Lenio Streck
17.11.11

Fux erra ao definir presunção de inocência

Lenio Streck

LENIO LUIZ STRECK

Exercer a crítica no direito é uma tarefa difícil. Principalmente em terrae brasilis. Por aqui, normalmente é magister dixti. Mormente se quem disse é Ministro de Corte Superior. Não conseguimos construir ainda uma cultura em que as decisões judiciais – em especial as do Supremo Tribunal Federal – sofram aquilo que venho denominando de “constrangimentos epistemológicos”. O que é “constrangimento epistemológico”? Trata-se de uma forma de, criticamente, colocarmos em xeque decisões que se mostram equivocadas, algo que já chamei, em outro momento, de “fator Julia Roberts”, em alusão à personagem por ela interpretada no filme Dossiê Pelicano, que, surpreendendo o seu Professor em Harvard, afirma que a Suprema Corte norte-americana errou no julgamento do famoso caso Bowers v. Hardwick. No fundo, é um modo de dizermos que a “doutrina deve voltar a doutrinar” e não se colocar, simplesmente, na condição de caudatária das decisões tribunalícias. Lembro da decisão do então Ministro Humberto Gomes de Barros (AgrReg em ERESP 279.889), do Superior Tribunal de Justiça, na qual ele dizia: “Não me importam o que pensam os doutrinadores”, importando, para ele, apenas o que dizem os Tribunais…! Imediatamente divulguei contundente artigo [1]dizendo a Sua Excelência que “importa, sim, o que a doutrina pensa”. Lançava, então, um repto à comunidade jurídica: a doutrina tem a função de doutrinar. Criticava, também, a cultura de repetição de decisões (ementários, etc) que se formou no Brasil.

Temos de construir as bases para um pensamento crítico que denuncie equívocos como o voto que abordarei na sequência, da lavra do Ministro Luiz Fux. A crítica que exporei não tem a pretensão de ser algo do tipo J’accuse, de Emile Zola, em que este fazia contundente manifesto contra a injustiça cometida contra o cap. Dreyfus. Posso, no máximo, estar indignado como Zola.

Por isso, permito-me trazer a lume o meu protesto contra o voto do Min. Luiz Fux, a quem nutro profundo respeito pessoal, no processo da Lei Ficha Limpa. Nosso Amigo – meu e do Ministro Luiz Fux – James Tubenschlak (de saudosa memória, que morreu prematuramente quando, com sua esposa Tânia, visitava o Rio Grande do Sul) nos uniu há muitos anos, no velho Instituto de Direito, o ID. Ele, Luiz Fux, já um jurista (então membro do Ministério Público) conhecido, e eu, iniciando minha trajetória. James nos prestigiava. E como! Era Amilton Bueno de Carvalho, Lenio Streck, Luiz Fux, Silvio Capanema, Nagib Slaibi, Alexandre Câmara, Afranio Silva Jardim, Juarez Cirino, Jacinto Coutinho, Caio Mário, João Mestieri, Barbosa Moreira, Yussef Cahaly, Calmon de Passos (quem mais arrancava aplausos de pé). Havia muitos outros. O Hotel Glória ficava repleto, tendo que colocar telões. Não havia ainda redes sociais. Nosso espaço era cavado com muito (mais) esforço do que se faz hoje.

Cada um seguiu sua trajetória. Fux foi guindado ao STJ e ao STF. E o que o Ministro Fux vem fazendo? Lançando belos votos, como outra coisa não se poderia esperar de um jurista talentoso. Entretanto, não estamos mais nos palcos do Hotel Glória. Não precisamos mais disputar as palmas daqueles milhares que lá iam. Hoje ele é um Ministro do Supremo Tribunal da República Federativa do Brasil. Duzentos milhões de habitantes. Fux não é mais palestrante. Relembro: é Ministro. Só tem onze na República. E cada um tem responsabilidade política. E que responsabilidade, em um país eivado de judicializações, que, diga-se, não ocorrem por culpa do STF; são, sim, contingenciais…! Cada decisão tem efeitos colaterais. De cada decisão, extrai-se um princípio. Outro dia o meu caríssimo Ministro concedeu Habeas Corpus, invocando algo que não consta no Código Penal: a teoria da actio libera in causa. Ou seja, tivesse o STF coerência nas decisões, portanto, respeitasse o STF a origem do direito fruto de suas decisões, teríamos, a partir de agora, algo inusitado: nunca mais se conseguirá acusar alguém por dolo eventual na hipótese em que o autor dirija embriagado e atropele (e mate). A tese do voto: somente se pode acusar alguém por dolo eventual se ficar demonstrado que o agente “se embriagou com o propósito de cometer um crime”. Prova, pois, diabólica. Impossível de se fazer. Aliás, nunca houve no mundo um processo julgado nesse sentido. A velha actio libera in causa não é um princípio. E tampouco é uma regra. Nem mais se estuda essa tese nas salas de aula. Porém, o Min. Fux proferiu um belo voto. Pergunto: e os efeitos colaterais dessa decisão?

