14.04.10
O tempo pode cicatrizar a inconstitucionalidade?
RODRIGO PIRES FERREIRA LAGO
Breve introdução
O decurso de tempo pode ser fator determinante para cicatrizar vício de inconstitucionalidade? Por mais absurdo que pareça, o Supremo Tribunal Federal já registra precedente nesse sentido, podendo iniciar, timidamente, à construção de uma nova jurisprudência. Aqui será exposta uma visão crítica, superficial, sobre esse perigoso precedente aberto na jurisprudência constitucional brasileira.
A ADI 2240/BA e os efeitos prospectivos da declaração de inconstitucionalidade
Ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 2240/BA (STF – ADI 2240, Relator Min. EROS GRAU, Tribunal Pleno, julgado em 09/05/2007, DJ 03/08/2007, p. 029), o Supremo Tribunal Federal deparou-se com uma situação peculiar. Estava em discussão a constitucionalidade da lei estadual baiana que criou o Município de Luis Eduardo Magalhães. A lei padecia de irremediável vício de inconstitucionalidade formal porque editada sem a obediência ao disposto no artigo 18, §4°, da Constituição da República, na redação dada pela Emenda Constitucional n° 15/1996. No período em que editada, não havia lei complementar federal fixando o período em que seria possível o início do processo legislativo. A jurisprudência do próprio Supremo Tribunal Federal era remansosa e registrava incontáveis precedentes declarando a nulidade de normas em idêntica situação jurídica.
O relator da ação, ministro Eros Grau, trouxe um denso voto expondo a situação jurídica do caso, objetivamente posta, que evidenciava a flagrante inconstitucionalidade da lei. Entretanto, passou a ressaltar a questão fática, reconhecendo que, apesar da inconstitucionalidade flagrante da norma, o Supremo Tribunal Federal não concedeu a medida cautelar ao tempo da instauração do controle concentrado de constitucionalidade e, no momento de julgamento de mérito, já haviam se passado sete longos anos, suficientes para a situação de fato se sobrepor a de direito.
Mesmo tratando-se de controle concentrado de constitucionalidade, mas porque o objeto em exame era uma lei tipicamente de efeitos concretos com desdobramentos abstratos (a jurisprudência há tempos superou antiga controvérsia sobre o cabimento de ações direta contra leis de criação de municípios, tanto porque se trata de lei e não mero ato normativo, tanto porque desta irradiam efeitos abstratos), o ministro relator desceu à análise do caso, assentando que o município passou a existir de fato, exigindo o reconhecimento da força normativa dos fatos (“normative Kraft dês Faktischen”), de que trata Georg Jellinek (Teoria General Del Estado, 2ª ed. Trad. De Fernando Los Rios, Fondo Cultura Econômica, México, 2000, pp. 319 e ss.). Observou ao Tribunal que o Município de Luis Eduardo Magalhães, quando foi criado pela norma inconstitucional, e foi “efetivamente criado”, como reiteradas vezes assinalou, tinha apenas nove mil eleitores, e que nas eleições municipais seguintes este número já dobrara. Pormenorizou em seu voto inúmeros dados numéricos, tais como os valores resultantes da repartição de receitas, repassados àquele município de fato, o tamanho da frota de veículos, e até o número de alunos matriculados na rede pública de ensino municipal.
No campo jurídico, reiterando as ressalvas que faz ao uso indiscriminado deste instituto, o ministro Eros Grau invocou o princípio da segurança jurídica, buscando fundamento no voto do ministro Gilmar Mendes no Mandado de Segurança n° 24.268. Traz ainda do Direito Administrativo a teoria do princípio da confiança, que se sustenta na presunção de legitimidade dos atos administrativos, para dizer que, com boa-fé, o Município de Luis Eduardo Magalhães foi constituído de fato, e que já não era mais lícito ao Poder Público anular o ato que o constituiu, ainda que este ato fosse uma lei flagrantemente inconstitucional.
