19.07.10
Mandado de injunção à luz da separação dos Poderes
ANA CAROLINA RIBEIRO DE OLIVEIRA
1. Introdução
Logo após o fim da ditadura militar, período marcado por repressões a direitos, censuras, prisões políticas, extradições e outras atrocidades, instalou-se a Assembléia Nacional Constituinte, encarregada de elaborar uma Constituição Federal que abraçasse os ideais de liberdade e garantisse o respeito aos direitos fundamentais de modo a evitar que os cidadãos fossem ultrajados como ocorrera no governo ditatorial.
Em 1988 promulgou-se a denominada “Constituição Cidadã”, que se preocupou em aumentar o raio de abrangência dos direitos nela previstos, dando status constitucional a matérias dos mais variados ramos do sistema jurídico nacional, além de trazer inovações extraídas do Direito Constitucional Comparado.
Dentre as inovações trazidas pela Carta Política vigente encontra-se o mandado de injunção, que, ao lado do habeas corpus, do mandado de segurança e do habeas data, integram o rol de remédios constitucionais que objetivam salvaguardar e viabilizar o exercício dos direitos e liberdades constitucionais.
O mandado de injunção, previsto no inciso LXXI do art. 5º da Constituição Federal, é um instrumento processual constitucional hábil a proporcionar o exercício de prerrogativas, direitos e liberdades, de cunho constitucional, que se mostra inviabilizado pela ausência de norma regulamentadora.
O Supremo Tribunal Federal, Corte que via de regra tem competência para apreciar os mandados de injunção, teve seu entendimento acerca do tema modificado ao longo do tempo. Tal evolução pode ser basicamente dividida em três fases distintas.
Num primeiro momento, o STF optou por adotar uma postura mais conservadora, acabando por restringir o conteúdo do mandado de injunção, cerceando o seu alcance, pois suas decisões não propiciavam ao impetrante o exercício do direito constitucional até então inviabilizado, limitando-se a declarar a omissão normativa existente.
Já num segundo momento, a Suprema Corte passou a entender que seria possível proferir um julgamento concedendo efeitos concretos ao mandado de injunção, ou seja, estaria assegurado, desde logo, o exercício do direito almejado pelo impetrante, entretanto, aludidos efeitos beneficiariam somente o autor da ação (decisão inter partes).
Contudo, a partir de 2006, e mais expressivamente em 2007, o STF começou a rever seu posicionamento sobre os efeitos das decisões proferidas em sede de mandado de injunção, tendo firmado novo posicionamento, defendendo que, reconhecida a mora na produção da norma, deve o Judiciário assegurar, desde logo, o exercício do direito impossibilitado pela omissão, tendo tal decisão abrangência para todos os casos constituídos pelos mesmos elementos objetivos.
Oportuno observar que ao longo dessas três fases uma preocupação se mostrou constante: o receio de que o entendimento adotado pelo STF pudesse contrariar o princípio da separação dos Poderes, expressamente previsto no art. 2º da Constituição Federal.
Ao longo da breve análise que se fará acerca das três fases pelas quais o posicionamento do STF passou, em relação aos efeitos das decisões dos mandados de injunção, será possível perceber que a separação dos Poderes sempre foi princípio balizador da questão, entretanto, as diferentes interpretações conferidas ao mencionado princípio, decorrentes da evolução natural do pensamento jurídico, servem para justificar, cada uma a seu tempo, o entendimento adotado nas fases identificadas.
O presente artigo aborda a referida mudança de posicionamento no entendimento do STF, lançando, primeiramente, breves considerações sobre o instituto do mandado de injunção, passando pelo princípio da separação dos Poderes para, posteriormente, partir para a análise proposta, que terá como fundamento os próprios julgamentos do Pretório Excelso nas ações de mandado de injunção.