Poderia falar de outros votos. Mas a minha crítica epistêmica é dirigida a um caso bem recente, a não passar desapercebido pela população. Trata-se do caso da “Lei Ficha Limpa” (ou “Ficha Suja”, como queiram). Neste caso, penso que o Ministro – permito-me dizer, com todas as vênias do mundo; afinal trata-se de um Ministro e no Brasil quase ninguém tem coragem para criticar decisões da Suprema Corte – equivocou-se. Tomo, pois, a coragem de “acusá-lo” epistemicamente.

Contextualizarei. De há muito, ocupo-me em minhas pesquisas da questão que envolve a determinação do conceito de princípio. Mais especificamente, minhas preocupações giram em torno do problema da decisão judicial e da existência ou não do chamado “poder discricionário dos juízes” no momento da solução dos chamados “casos difíceis” (em Verdade e Consenso, Saraiva, 4ª ed., demonstro a inadequação hermenêutica desse último conceito).

Na esteira da construção dessa busca pela determinação do conceito de princípio, deparei-me, mormente nos anos mais recentes, com situações inusitadas. Certamente, a mais pitoresca de todas é aquela que nomeei (em diversos textos, e especialmente, em Verdade e Consenso) de panprincipiologismo, uma espécie de patologia especialmente ligada às práticas jurídicas brasileiras e que leva a um uso desmedido de standards argumentativos que, no mais das vezes, são articulados para driblar aquilo que ficou regrado pela produção democrática do direito, no âmbito da legislação (constitucionalmente adequada). É como se ocorresse uma espécie de “hiperestesia” nos juristas que os levassem a descobrir por meio da sensibilidade (o senso de justiça, no mais das vezes, sempre é um álibi teórico da realização dos “valores” que subjazem o “Direito”), à melhor solução para os casos jurisdicionalizados.

Pois bem. No julgamento conjunto das ADCs 29 e 30 e da ADI 4578, o STF parece ter inaugurado uma forma nova desse fenômeno se manifestar. Com efeito, ao lado do uso inflacionado do conceito de princípio (por exemplo, o panprincipialismo é, corretamente, denunciado pelo Ministro Tóffoli em vários votos, inclusive fazendo alusão ao meu Verdade e Consenso, op.cit.), o voto que até o momento foi apresentado nesses julgamentos (Lei do “Ficha Limpa) produz uma espécie de retração que, mais do que representar uma contenção ao panprincipiologismo, manifesta-se como um subproduto deste mesmo fenômeno. Trata-se de uma espécie de “uso hipossuficiente” do conceito de princípio. Já não se sabe o que é mais grave: o panprincipialismo ou a hipossuficiência principiológica.

O que seria esse “uso hipossuficiente do conceito de princípio”? Explico: ao invés de nomear qualquer standard argumentativo ou qualquer enunciado performático de princípio, o Judiciário passa a negar densidade normativa de princípio àquilo que é, efetivamente, um princípio, verdadeiramente um princípio, anunciando-o como uma regra. Aliás, nega-se a qualidade de princípio àquilo que está nominado como princípio pela Constituição…!

