existindo norma que possibilite o controle judicial preventivo de constitucionalidade, a intervenção do Supremo deve se cingir aos casos em que há proibição textual à deliberação parlamentar.
OC: Por que a obsessão no Brasil de discutir quem detém a última palavra em matéria de interpretação constitucional?
Jane Reis: É corriqueiro afirmar, em defesa da autoridade das decisões das cortes constitucionais, que “alguém tem que ter o direito de errar por último”. Esse aforismo, atribuído a Rui Barbosa, tem fundamento em uma necessidade elementar nos Estados de Direito, que é a de evitar que os litígios se perpetuem indefinidamente. A noção de que algum órgão estatal tem que estar investido do poder de tomar a decisão definitiva, ainda que ela não seja perfeita ou ideal, é tributária da ideia de que há um ganho de segunda ordem ao estabelecer um termo final para as disputas institucionais. Mesmo que a decisão tomada não seja a melhor, a definitividade gera um acréscimo de segurança, de estabilidade e de eficiência no funcionamento das instituições.
O problema é que a noção de que cabe ao Judiciário dar a última palavra nas disputas institucionais passou a ser entendida como um atestado de sua supremacia orgânica em matéria de interpretação constitucional. A antiga soberania do Parlamento seria substituída pela supremacia judicial.
Sabemos que a fórmula da separação de poderes, entendida como um ideal regulativo, requer certa simetria de forças entre os órgãos de Estado, de modo que um deles não ocupe uma posição sobranceira em relação aos demais.
Há nesse contexto uma corrente doutrinária que preconiza a substituição da supremacia parlamentar e da supremacia judicial por teorias dialógicas. Segundo essas teorias, não haveria última palavra em matéria de interpretação constitucional, pois qualquer solução seria provisória e passível de revisão a partir das interações e diálogos entre os Poderes.
Seriam exemplos desses diálogos as emendas corretivas de jurisprudência, a reedição de leis já declaradas inconstitucionais e, para alguns, até mesmo as investidas políticas contra as Cortes, como congelamento de remuneração, reformulação da composição e retirada de poderes (como é o caso da PEC 33).
Uma crítica comum feita às teorias dialógicas é de que elas seriam excessivamente otimistas, pois diálogos pressupõem cooperação, e os embates entre os Poderes não costumam ter essa feição colaborativa.
É certo, porém, que a tese dos diálogos tem a virtude de desmistificar o papel do Judiciário, eliminando a fantasia de sua preeminência sobre os outros Poderes. Ela destaca que as soluções constitucionais são construídas, e não verdades absolutas de que os juízes seriam porta-vozes. E ela também coloca em evidência que a autoridade do Judiciário não é ilimitada, que o respeito às suas decisões depende de um equilíbrio de forças por vezes alcançado após sucessivos atritos e rearranjos.
A metáfora dos diálogos, contudo, tem que ser conciliada com a noção de que, em determinados cenários, alguém terá que ter a responsabilidade de dar a última palavra, ainda que como solução de curto ou médio prazo. Há contextos em que se estabelece um conflito entre a necessidade de uma solução ótima e a de uma solução rápida dotada de definitividade. Um exemplo. Toda a discussão em torno da apreciação da validade da apuração dos votos no Estado da Flórida, na eleição presidencial norte-americana em 2000, girou em torno dessa oposição e tensão que se estabelece entre a demanda de correção material e a de estabilidade.
OC: Os juízes e tribunais, no exercício da jurisdição constitucional, possuem a função de ensinar os outros Poderes? Ou o Judiciário deve ser deferente com as interpretações feitas pelo Legislativo e Executivo?
Jane Reis: Uma das críticas ao controle judicial da constitucionalidade das leis é a de que ele encerraria um caráter elitista e aristocrático, já que permite que órgãos não eleitos desconstituam as decisões tomadas pelas maiorias parlamentares. Uma possível resposta a essa crítica é a de que os tribunais – ao controlarem os atos das maiorias que descumprem a Constituição – ampliam as condições estruturais da deliberação democrática, garantindo o cumprimento equânime das regras do jogo e protegendo os direitos das minorias. Outra linha de resposta é a de que certos princípios fundamentais acolhidos na decisão constituinte precisam ser preservados pelo seu valor intrínseco.
A tensão ancestral que opõe democracia majoritária e o constitucionalismo liberal pode ser amenizada a partir do reconhecimento de que o Judiciário, ao velar pelos direitos fundamentais e princípios constitucionais basilares, contribui para o fortalecimento da própria democracia.
Na minha visão, apesar de desempenhar um papel tão relevante, as Cortes devem atuar com humildade institucional. Isso requer levar a sério as visões sobre as questões controvertidas provindas das instâncias de representação tradicional. Entender que o Judiciário desempenha uma função pedagógica em relação aos outros Poderes seria pensá-lo como um oráculo de verdades absolutas, e não como um agente que dispõe das condições institucionais para produzir soluções justas e democráticas para as controvérsias constitucionais.
De modo geral, a atividade de interpretação da Constituição requer um constante exercício dialético, abertura às visões antagônicas e consideração à liberdade de ação do legislador. Nada disso se harmoniza com a noção de que a jurisprudência teria um papel pedagógico.