2. Mandado de injunção
Primeiramente, convém trazer alguns posicionamentos sobre a origem do mandado de injunção e a influência do Direito Constitucional alienígena na concepção do mencionado instituto pelo legislador constituinte. Posteriormente, dar-se-á um breve panorama sobre as principais generalidades e características dessa ação constitucional. Ao final, abordar-se-á as principais teorias existentes acerca dos efeitos das decisões proferidas em sede de mandado de injunção.
2. 1. Origem do mandado de injunção brasileiro
Os autores nacionais se dividem acerca da origem do mandado de injunção nos moldes concebidos pelo constituinte brasileiro.
Para Vicente Greco (apud OLIVEIRA, 2004, p. 24) a origem história do instituto remonta ao fim do Século XIV, na Inglaterra, e pode ser definido como uma ordem de um tribunal para alguém fazer ou deixar de fazer determinado ato.
Já para Diomar Ackel Filho (apud OLIVEIRA, 2004, p. 24) a injunção assentaria suas raízes no direito americano, com origem na Bill of Rights.
Celso Ribeiro Bastos (apud OLIVEIRA, 2004, p. 25) preleciona que a medida não encontra precedentes, quer no direito nacional, quer no direito alienígena.
Manoel Gonçalves Ferreira Filho (apud OLIVEIRA, 2004, p. 25) afirma que o instituto nacional não encontra similitude com o writ of injuction, pois este último:
Trata-se de medida judicial que impõe um não–fazer, razão pela qual não pode ser encarado como inspiração do mandado de injunção, cujo objetivo é o exercício de um direito, superando-se a falta de norma regulamentadora.
Para Marcelo Figueiredo (apud OLIVEIRA, 2004, p. 25), a injunção teve origem no direito inglês, passando, a seguir, ao direito norte-americano.
Segundo Wander Paulo Marotta Moreira (apud OLIVEIRA, 2004, p. 25) a injunção do direito pátrio teria alguma similitude com o direito Português, o qual contempla a regra da inconstitucionalidade por omissão.
Sobre a precedência na criação dos writs protetores de garantias individuais, Cavalcanti (apud Oliveira, 2004, p. 13) afirma, categoricamente, que a mesma coube ao direito anglo-saxão.
Sobre o tema, Oliveira (2004, p. 26), conclui que:
Em verdade, o constituinte brasileiro não concebeu o instituto. Não. Amoldou o já existente à realidade brasileira. A sua origem remota está atrelada aos direito inglês e norte-americano, sofrendo influências do direito português.
O entendimento acima exposto representa o posicionamento adotado pela corrente dominante, que defende que o mandado de injunção teria sido uma herança do sistema jurídico inglês e, posteriormente, do norte-americano.
De acordo com Silva (1989, p. 10) “o mandado de injunção surgiu na Inglaterra no fim do séc. XIV com base no princípio da eqüidade”. O mesmo autor completa:
Lá o juízo de eqüidade realiza a integração da Common Law pela injuction; aqui, abre-se agora o caminho para o Poder Judiciário realizar, mediante valorações concretas, a integração constitucional, instrumentando a regra constitucional, mediante ordens de execução do direito que ela estabeleceu e criou em favor do impetrante, quando a omissão do legislador tornar inviável sua aplicabilidade genérica. (1989, p. 20).
Concordam, também, os doutrinadores adeptos dessa corrente dominante que o instituto seria amplamente utilizado na América do Norte com o objetivo de solucionar as lides com fundamento na eqüidade jurídica, sendo utilizado nos Estados Unidos nos casos em que há uma norma jurídica limitada, insuficiente ou incompleta.
De acordo com os defensores dessa corrente, o objetivo da injuction no direito britânico seria o mesmo do mandado de injunção brasileiro: a integração do direito, com fundamento na eqüidade, em casos de omissão do legislador.
A identidade de objetivos entre a injuction e o mandado de injunção corrobora o entendimento, que será a seguir abordado, de que esse remédio heróico foi incluído pelo legislador constituinte no ordenamento jurídico nacional para viabilizar o exercício dos direitos previstos na Constituição Federal, o qual foi obstaculizado pela ausência de norma que o regulamentasse.