O que ocorreu, afinal? O julgamento em tela trata da adequação da Lei Complementar 135/2010 (chamada lei da “Ficha Limpa”) à Constituição. Neste momento, não me preocupa tanto o mérito da ação, mas aquilo que é feito com a Teoria do Direito. Qual é a serventia da Teoria do Direito? Não se trata de uma questão cosmética. Pelo contrário, é da Teoria do Direito que se retiram as condições para construir bons argumentos e fundamentar adequadamente as decisões. Quero dizer: tem-se a discutir o que foi feito da Teoria do Direito dos últimos 50 anos, a tanto ocupar a questão do conceito de princípio e que, agora, no voto do Ministro Fux, parece não ter muita serventia. Veja-se as palavras do Ministro:

A presunção de inocência consagrada no artigo 5º, LVII da Constituição deve ser reconhecida, segundo lição de Humberto Ávila, como uma regra, ou seja, como uma norma de previsão de conduta, em especial de proibir a imposição de penalidade ou de efeitos da condenação penal até que transitada em julgado decisão penal condenatória. Concessa venia, não se vislumbra a existência de um conteúdo principiológico no indigitado enunciado normativo.

Não se vislumbra no enunciado normativo (presunção da inocência) um conteúdo principiológico?Concessa venia, Ministro Fux. A posição exarada por Vossa Excelência sugere claramente uma passagem ao largo de toda a discussão a travar-se no âmbito teórico para saber o que é, efetivamente, um princípio. E o faz com apelo a um argumento de autoridade, baseado numa concepção isolada, no contexto global da teoria do direito e da filosofia do direito, a qual não pode ser tida como dominante. Aliás, a vingar a tese do ilustre jurista citado pelo Ministro, a igualdade – virtude soberana de qualquer democracia, como aparece em Dworkin e, numa perspectiva mais clássica, no testemunho de Alexis de Tocqueville sobre a democracia americana – não seria uma princípio, mas sim um simples postulado! Na verdade, não sei se o próprio Prof. Ávila concorda com a tese apresentada no aludido voto. Não sei se ele nega(ria) densidade de princípio à presunção da inocência.

A afirmação de que a presunção de inocência seria uma regra (sic) e não um princípio é tão temerária que uniria dois autores completamente antagônicos, como são Robert Alexy e Ronald Dworkin, na mesma trincheira de combate. Ou seja, ambos se uniriam para destruir tal afirmação. Isso porque a grande novidade das teorias contemporâneas sobre os princípios jurídicos foi demonstrar que, mais do que simples fatores de colmatação das lacunas (como ocorria nas posturas metodológicas derivadas do privativismo novecentista), eles são, hoje, normas jurídicas vinculantes, presentes em todo momento no contexto de uma comunidade política. Tanto para Dworkin quanto para Alexy – que, certamente, são os autores que mais representativamente se debruçaram sobre o problema do conceito de princípio – existe uma diferença entre a regra (que, evidentemente, também é norma) e os princípios. Só para lembrar: cada um dos autores (Dworkin e Alexy) construirá sua posição sob pressupostos metodológicos diferentes que os levarão, no mais das vezes, a identificar pontos distintos para realizar essa diferenciação. No caso de Alexy, sua distinção será estrutural, de natureza semântica; ao passo que Dworkin realiza uma distinção de natureza mais fenomenológica.

De todo modo, tanto as posições de Dworkin quanto as de Alexy concordam que um dos fatores a diferenciar os princípios das regras diz respeito ao fato de que sua não-incidência (ou aplicação) em um determinado caso concreto não exclui a possibilidade de sua aplicação em outro, cujo contexto fático-existêncial seja diferente daquele que originou seu afastamento. As regras, por outro lado, se afastadas de um caso, devem, necessariamente, ser afastadas de todos os outros futuros; exigência decorrente de um PRINCÍPIO, que é a igualdade de tratamento. Isso mesmo: a igualdade, que não é uma regra e, sim, um princípio).

Para Dworkin, os princípios representam uma comunidade, vale dizer: uma comunidade política se articula a partir de um conjunto coerente de princípios que justifica e legitima sua ação política. Por isso o direito pós-bélico (Losano) – o que surge depois da Segunda Guerra – é um novo paradigma. Só não entende isso quem deseja retornar ao século XIX, ao tempo do “império das regras”; aliás, ao tempo do positivismo primitivo-exegético-sintático.