Essa afirmação não exclui, todavia, o reconhecimento de que há situações em que os tribunais precisam interceder de forma mais ativa e preventiva, como, por exemplo, nas hipóteses em que as decisões majoritárias discriminam ou restringem direitos de minorias e grupos vulneráveis.
OC: Qual é a dose de ativismo judicial que a democracia brasileira tolera?
Jane Reis: Existe um déficit de representação parlamentar que gera um problema complexo e ambivalente. Por um lado, as falhas parlamentares justificam e requerem uma intervenção do Poder Judiciário na tutela dos grupos marginalizados. O julgamento sobre uniões homoafetivas é um exemplo dessa necessidade. De outro, uma preeminência do Judiciário pode frear o amadurecimento das instâncias de representação ortodoxas. O equilíbrio entre o amadurecimento dos órgãos de representação majoritária e a tutela das condições da democracia e dos grupos vulneráveis requer uma fina sintonia.
O ativismo judicial na proteção de grupos fragilizados não só é tolerável como desejável, já que corrige as assimetrias da deliberação democrática. Mas pensar o Supremo Tribunal Federal como oráculo das melhores respostas para todos os casos polêmicos encerra o risco de atrofiar os órgãos representativos, lançando-os em um círculo vicioso de irrelevância.
OC: O STF de ontem é melhor do que o de hoje? Como mensurar a qualidade ou força das decisões proferidas pelas diferentes composições de ministros?
Jane Reis: Todas as composições do Supremo após 1988 tiveram integrantes de destaque no cenário jurídico nacional, ministros que exerceram liderança intelectual no colegiado e fora dele. É difícil avaliar, em termos objetivos, a qualidade e a força das decisões. Eu diria que, ao menos no domínio dos direitos fundamentais, houve uma evolução substancial no desempenho institucional do Supremo na última década. A história da interpretação dos limites e possibilidades do mandado de injunção é representativa desse progresso.
OC: No artigo Retrospectiva Direito Constitucional 2008: A expansão do judiciário e o constitucionalismo cosmopolita, a senhora escreveu que “[a] ideia do Judiciário como representante argumentativo do povo é sedutora, mas comporta riscos”. Que riscos são esses?
Jane Reis: A noção de que o Tribunal é representante argumentativo da sociedade é sedutora porque aparenta resolver, numa composição de palavras, as dificuldades inerentes à tensão entre democracia e constitucionalismo. Mas ela é equívoca porque aproxima artificialmente duas realidades muitos distintas. A noção moderna de representação parlamentar foi viabilizada pelo mandato livre, no qual o representante atua com autonomia, sem vinculação à vontade do representado. Essa ausência de vinculação de vontades é compensada pelo caráter eletivo do mandato e pela sua transitoriedade. A investidura dos juízes não tem origem popular direta, e em nosso sistema também não é transitória, mas vitalícia. Por outro lado, a atuação não é politicamente livre, nem tampouco vinculada à vontade majoritária do povo. Assim, utilizar o termo representante ou representação para referir a relação entre povo e Judiciário desempenha a função semântica de reforçar ou explicitar a ideia de que a atuação do juiz é democraticamente legitimada. Todavia, precisamos questionar se essa função retórica é desejável, já que ela pode servir para avalizar uma expansão artificial do Judiciário.
Há o risco de que esse conceito seja invocado como um fator de legitimação ex ante da ação do Tribunal. Isso não é razoável porque a atuação do Judiciário não se legitima precipuamente pelo processo da investidura, mas pela sua funcionalidade democrática.
Esse é um assunto que merece mais reflexão entre nós, até porque a noção de representação argumentativa já foi invocada nas decisões do STF. Considero arriscado o uso das ideias de sociedade aberta de intérpretes e da noção de representação argumentativa como suportes de defesa do Supremo como espaço democrático privilegiado.
Tais conceitos são mais proveitosos se forem empregados como imposições de ônus ao Tribunal. Um ônus de abertura e de consideração de todos os argumentos em jogo na formulação da decisão judicial. Não creio, em princípio, que devamos utilizar essas noções como fatores primários de legitimação, que confeririam de per si às decisões judiciais um pedigree democrático. Considero, nesse sentido, muito importante diferenciar funcionalidade representativa de legitimação representativa. A primeira os Tribunais possuem. A segunda, a meu ver, encerra o risco de conferir às Cortes um cheque em branco. Ressalto, entretanto, que essa é apenas uma reflexão preliminar, a ser amadurecida.
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Israel Nonato é bacharel em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Estudou Direito Constitucional no Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). É editor do blog Os Constitucionalistas.
Foto: Ministros do Supremo Tribunal Federal (SCO/STF).
Notas:
(1) A pedido, este Conversas Acadêmicas não é ilustrado com a imagem da entrevistada.
(2) O título completo do livro de Jane Reis é Interpretação constitucional e direitos fundamentais: uma contribuição ao estudo das restrições aos direitos fundamentais na perspectiva da teoria dos princípios, Rio de Janeiro: Renovar, 2006.
(3) O artigo Retrospectiva Direito Constitucional 2008: A expansão do judiciário e o constitucionalismo cosmopolita foi publicado na Revista de Direito do Estado, v. 13, p. 23-53, 2009.
(4) Jane Reis é também editora do blog Estado de Direitos.
* edição atualizada em 14/05/2013.
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Brilhante entrevista pontuada pela melhor clareza, profundidade e propriedade. Só podemos agradecer à inciativa e desprendimento dos interlocutores.