Nesse sentido, afirma Santos (1991, p. 32):
O mandado de injunção é a única ação constitucional que autoriza o juiz a romper com a tradicional aplicação rígida de lei ao caso concreto para, de acordo com o pedido e o ordenamento jurídico, construir uma solução satisfatória, de modo a concretizar o direito constitucional do impetrante. Esta nos parece ser a finalidade do mandado de injunção brasileiro e igualmente foi a finalidade do seu ancestral inglês e norte-americano.
Assim, a doutrina majoritária defende, com propriedade, que o mandado de injunção conforme concebido pela Constituição Federal brasileira, sofreu influências do direito anglo-saxão, norte-americano e português, especialmente quanto a sua finalidade de concretizar o direito constitucionalmente garantido ao impetrante, tendo o legislador adequado o instituto à realidade brasileira.
Entretanto, tal finalidade “concretista” nem sempre foi reconhecida pelos julgamentos proferidos pelo STF, conforme se demonstrará em capítulo próprio.
2. 2. Conceito e objetivo do mandado de injunção
A Constituição Federal, ao prever o mandado de injunção, assim dispôs:
Art. 5º………………………………
LXXI – conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania.
Do dispositivo constitucional acima transcrito pode-se concluir que o mandado de injunção tem como objetivo garantir que o impetrante exerça os seus direitos e liberdades constitucionalmente previstos, além de suas prerrogativas ligadas à nacionalidade, soberania e cidadania, que foram inviabilizados pela omissão do legislador em produzir a norma regulamentadora necessária para tanto.
Os ensinamentos de Morais (1998, p.159), auxiliam a conceituar o instituto:
O Mandado de Injunção consiste em uma ação constitucional de caráter civil, e de procedimento especial, que visa suprir uma omissão do Poder Público, no intuito de viabilizar o exercício de um direito, uma liberdade ou uma prerrogativa previsto na Constituição Federal.
De acordo com Moreira (2005), o mandado de injunção “é o remédio constitucional que visa a combater a falta de regulamentação legal, um dos pontos em que se atribui falta de efetividade ao texto constitucional”.
Silva (1989, p. 17) conceitua o instituto como um “meio de invocar a atividade jurisdicional para buscar a aplicação concreta da norma constitucional atribuidora de direitos à falta de regulamentação que lhe dê eficácia e aplicabilidade genérica”.
Esse mesmo autor conclui que (1989, p. 51):
O mandado de injunção é, portanto, um instituto processual civil, outorgado ao legítimo interessado como remédio constitucional para a obtenção, mediante decisão judicial de equidade, a imediata e concreta aplicação de direito, liberdade ou prerrogativa inerente à nacionalidade, à soberania popular ou à cidadania, quando a falta de norma regulamentadora torne inviável o seu exercício.
Uadi Lammêgo Bulos (apud FIRMINO, [online], ://www.universojuridico.com.br/publicacoes/doutrinas/6266/Mandado_de_Injuncao_e_a_Interpretacao_do_STF) contribui com precisão para a tarefa de conceituar o instituto, ao afirmar que “o mandado de injunção tem a natureza de uma ação civil, de caráter essencialmente mandamental e procedimento específico, destinado a combater a síndrome da inefetividade das constituições”.
2. 3. Noções gerais sobre o mandado de injunção
A competência para conhecer do mandado de injunção é fundamentada pelo critério da origem da omissão legislativa, cabendo ao STF julgar as ações nas hipóteses em que a elaboração da norma regulamentadora faltante seja de responsabilidade do Presidente da República, do Congresso Nacional, da Câmara dos Deputados, do Senado Federal, das Mesas de uma dessas Casas Legislativas, dentre outros órgãos.
No pólo passivo, o mandado de injunção terá sempre pessoas públicas e suas autoridades, já o pólo ativo será ocupado por qualquer pessoa que tenha um direito, liberdade ou prerrogativa constitucional inviabilizado em virtude de uma omissão normativa, sendo admitida a impetração de mandado de injunção coletivo.