Ora, os princípios possuem uma “dimensão de peso” (como aparece em Levando os Direitos a Sério), o que significa dizer que, em determinados casos, um princípio terá uma incidência mais forte do que noutro (ou noutros). Isso não impede que, num outro caso com circunstâncias distintas de aplicação, aquele princípio – afastado anteriormente – volte com maior força, dependendo da construção que se faz, com base na reconstrução da cadeia da integridade do direito. É o que tenho chamado de DNA do direito.

Além de Dworkin, Alexy ressalta essa peculiaridade dos princípios (sequer mencionarei Habermas, radical no sentido de que os princípios são normas, sendo, portanto, deontológicos). Para Alexy, tão citado e tão pouco lido (e menos ainda compreendido) e adepto da distinção semântico-estrutural entre regras e princípios, os princípios valem prima facie de forma ampla (mandados de otimização). Circunstâncias concretas podem fazer com que seu âmbito de aplicação seja restringido. Os princípios – que, em algumas passagens da sua Teoria dos Direitos Fundamentais, Alexy equipara com os próprios direitos fundamentais – encontram-se em rota de colisão, e os critérios de proporcionalidade derivados da ponderação resolvem essa aparente contradição, fazendo com que, em um caso específico, um deles prevaleça. Lembre-se o resultado da ponderação dos princípios colidentes é uma regra que Alexy chama de “norma de direito fundamental adscripta” (que, na prática cotidiana da aplicação do direito, ninguém faz). E lembre-se ainda que, nos termos da teoria alexyana, essa regra deve servir para resolver casos similares àquele que ensejaram a ponderação dos princípios colidentes. Aqui, uma pausa: será que algum juiz ou tribunal no Brasil já se preocupou em determinar a regra de direito fundamental adscripta quando opera com a ponderação? Será que qualquer um deles já aplicou tal regra a outros casos similares? A resposta é óbvia: não há um caso a retratar esse tipo de aplicação. A própria ponderação é uma ficção. É uma máscara para esconder a subjetividade do julgador.

De todo modo – para concluir o raciocínio anterior – é bom lembrar que até Alexy é explicito ao afirmar que os princípios, quando afastados da aplicação em um caso específico, podem voltar com densidade normativa forte em outros casos futuros. As regras a terem como modo de aplicação a subsunção, ou valem ou não valem: se excluídas de um caso DEVEM SER, necessariamente, EXCLUÍDAS de outros futuros.

Desse modo, fica clara a fragilidade do argumento exposto pelo caríssimo Min. Fux, a quem tomo a liberdade de indagar o seguinte, e a partir da breve exposição sobre o melhor da doutrina mundial a respeito de regras e princípios; doutrina recepcionada no Brasil por tantos juristas e tribunais: 1 – se a presunção de inocência é mesmo uma regra, como é possível dizer que ela pode ter sua aplicação restringida no caso de condenações confirmadas pelo Tribunal (e os casos de competência originária, seriam o quê?) e, ao mesmo tempo, valer para aqueles que foram condenados pelo juiz singular apenas? 2- se ela é uma regra, não deveria então também ser afastada nesses casos?

Note-se que o argumento é tão frágil que melhor ficaria se fosse dito que a presunção de inocência é (mesmo) um princípio: se justificada sua restrição no caso de condenações confirmadas pela segunda instância, conservar-se-ia intacta sua aplicação no âmbito do juiz singular! Todavia, nos termos em que foi formulado no voto, como pode uma regra valer num caso e não valer no outro? Haveria ponderação entre regras, como querem – de forma equivocada – alguns de nossos doutrinadores? Rebaixada à condição de regra, a presunção da inocência entraria em um “processo” de ponderação? E disso exsurgiria que tipo de resultado? Uma “regra da regra”?

Mais: afinal, se a ponderação é a forma de realização dos princípios e a subsunção é a forma de realização das regras (isso está em Alexy, com todos os problemas teoréticos que isso acarreta), falar em ponderação de regras não é acabar com a própria distinção entre regras e princípios tornando-os, novamente, indistintos? Parece-me que o imbróglio teórico gerado pelo voto do Ministro Fux bem representa um verdadeiro “leviatã hermenêutico”, isto é, uma guerra constante de todas as correntes de aplicação, estudos, e interpretação do Direito entre si, a gerar uma confusão sem precedentes, onde cada um aplica e interpreta como quer o Direito, desatentos ao fato de que todo problema de constitucionalidade é um problema de poder constituinte. No fundo, mais uma vez venceu o pragmati(ci)smo, derrotando a Teoria do Direito.