Buscando fundamentação jurídico-político, citou Carl Shimitt quanto ao episódio ocorrido em meados do Século XX, em que a ONU reconheceu, por circunstâncias fáticas, e não jurídicas, o novo governo comunista da China, convolando-se posteriormente em reconhecimento jurídico internacional. Sustentou que não se pode divorciar os fatos do direito, a ponto de negar os primeiros, em primazia do segundo.
Esse conjunto argumentativo serviu para que no seu voto fosse proposta a evolução da doutrina de Francisco Campos acerca da nulidade do ato normativo ou lei inconstitucional, por tempos consagrada pela jurisprudência constitucional nacional. Mas registrou que o fazia naquele caso em exame por se tratar de uma “situação de exceção”. Propôs, ao final de seu voto, fosse julgada improcedente a ação direta de inconstitucionalidade para conformar a lei inconstitucional ao ordenamento constitucional, perdoando o vício formal, pela “força normativa dos fatos”.
O ministro Gilmar Mendes pediu vista dos autos e levou novamente a matéria ao Plenário do Supremo Tribunal Federal. Não recusou uma única linha da fundamentação fática do voto do ministro Eros Grau, mas ponderou que não se podia solucionar o problema com “simples decisão de improcedência da ação”, mesmo porque sobre a matéria constitucional de fundo já havia inúmeros precedentes do próprio Tribunal, fazendo a citação de diversos. Em decorrência disto, valendo-se da “doutrina da declaração prospectiva da ineficácia das leis inconstitucionais”, propôs a modulação dos efeitos da decisão em controle de constitucionalidade pro futuro, ou seja, para data futura.
Ponderou o ministro Gilmar Mendes que o Supremo Tribunal Federal acabara de julgar procedente a Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 3.682/MT (STF – ADI 3682, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 09/05/2007, DJ 06-09-2007, p. 037), que declarou a mora estatal e fixou um prazo de dezoito meses para que o Congresso Nacional editasse a faltante lei complementar federal, que disporia sobre a questão da criação de novos municípios. Assim, julgou procedente a ação para declarar a inconstitucionalidade da lei estadual que criou o Município de Luis Eduardo Magalhães, proclamando efeitos prospectivos para a declaração pelo prazo de vinte e quatro meses. O tempo fixado no voto do ministro Gilmar Mendes seria o suficiente a permitir que, editada a lei complementar federal, a Assembléia Legislativa do Estado da Bahia pudesse produzir novamente a lei de idêntico conteúdo, criando o Município de Luis Eduardo Magalhães, desta vez respeitado o parâmetro constitucional.
O ministro Eros Grau reconheceu a juridicidade argumentativa do voto do ministro Gilmar Mendes e evoluiu para acompanhá-lo integralmente. Restou vencido quanto à prospecção dos efeitos apenas o ministro Marco Aurélio, que não cogitou dar sobrevida, por um único dia sequer, a uma norma inconstitucional. A inconstitucionalidade, porém, foi reconhecida à unanimidade. Essa mesma solução foi emprestada a outros tantos casos que chegaram ao Supremo Tribunal Federal.
Perto de vencer o prazo fixado para a vigência destas normas inconstitucionais, o Congresso Nacional que ainda não conseguira editar a faltante lei complementar federal, houve por promulgar a Emenda Constitucional n° 57/08, que tratou de recepcionar expressamente aquelas normas inconstitucionais, desde que atendidos os demais requisitos para a criação do ente municipal. A Emenda Constitucional seria quase uma norma de caso concreto, constando de suas entrelinhas a convalidação da criação do Município de Luis Eduardo Magalhães, na Bahia, além de outros poucos em semelhante situação.
O AI N° 421689/MA e o perigoso precedente de cicatrização da inconstitucionalidade
Após a consolidação do entendimento acerca da prospecção dos efeitos nas ADI´s que tratavam sobre criação de municípios, mas ultrapassado o prazo fixado pelo Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 3682/MT, quanto ao apelo ao Congresso Nacional para da edição de lei complementar federal, e permanecendo este inerte, outros casos chegaram ao Supremo Tribunal Federal. Em um deles, especificamente, a ministra Ellen Gracie adotou uma solução inusitada. Após fundamentar a inconstitucionalidade da norma impugnada e o cabimento do recurso (agravo de instrumento), não foi declarada a sua nulidade, nem mesmo pro futuro, postergando-a indefinidamente no tempo, e não apenas até um dado momento no futuro.