Os pressupostos para o cabimento do mandado de injunção podem ser identificados como dois: a existência de um direito constitucional do impetrante e o impedimento no exercício do mesmo decorrente da ausência de norma regulamentadora.
Silva (1989, p. 21) identificou o pressuposto dessa ação constitucional como “a falta de norma reguladora que torne inviável o exercício dos direitos e prerrogativas indicadas”.
Considerando a ausência de lei específica a regulamentar o procedimento do mandado de injunção, entendeu-se que se aplica ao mandado de injunção o rito do mandado de segurança.
A jurisprudência da Suprema Corte já se pacificou no sentido de não ser cabível a concessão de medida liminar nesse tipo de ação. Entretanto, há doutrinadores que defendem que se se aplica por analogia a lei do Mandado de Segurança, seria plenamente possível a concessão de liminar também nesse tipo de ação, sempre que presentes os requisitos dela autorizadores (perigo da demora e fumaça do bom direito).
Oportuno registrar que o mandado de injunção é um remédio heróico que se assemelha à Ação de Inconstitucionalidade por Omissão, pois ambas as ações visam ao suprimento de norma regulamentadora que tornou inviável o exercício de direitos e garantias. Entretanto, entre os dois institutos há diferenças quanto à legitimação e quanto ao objeto.
O campo de atuação do mandado de injunção é mais restrito que o da ADI por omissão, pois essa pode ser ajuizada em face de qualquer omissão ante a não edição de norma infraconstitucional regulamentadora. Já o mandado de injunção só se mostra cabível quando a omissão de norma regulamentadora ocorrer quanto aos direitos e liberdades constitucionais (arts. 5º da CF) e prerrogativas inerentes à nacionalidade (arts. 12 e 13 da CF), à soberania (art. 2º da CF) e à Cidadania (arts. 14 e 15).
Ainda, para se admitir a injunção, devem ser atendidos aos requisitos de ausência de regulamentação do direito previsto na Constituição Federal e da inviabilidade do exercício do direito subjetivo decorrente da omissão normativa.
Outra diferença entre os institutos em comento refere-se aos legitimados para propor as demandas. O mandado de injunção pode ser impetrado por qualquer cidadão que tenha o exercício de seus direitos e liberdades constitucionais obstado pela ausência de norma regulamentar. Já na ADI por omissão a capacidade postulatória é bem mais restrita, devendo ser observado o rol taxativo previsto no art. 103 da Carta Magna[1].
Sobre a diferença entre o mandado de injunção e a ADI por omissão, afirma Bastos (apud SOUTO MAIOR FILHO, [online], http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=2056):
É necessária, pois, a existência de um direito subjetivo concedido em abstrato pela Constituição, cuja fruição está a depender de norma regulamentadora. Diferente é a situação quando a Constituição apenas outorga expectativa de direito, e, portanto, a norma regulamentadora faltante se presta a transformar essa mera expectativa de direito em direito subjetivo. Nesse caso, não cabe mandado de injunção e sim a ação direta de inconstitucionalidade por omissão.
De fato, as mencionadas ações devem receber tratamento diferenciado, pois foi essa a intenção do legislador constitucional, que se entendesse que as ações tivessem o mesmo objetivo não teria colocado as duas formas de ações na Constituição Federal.
2.4. Teorias sobre os efeitos das decisões no mandado de injunção
A doutrina costuma apontar a existência de algumas teorias que discorrem sobre as decisões proferidas nos mandados de segurança e seus efeitos.
Segundo Rodrigo Reis Mazzei (apud SABRA, 2008), a teoria dos efeitos das decisões dos mandados de injunção poderia ser dividida em: Teoria da Subsidiariedade, Teoria da Independência Juridicional, Teoria da Resolutividade e Teoria Intermediária.
A Teoria da Subsidiariedade limita o papel do Poder Judiciário a declarar a mora legislativa, sendo o mandado de injunção ação meramente declaratória que objetiva apenas cientificar o legislador omisso de seu estado de inércia.