Ainda, numa palavra, várias perguntas: a) se a presunção de inocência não é um princípio, o devido processo legal também não o é? b) E a igualdade? Seria ela uma regra? c) Na medida em que o cada juiz deve obedecer a “regra” da coerência em seus julgamentos, isso quer dizer que, daqui para frente, nos julgamentos do Min. Fux, a “regra” (sic) da presunção da inocência pode, em um conflito com um princípio, ou até mesmo com uma regra, soçobrar? d) Uma outra regra pode vir a “derrubar” a presunção da inocência? E) E o que dirão os processualistas-penais de terrae brasilis, quando confrontados com essa “hipossuficientização” do princípio da presunção da inocência, conquista da democracia?

Finalizo repetindo que a questão a se discutir aqui não diz respeito ao mérito do julgamento do “caso Ficha Limpa”. Nem quero discutir as possibilidades de restrição ou não do direito fundamental à presunção de inocência. A questão é simbólica (lembremos de Cornelius Castoriadis). O que representa, no plano do futuro do direito em terrae brasilis, o exposto no voto do Ministro Luiz Fux? Quais são os efeitos simbólicos disso? Lembremos, aqui também, de Bourdieu, quando fala do poder de violência simbólica dos discursos.

Nada se deve objetar a que algumas teses sejam construídas de forma pragmati(ci)sta. Essas teses podem fazer sucesso no mundo jurídico. Mas não hão de subjugar décadas de discussões e avanços produzidos na Teoria do Direito. Talvez a maior conquista nesse (e desse) direito pós-Auschwitz tenha sido, efetivamente, a principiologia constitucional, pela qual ingressa o mundo prático no direito, com a institucionalização da moral no direito (não esqueçamos de Habermas). Por isso, não se pode vir a dizer que a presunção da inocência não seja um princípio. Por mais “valor” pragmático que isso possa vir a ter. O direito não sobrevive de pragmati(ci)smos. Direito não é um conjunto de casos isolados. Portanto, o “problema” não é a decisão de um determinado caso, mas, sim, como se decidirão os próximos. Definitivamente, não há grau zero de sentido!

Portanto, o problema é de ordem teórica: maus argumentos podem construir más decisões. E isso é algo que deve ser evitado. Quem sabe, prestigiemos mais a Teoria do Direito. Ou para que ela serve? Indago: por que existem tantos Programas de Pós-Graduação em Direito no Brasil? Existem mais de mil e quinhentas teses de doutorado – parcela delas pagas com bolsas custeadas pelo povo e orientadas por prestigiosos professores – sustentando que “princípios não são (ou não podem ser) regras”, ou trabalhando essa distinção entre regras e princípios (particularmente, nem concordo com a distinção semântico-estrutural entre regra e princípio, mas isso é assunto para outro momento; para mim, princípios são normas; são, sempre, deontológicos; portanto, não são mandados de otimização!). Deve haver mais de três mil teses de mestrado, feitas no Brasil e no exterior, sustentando o contrário do que diz o Ministro Fux. Aliás, registro, o Min. Fux é um prestigiado Professor Doutor, com brilhante tese defendida em renomada Universidade. Tudo parece conspirar a favor das teses que são contrárias às do Min. Fux.

Assim, senti-me na obrigação de registrar minha contrariedade ao voto de Sua Excelência e da doutrina por ele sufragada. Não tenho o “lugar da fala” de Luiz Fux; o que ele diz repercute em todo o Brasil em fração de segundos. Não tive a felicidade de ser indicado pelo Presidente da República ao digníssimo cargo de Ministro do Supremo Tribunal. Por outro lado, tenho muitos alunos e leitores, a não esperarem menos de mim do que agora faço. Defendendo a Academia. Defendendo a Constituição. Com todas as vênias. Sei que não estamos mais no Hotel Glória e nem James Tubenchlak está na platéia, vigilante, exigindo, com gestos e olhares, que sejamos aplaudidos de pé, como tantas vezes lá fomos ovacionados, mormente os “Meninos do Rio” (assim James anunciava, com extremo carinho que tinha por todos nós, o trio brilhante Fux-Capanema-Nagib, para, na sequência, anunciar Amilton-Lenio-Below ou outro palestrante que “fechava” este painel). Hoje, o “mercado” de palestrantes é tomado por jovens, que muito se assemelham a pastores pentecostais. Mas é pelos velhos tempos que procuro ser crítico. Temos que ser críticos. E dizer as coisas que precisam ser ditas. Aqui, da planície ao Planalto. Com respeito e carinho.