Essa decisão foi proferida no Agravo de Instrumento n° 421689/MA (STF – AI 421689, Relator(a): Min. ELLEN GRACIE, julgado em 15/03/2010, DJ 30/03/2010). Tratava-se de um agravo de instrumento contra decisão que não admitiu recurso extraordinário interposto em ação direta de inconstitucionalidade, proposta perante o Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. O recurso extraordinário foi aviado porque o parâmetro de controle estadual, o dispositivo previsto na Constituição maranhense, tinha igual teor ao contido na Constituição da República – tratava-se da exigência de consulta plebiscitária prévia às leis de ciração, fusão, incorporação e desmembramento de municípios.
A ministra Ellen Gracie, por decisão monocrática, afastou qualquer óbice à admissão do recurso extraordinário, provendo implicitamente o agravo de instrumento, passando de logo a enfrentar o mérito da causa. Ainda na mesma decisão monocrática, analisou a questão fática envolvida para registrar que a lei do Estado do Maranhão, que modificava os limites territoriais de um município, e agregar essa gleba a outro município vizinho, era flagrantemente inconstitucional, porque não realizada a consulta plebiscitária à população envolvida. Sustentou em seu voto, com alicerce na sólida jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que tratasse de quaisquer das modalidades envolvendo leis criadoras de município, seja para a criação, fusão, incorporação ou desmembramento de município, seria necessária a consulta plebiscitária da população envolvida, o que não ocorrera no caso em exame.
A reconhecida violação constitucional era da maior gravidade porque, diferentemente da situação do Município de Luis Eduardo Magalhães, em que a inconstitucionalidade era de índole formal, e apenas porque criado o município em período não autorizado por lei complementar federal, mas obedecidas as demais formalidades, no caso do município maranhense a lei estadual não foi precedida de consulta plebiscitária. Em tese, não seria passível a sua convalidação, não tendo sido esta lei alcançada pela Emenda Constitucional n° 57/08 exatamente por este motivo. Essas circunstâncias estão refletidas na decisão monocrática da ministra Ellen Gracie.
Apesar disso, assim foi decidida a questão:
[…]
Não obstante tal orientação, faz-se aqui necessário excepcionar, em nome do princípio da segurança jurídica, a aplicação da jurisprudência desta Corte. Os efeitos da alteração da Lei Estadual 7.520/2000, a qual se fez sem a imprescindível consulta prévia da população diretamente envolvida, aperfeiçoaram-se em 2001 com a cassação da liminar anteriormente concedida suspendendo os efeitos da referida legislação (fl. 144), período esse relativamente longo, de quase nove anos, para ser desprezado, sobretudo diante da situação consolidada que se formou. O reconhecimento da inconstitucionalidade do referido diploma legal, nesse momento, causaria um prejuízo maior tanto para o ente público, quanto para a população do novo Município criado com o desmembramento de outro Município.
[…]
6. Ante o exposto, nego seguimento ao agravo de instrumento (art. 557, caput, do CPC).
O tempo cura feridas e agora é capaz de curar inconstitucionalidades, das mais graves! Sempre se defendeu, na doutrina tradicional, que a inconstitucionalidade é vício tal que conduz à nulidade da norma, como observado no voto do ministro Eros Grau, na Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 2240/BA, citando Francisco Campos. Já é admitida a modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, seja fixando um momento no passado, seja a partir da declaração de inconstitucionalidade, ou mesmo fixando uma data no futuro. Mas não havia registros de cura do vício pelo fator temporal.
Todos devem respeitar a Constituição da República, mas o que é o texto constitucional senão aquilo que dizem os tribunais constitucionais, rememorando a célebre frase do ex-presidente da United States Supreme Court, Charles Evan Hughes: “Estamos abaixo da Constituição, mas a Constituição é aquilo que os juízes dizem que é” (apud BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 19ª ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 315).