A Teoria da Independência Jurisdicional já defende uma postura ativa do órgão judiciário, a quem caberia editar a norma geral, com eficácia erga omnes, regulamentando o caso concreto até a elaboração da lei.
Por sua vez, a Teoria da Resolutividade também acredita na atividade integrativa do Poder Judiciário, de modo a possibilitar a imediata efetivação da promessa de direito subjetivo, entretanto, a decisão final só produziria efeito inter partes.
Por fim, a Teoria Intermediária defende que o Poder Judiciário deveria conferir prazo para o responsável pela iniciativa legislativa sanar a omissão, ficando, ao final, o prejudicado autorizado a exercer o direito invocado, através de liquidação pela via jurisdicional ordinária, nos casos de pretensão condenatória. A eficácia inter partes perduraria até a elaboração da lei.
Já segundo Barbosa ([online], www.juspodivm.com.br), há duas grandes teorias acerca dos efeitos do Mandado de Injunção: a teoria concretista, que é dividida em individual e geral, e a teoria não concretista.
Pelo entendimento concretista, a decisão proferida em mandado de injunção é constitutiva, capaz de declarar a omissão legislativa e implementar o exercício do direito até que se elabore a lei pelo poder competente.
A subdivisão do entendimento concretista em individual ou geral decorre da extensão dos efeitos da decisão que possibilitou a implementação do exercício do direito: pela primeira corrente, os efeitos da decisão seriam limitados inter partes; já pelo entendimento concretista geral, os efeitos da decisão beneficiariam a todos, sendo, portanto, erga omnes.
Ainda, o entendimento concretista individual pode ser subdividido em concretista individual intermediário e concretista individual direto. A primeira vertente entende que, após o julgamento do mandado de injunção deveria ser fixado um prazo – sugerido de 120 dias – para a elaboração da lei pelo Poder Legislativo. Não cumprido o prazo, mantendo-se a inércia, o Judiciário poderia fixar as condições para o exercício do direito.
Já pela doutrina concretista individual direta, o Poder Judiciário, ao julgar procedente o mandado de injunção, de pronto já implementaria a eficácia da norma constitucional ao autor, beneficiando, entretanto, somente a parte impetrante.
Em sentido contrário, a corrente não concretista afirma que a decisão do mandado de injunção teria a finalidade apenas de reconhecer formalmente a inércia do legislativo, não devendo estabelecer qualquer medida jurisdicional que forneça prontamente condições que viabilizem o exercício do direito constitucional objeto da omissão.
Como irá se verificar nos capítulos seguintes, tomando por base essa ultima classificação (concretista e não concretista) o posicionamento majoritário do Supremo Tribunal Federal, inicialmente adotou a teoria não concretista, tendo, posteriormente, evoluído para a adoção da teoria concretista, ora individual, ora geral.
Entretanto, o que se perceberá ao longo da análise da postura do STF é que a adoção de uma ou de outra corrente sempre teve sua justificativa intimamente relacionada com o princípio da separação dos Poderes, motivo pelo qual convém, antes de analisar os julgamentos proferidos pela Suprema Corte nos mandados de injunção, tecer breves considerações sobre o referido princípio fundamental dos estados democráticos de direito.
3. O princípio da separação dos Poderes
A teoria da separação dos Poderes do Estado está presente na maioria das constituições de Estados democráticos do mundo moderno. A divisão entre os Poderes Legislativo, Judiciário e Executivo existe em diversos países, entretanto, cada Estado, partindo da idéia original, a desenvolveu de acordo com as situações sociais, políticas e jurídicas específicas.
O objetivo da separação dos Poderes foi assegurar a liberdade dos indivíduos, aumentando a eficiência e, simultaneamente, enfraquecendo o Poder Estatal. Tal postura passou a ser necessária após a experiência do Absolutismo.