[1] http://www.leniostreck.com.br/site/wp-content/uploads/2011/10/10.pdf

LENIO LUIZ STRECK é procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito.

Fonte: Consultor Jurídico, 17/11/2011, título Ministro equivoca-se ao definir presunção de inocência.



9 Comentários

  1. Inocêncio Coelho disse:

    Excelente artigo, a refletir o refinado pensamento crítico de Lenio Streck, um dos mais sérios e respeitados juristas brasileiros da atualidade. Vivo a dizer que ou a Academia se intromete e tenta controlar os de “notável saber jurídico””, apontando-lhes os equívocos, ou acabará legitimando, com o seu silêncio, tudo que eles venham a dizer, por mais absurdos que sejam os seus “veredictos”. Afirmo, também, por onde passo ou me chamam para conversar, que só a Academia poderá constranger esses sábios “por força de lei”, mostrando-os, criticamente, “descobertos”, ainda quando todos os demais se ponham a elogiar-lhes as vistosas roupagens inexistentes. Exemplo desse tipo de controle constrangedor, mas necessário, é a certeira frase do Lenio, a dizer que a tão decantada “ponderação” não passa de uma ficção, de uma máscara para esconder a subjetividade do julgador, o que significa dispensá-lo do imperativo constitucional de ter que fundamentar, mesmo, as suas decisões. De minha parte, digo, também criticamente, que a ponderação é um cheque em branco, que, emitido pelas cortes constitucionais mesmo sem fundos teóricos ou doutrinários, só poderá ser devolvido por caixas da Academia, que forem intelectualmente mais qualificados que os seus emitentes. Parabéns, portanto,ao Lenio e aos jovens Constitucionalistas, por sua fidelidade ao princípio de que só olhar externo aos grupos — quaisquer que eles sejam — será capaz de salvá-los da mesmice de visão, que, como toda mesmice, é estéril e esterilizante. Nunca, como hoje, faz-se tão necessária a leitura da Alegoria da Caverna de Platão. Inocêncio Mártires Coelho

  2. Gustavo Nunes de Pinho disse:

    Quando encerrei a leitura do artigo do Professor Lenio Streck, tive a ilusão que nada poderia lhe aperfeiçoar, ante a completude magistral do que fora dito. Esta impressão foi imediatamente vaporizada pelo comentário do querido Prof. Inocêncio. Não darei os parabéns ao Prof. Lenio Streck, mas direi sim um MUITO OBRIGADO.

  3. Karine Santos disse:

    Obrigada, professor, por lembrarmos que ainda temos a Teoria do Direito entre nós! É difícil encontrá-la nas decisões cada vez mais ctrl C+Ctrl V que nos deparamos por aí.

    Mais uma vez, grata pela manifestação e pela aula.

  4. Israel Nonato disse:

    Como afirmei no twitter, o texto do Professor Lenio Streck é uma verdadeira “porrada doutrinária”. Para complementar, sensacional o comentário do Professor Inocêncio Coelho. Adorei o trecho: “(..) digo, também criticamente, que a ponderação é um cheque em branco, que, emitido pelas cortes constitucionais mesmo sem fundos teóricos ou doutrinários, só poderá ser devolvido por caixas da Academia, que forem intelectualmente mais qualificados que os seus emitentes”.

  5. Ricardo Mourão disse:

    É preciso academizar nossa (as da “terrae brasilis”) academia, institucionalizar nossas instituições, pensar nossos pensamentos…
    Saudosas as (nem tão) longínquas aulas do Prof. Inocêncio. Seus ensinamentos quanto à
    fundamentação das decisões como a busca da intersubjetividade (ante a impossibilidade da objetividade) como forma de legitimação da decisão jurídica. Intersubjetividade que passa pela análise crítica da decisão (e não a simples adesão ao argumento da autoridade).