No modelo constitucional brasileiro, sem compromisso com a discussão se de fato se trata de uma Corte Constitucional no sentido estrito, e quais seriam os requisitos exigidos a tanto, tem-se como decorrência expressa, gramatical mesmo, na sua literalidade, que ao Supremo Tribunal Federal incumbe, “precipuamente, a guarda da Constituição” (CR/88, art. 102). O que fazer quando o guardião do texto constitucional perdoa a sua violação?
O próprio Constituinte derivado já o tinha feito, ao “convalidar” as lei estaduais de criação, fusão, incorporação e desmembramento de municípios que não aguardaram a edição de lei complementar federal (EC n° 57/08). Mas o Poder Constituinte Derivado é exercido por membros do Congresso Nacional, investidos pelo sistema eleitoral, com mandatos submetidos ao crivo do povo, titular do poder, a cada quatro ou oito anos, conforme for deputado ou senador da República, sendo compreensível que adote medidas eleitoralmente agradáveis, ainda que juridicamente inválidas ou não recomendadas. E para isso existe o controle judicial da constitucionalidade – não sendo suficiente o controle preventivo da constitucionalidade, exercido pelas comissões de Constituição e Justiça do Poder Legislativo, e pelo Chefe do Poder Executivo, no momento da sanção do projeto de lei.
Entretanto, a mesma conduta não deve ser esperada do Supremo Tribunal Federal, que tem seus membros investidos em caráter definitivo, desde a sua posse, e gozando da independência e da vitaliciedade do cargo. Espera-se deste Tribunal e de seus membros que adotem medidas contramajoritárias, se estas foram as condizentes com o ordenamento jurídico-constitucional, a proteger o Estado Constitucional de Direito. O princípio da segurança jurídica não pode ser usado para proteger situações de manifesta inconstitucionalidade, a salvar normas inconstitucionais do alcance da jurisdição constitucional no processo de controle de constitucionalidade. Mais que solução ao caso concreto, a declaração de inconstitucionalidade de normas violadoras do texto constitucional servem como efeito didático ao legislador, freando as pretensões incompatíveis com o texto da Constituição da República. No momento em que o Supremo Tribunal Federal reconhece que o lapso de nove anos em que a causa permaneceu sub judice, ou seja, já impugnada a norma, é suficiente a curar a inconstitucionalidade, abre-se um perigoso precedente para as maiorias legislativas fazerem uso do tempo como remédio para superar graves vícios na edição das leis nacionais.
A solução emprestada a este caso pela ministra Ellen Gracie nega a própria fundamentação jurídica que fez importar ao Brasil o controle de constitucionalidade de leis, primeiro de forma tímida através do Decreto nº 848, de 11 de outubro de 1890, pelo Governo Provisório, e depois pela Constituição de 1891 (STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito – 2ª ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 423), quando se receava que uma eventual maioria legislativa reinstituísse o sistema de governo anterior, ou afetasse o pacto federativo, com a centralização indevida de poder. O resultado do julgamento, a conformar no ordenamento jurídico uma lei afirmada inconstitucional, representa exatamente a consagração da maioria legislativa contra legem, ou mais propriamente, contra a Constituição, o que é de todo inadmissível.
Conclusão
Fundado nessas premissas é que se formula a presente crítica à equivocada decisão do Supremo Tribunal Federal, fazendo apelo para a revisão de seus fundamentos em outras oportunidades, a não convalidar o atropelo da Constituição da República, permanecendo resistente na guarda de seu texto, a cumprir o papel que lhe foi outorgado pelo Poder Constituinte Originário. O tempo pode ser fator determinante a curar feridas, mas não pode resolver vícios de inconstitucionalidade.
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RODRIGO PIRES FERREIRA LAGO é advogado, Conselheiro Seccional da OAB/MA, Presidente da Comissão de Estudos Constitucionais da OAB/MA, e fundador do site Os Constitucionalistas (www.osconstitucionalistas.com.br). Siga o autor no Twitter @rodlago e no Facebook.