A primeira sistematização doutrinária sobre a teoria da separação dos Poderes surgiu com John Locke que, em sua obra “Segundo Tratado sobre o Governo”, identificou a existência de quatro funções fundamentais exercidas pelo Estado: a legislativa, cabível ao Parlamento; a executiva, exercida pelo Rei; a federativa, um desdobramento da função executiva destinada às relações fora do Estado; e a última que se referia à atribuição do Rei fazer o bem público sem estar subordinado às regras.
Como se percebe, essa primeira idéia da separação dos Poderes não se assemelha muito a que hoje é conhecida, pois, foi só no século XVIII que Montesquieu, em “O Espírito das Leis”, delimitou com maior clareza a existência de um poder para legislar, um poder para executar as ordens e tarefas de governo e outro poder para julgar, todos eles harmônicos e independentes entre si.
Esta teoria serviu de fundamento para o movimento constitucionalista que posteriormente criou o sistema de separação rígida de Poderes, tendo influenciado a Constituição dos Estados Unidos da América, conforme pode se verificar do disposto na parte inicial daquele diploma.
Contudo, tal rigidez, que também foi adotada pelo sistema brasileiro, é mitigada pelo mecanismo de freios e contrapesos (check and balances), que busca a harmonização dos Poderes, possibilitando o controle recíproco e a colaboração entre os mesmos.
Nesse sentido é que, segundo Chimenti (apud PRADO, [online], http://www.jurisway.org.br/v2/dhall.asp?id_dh=1042), surge a interpenetração dos Poderes, caracterizada pelo exercício, em ocasiões excepcionais, de funções de outro poder, além daquelas suas típicas.
Entretanto, no Estado Democrático de Direito, não se deve admitir que o chamado “ativismo judicial” se sobreponha ao poder do legislador democrático. Contudo, também se deve compreender que o Poder Legislativo, por muitas vezes, se omite no desempenho de sua tarefa de elaborar normas que regulamentem determinadas situações, o que traz prejuízos aos jurisdicionados, que têm o exercício de seus direitos restringido ou inviabilizado.
É justamente nesse cenário de omissão legislativa, que prejudica direitos e garantias fundamentais, ou afeta a liberdade, a cidadania ou a soberania popular que tem cabimento o mandado de injunção.
Assim, em que pese a Constituição reconhecer e assegurar a separação dos Poderes, tal princípio poderá ser atenuado sempre que a sua interpretação inflexível acarrete a violação de direitos e garantias contidos naquele mesmo diploma legal.
A flexibilização do princípio da separação dos Poderes pode ser observada ao longo da evolução do posicionamento adotado pelo STF no julgamento dos Mandados de Injunção e na extensão de seus efeitos.
Esse tipo de flexibilização é relevante para oportunizar um equilíbrio na preservação do estado democrático, onde os Poderes contribuem para o crescimento do Estado, sem se sobreporem uns aos outros.
Assim, em que pese a expressa disposição constitucional que garante que os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário são independentes e harmônicos entre si (art. 2º da CF[2]), não se pode admitir que a inércia do legislador faça da Constituição um rol de intenções sem qualquer efetividade, devendo ser viabilizado o exercício e a fruição dos direitos que nela estão previstos, sem que isso seja visto como violação ao citado princípio.
Justamente com fundamento no raciocínio acima exposto é que foi possível a evolução do posicionamento do STF acerca dos efeitos das decisões dos mandados de injunção. Partiu-se de um posicionamento conservador, em que o princípio da separação dos Poderes era interpretado de uma maneira excessivamente rígida, sem qualquer flexibilidade, até passar para adoção de uma postura mais ativista, mitigando, sem contudo ignorar ou violar o citado princípio.
4. A evolução da postura do STF sobre a extensão dos efeitos das decisões proferidas no julgamento dos mandados de injunção
Considerando que a ação constitucional de mandado de injunção “estreou” na Constituição Federal de 1988, a primeira manifestação da Suprema Corte em ações dessa natureza ocorreu no julgamento realizado em 23 de novembro de 1989.