  6. Olívio Pessoa disse:

    Belo diagnóstico, já que as decisões do STF, sobretudo quando se trata de processo objetivo, criam precedentes (“ratio decidendi”) vinculantes.
    Todavia, enquanto humilde estudande de graduação, discordo com o enfoque do autor. Creio que tudo isso se deve à transmissão ao vivo dos julgamentos e o consequente “populismo judicial”, faz com que os ministros se preocupem com os princípios para “legitimar” a sua arbitrariedade (já que na maioria das vezes tratam como “ordem abstrata de valores) e isso constrói o “sincretismo metodológico” na teoria dos princípios, crítica do prof. Virgílio Afonso.
    Devia se dar enfoque a outros meios de legitimidade, além do “fórum dos princípios”, como a reconstrução da legitimidade do Legislativo (que segundo um prof. Argentino, há na América Latina uma “democracia delegativa”), o desenvolvimento de meios para a abertura procedimental no Judiciário, e a promoção de instrumentos de democracia direta (como pebliscitos e referendos).

  7. Felipe Freitas disse:

    Texto ímpar. Nada a acrescentar por ora! A não ser um Muito Obrigado por nos agraciar com cristalina consciência jurídico-social. A crítica é válida em todos seus aspectos e fundamentos.

    Olívio Pessoa, discordo em alguns pontos de seu post. Se me permite serei rápido em expor meu ponto de vista. Vejamos:

    1º- Não creio que a “transmissão ao vivo” seja um ponto fulcral para justificar a decisão – no mínimo estranha – do Min. Fux. Penso, e espero, que o voto em comento seja penas um “filho pródigo”. Afinal, todos cometem erros, por mais crassos que sejam.

    2º- Concordo com vc no que tange à reconstrução do legislativo. Deveras, este é um processo demasiado lento, e a sociedade não pode(rá) esperar estagnada sua reformulação. Nesta esteira, reporto ao Mestre Streck quando asseverou em uma entrevista concedida ao site conjur. In verbis: “Ao lado de direitos em abundância, também foram aumentadas as formas de acesso à Justiça. Resultado: quanto mais detalhada a Constituição, menor a liberdade de conformação do legislador. E, na medida em que aumentam as demandas por direitos, cresce o papel do Judiciário. Numa palavra: a intervenção do Judiciário é produto do espaço concedido pela política.” Demais disso, o judiciário não pode se eximir de decidir as agruras social.

    3º- Não vislumbro em plebiscitos e referendos a maior efetivação da democracia. Convenhamos, a população tupiniquim encontra-se anos luz de distância da consciência individual e/ou coletiva para decidir o que é melhor para ela mesma. Caso assim fosse estariamos criando um leviatã da coletividade, um absolutismo contemporâneo.

    um abç

  8. […] O ponto de destaque do voto do ministro Luiz Fux foi afastar a alegada presunção de inocência como fundamento para a inconstitucionalidade de disposições da Lei da Ficha Limpa, o que lhe rendeu duras críticas do professor Lênio Streck: “Fux erra ao definir presunção de inocência”. […]

  9. Misael Alberto Cossio Orihuela disse:

    Quanto ao artigo, excelente. Quanto ao autor, também excelente teórico. Quanto ao conteúdo, penso o seguinte: o Minitro Fux não “errou” no sentido de que qualquer decisão em nível, sobretudo, do STF não pode ser enquadrada entre o “falso” (errado) ou “verdadeiro” (certo). O póprio fundamento do artigo do Professor Lênio, autor do artigo, me ajuda a explicar isso: trata-se da “Teoria do direito”, não da “Verdade do e no Direito”, e teoria é isso: só teoria. “Teoria” não é “Verdade”.

    A teoria de direito de Dworkin ou de Alexy são apenas teorias, não verdades verdadeiras do direito. Podem ser teorias atuais e, até, dominantes, mas sempre teorias. Nos tribunais pátrios há decisões baseadas em “teorias”, não em “verdades”. Há muitos exemplos disso: Há votos vencidos porque esse votos se fundamentam em teorias que não são compartilhadas pelos votos vencedores. Isso não significa que a teoria dos votos vencedores seja a melhor. Significa simplemente que são os preponderantes, nesse momento. No futuro, pode se produzir uma inversão. O que era teoria predominante pode não ser mais.