Nessa data, ocorreu o julgamento do emblemático mandado de injunção nº 107, oportunidade na qual a Suprema Corte decidiu diversas questões de ordem acerca desse instituto, tendo inclusive deliberado a favor da auto-aplicabilidade do mesmo, independente da edição de norma regulamentadora.
O reconhecimento da auto-aplicabilidade encontrou fundamento no disposto no §1º do art. 5º[3] da própria Constituição Federal, que assegura que as normas definidoras de direitos e garantias fundamentais são auto-aplicáveis.
No referido julgamento a Suprema Corte também firmou seu posicionamento primeiro sobre os efeitos das decisões proferidas nos mandados de injunção, posicionamento esse que viria a ser mantido até meados de 2006.
Desde o referido julgamento até os dias atuais, houve uma salutar evolução no entendimento do STF sobre o mandado de injunção, especialmente com relação aos seus efeitos. Essa evolução pode ser dividia em três fases, as quais passamos a analisar.
4.1. Primeira fase – Predominância da Teoria não Concretista
Inicialmente, a Corte Máxima se mostrou tímida quanto ao papel do mandado de injunção, demonstrando preocupação exacerbada com o princípio da separação dos Poderes concebido na sua forma mais primitiva e inflexível.
Assim, o STF, num primeiro momento, posicionou-se no sentido de que o papel do judiciário, nesse tipo de ação, devia limitar-se a declarar a inconstitucionalidade da omissão, dando ciência ao órgão responsável pela produção da norma omissa, para que ele adotasse as providências necessárias.
Percebe-se que tal postura reflete o defendido pela teoria não concretista, exposta em tópico anterior, pois caberia ao Judiciário apenas declarar a omissão.
O precedente que melhor representa o entendimento adotado nesse primeiro momento é da lavra do Ministro Moreira Alves, e refere-se ao já mencionado e pioneiro Mandado de Injunção nº 107. Vejamos a ementa da referida decisão:
Mandado de Injunção. Questão de ordem sobre a sua auto-aplicabilidade ou não.
Em face dos textos da Constituição Federal relativos aos mandado de injunção, é ele ação outorgada ao titular de direito, garantia ou prerrogativa a que alude o artigo 5º, LXXI, dos quais visa a obter do Poder Judiciário a declaração de inconstitucionalidade dessa omissão se estiver caracterizada a mora em regulamentar por porte do Poder, órgão, entendida ou autoridade de que ela dependa, com a finalidade de que se lhe dê ciência dessa declaração, para que adote providências necessárias, à semelhança do que ocorre com a ação direta de inconstitucionalidade por omissão (artigo 103, §2º da Carta Magna), e de que se determine, se se tratar de direito constitucional oponível contra o Estado, a suspensão dos processos judiciais ou administrativos de que possa advir para o impetrante dano que não ocorreria se não houvesse a omissão fixada.[4]
O Ministro Relator, ao proferir seu voto, defendeu que a possibilidade de o Tribunal editar uma regra geral encontraria obstáculos insuperáveis constitucionais, pois tal prática não seria compatível com o princípio da separação dos Poderes e com o princípio da democracia. Acrescentou, ainda, que o modelo constitucional não continha norma autorizadora para a edição de regras autônomas pelo juizado, em substituição à atividade do legislador, ainda que com vigência provisória, como indicado pela doutrina[5].
Os Ministros Sepúlveda Pertence e Aldir Passarinho também enfatizaram, em seus votos, que entendimento diverso do adotado por aquela Corte, afrontaria o princípio da separação dos Poderes, pois se estaria admitindo que o Poder Judiciário pudesse baixar legislação supletiva para o caso concreto.
Pela leitura da ementa do acórdão, pode-se verificar que o mandado de injunção foi equiparado à ação direita de inconstitucionalidade por omissão, um equívoco, pois se tratam de ações totalmente distintas.