    Desde que a teoria do direito apareceu, criaram-se muitas teorias. Agora, as teorias de Dworkin e Alexy estão de “moda”. O professor Lênio é também um excelente teórico do direito e, pelo que parece, é seguidor de Dworkin e Alexy, ou, ao menos, admirador deles.

    Isso não significa que outros téoricos não possam seguir outros teóricos do direito, como, por exemplo, John Rawls. Rawls e Habermas trocaram críticas e até coincidências.

    O voto do Ministro Fux não está “errado”. Ele apenas se fundamenta numa teoria que não faz questão de diferenciar entre “princípio” e “regra”, como espécies do gênero “norma”.

    O constitucionalista José Afonso da Silva, por exemplo, também não concorda com essa distinção entre “princípio” e “regra” como espécies do gênero “normas”. Só isso. Ele argumenta que os que adotaram aquela distinção não fizeram ou não fazem uma distinção clara entre “norma” e “regra”. Tratando de interpretar esse argumento de Afonso da Silva, ele talvez queira dizer que como por milagre a “norma”, que antes não era “princípio”, agora passou a ser gênero que abriga “princípios”, ou seja, “a norma” seria “superior” ao “princípio”, já que “princípio” é apenas uma espécie de “norma”. E o termo “lei” já não quer dizer nada na teoria do direito?

    A “norma fundamental” da teoria pura do direito, de Kelsen, agora é “princípio fundamental”? A “regra de reconhecimento, de Hart, é “regra” no sentido que tem a “regra” na teoria de Dworkin e de Alexy?

    Em teoria, podemos concordar ou não que os princípios são normas. O que é mais abrangente, fundamental, principal (“principal” vem de “princípio”, “começo”)o princípio ou a norma? Se dizermos a “norma”, então, há algo que é mais principal que os princípios. Daí, então, a “norma” seria o princípio dos princípios, pois além dos princípios haveria outros princípios maiores que seriam as normas. As normas são, então, os princípios dos princípios, ou seja, sempre princípios, não normas. Está “errado” esse pensamento?

    Eu posso dizer, por exemplo, que primeiro e antes de tudo estão os princípios. Antes deles não há nada mais. Por isso é que é princípio. Podemos dizer: no começo foi, é e será o princípio, não a norma, nem a regra, nem a lei. Posso dizer que as normas e as regras são desdobramentos dos princípios. Posso dizer que o princípio é o gênero, é o fundamental, é o principal, e a “norma”, a “regra”, a “lei” são espécies. Assim, tudo seria “princípio”: (1) princípio propriamente dito, e (2) princípio-norma; (3)princípio-regra; e (4)princípio-lei. Pronto: foi criada uma nova teoria dos princípios do e no direito. O direito seria direito de princípios. Estaria “errada” essa teoria?

    De tudo isso, vemos que o que os termos “princípio”, “norma”, “regra”, “lei”, “lei fundamental”, “lei maior”, etc. em DIREITO , não necessariamente, têm ou devem ter o mesmo significado ou sentido nas diferentes teorias do direito. Diferentes teorias do direito podem abordar de forma diferente esses termos e as relações entre “princípios”, “normas”, “regras”, “leis”, etc.

    Falando de Habermas, ele pode ter dito que princípios são normas, mas ele não defende, nem faz questão de defender isso de que a “norma” é gênero e “princípio” e “regra” são espécies de “normas”. Rawls tampouco faz questão em defender isso, aliás, ele nem toca nesse assunto. Isso, me parece, não quer dizer que Habermas e Rawls queiram voltar para o passado ou “retornar ao século XIX, ao tempo do “império das regras”; “ao tempo do positivismo primitivo-exegético-sintático.”

    O ministro FUX, concluindo, não “errou”, nem voltou para o passado “primitivo”. Apenas, seu voto não se baseou nas teorias “em moda” de Dworkin e Alexy. Em outros votos talvez pode ser que sim. Os juízes, em todos os graus, modificam seus entendimentos. Um dia entendem uma coisa e outro dia já não. Em direito, nada se cria… para sempre.

    Com muito respeito a todos os teóricos e críticos. Precisamos dos dois.

    Misael.