Ora, a ação direta de inconstitucionalidade por omissão realmente tem a finalidade de dar ciência da omissão inconstitucional ao órgão responsável para a elaboração da norma faltante. Entretanto, não seria razoável que o legislador atribuísse o mesmo objetivo para institutos diversos, podendo-se concluir que a finalidade do mandado de injunção é distinta daquela garantida à ADI por omissão. É um juízo lógico que duas ações diversas não podem ser idênticas.
Ressalte-se, novamente, que a única característica comum existente entre o mandado de injunção e a ação de inconstitucionalidade por omissão é o fato de que ambos têm como objeto a ausência de lei regulamentadora própria, do restante, os institutos têm objetivos e características distintos, como já debatido em tópico anterior.
Esse precedente, leading case na matéria relativa à omissão, causou grande frustração nos operadores do direito que, a princípio, acreditaram que o instituto seria instrumento de grande utilidade na efetivação dos direitos e liberdades constitucionais, entretanto, diante do posicionamento do STF, passaram a vê-lo como remédio heróico inócuo.
As críticas à postura adotada pelo STF foram muitas, e basicamente se fundavam na argumentação de que o objetivo do mandado de injunção, como o próprio nome sugere, deveria se referir à imposição/efetivação do direito, o que não estaria sendo observado pelas decisões do STF que se limitava a declarar a omissão do Poder Legislativo.
Outro exemplo de Mandado de Segurança julgado com fundamento no entendimento característico dessa primeira fase é o Mandado de Injunção nº 219, no qual diversos deputados federais e senadores paulistas requereram fosse efetivado o direito previsto no art. 43, § 1º da Constituição Federal[6], mediante a determinação, pelo STF, de que o número de deputados por São Paulo fosse equivalente a 70, limite máximo estabelecido pelo texto constitucional, conforme deveria constar na lei não editada.
Seguindo o posicionamento do mandado de injunção precedente (o citado MI 107), o STF limitou-se a deferir parcialmente o mandado de injunção apenas para reconhecer a omissão do Congresso Nacional quanto à elaboração da lei complementar, dando ciência dessa mora inconstitucional para que suprisse a omissão em tempo útil[7].
Esses precedentes representativos da primeira postura adotada pelo STF, provocaram um “engessamento” na utilização do referido remédio constitucional, que por muitos anos passou a ter sua aplicabilidade restringida ante a equiparação com a ADI por omissão.
4.2. Segunda fase – Predominância da Teoria não Concretista, com fixação de prazo para a edição da lei
A segunda fase que se pode identificar no posicionamento adotado pelo STF sobre o mandado de injunção não representou grande avanço em relação à primeira.
A diferença que se pode notar nos precedentes característicos dessa segunda fase é que, além de reconhecer a mora legislativa, como na primeira fase, o STF passou a fixar um prazo para que a norma fosse editada, garantindo, também, “desde logo”, o direito do impetrante de ajuizar, com fundamento no direito comum, ação de reparação de natureza econômica instituída em seu favor.
Foi no Mandado de Injunção nº 283, da relatoria do Ministro Sepúlveda Pertence, que o Tribunal, pela primeira vez, estipulou prazo para que fosse preenchida a lacuna relativa à mora legislativa. Vejamos a ementa do acórdão:
Mandado de injunção: mora legislativa na edição da lei necessaria ao gozo do direito a reparação econômica contra a União, outorgado pelo art. 8., par. 3., ADCT: deferimento parcial, com estabelecimento de prazo para a purgação da mora e, caso subsista a lacuna, facultando o titular do direito obstado a obter, em juízo, contra a União, sentença liquida de indenização por perdas e danos. 1. O STF admite – não obstante a natureza mandamental do mandado de injunção (MI 107 – QO) – que, no pedido constitutivo ou condenatório, formulado pelo impetrante, mas, de atendimento impossivel, se contem o pedido, de atendimento possivel, de declaração de inconstitucionalidade da omissão normativa, com ciencia ao órgão competente para que a supra (cf. Mandados de Injunção 168, 107 e 232). 2. A norma constitucional invocada (ADCT, art. 8., par. 3. – “Aos cidadaos que foram impedidos de exercer, na vida civil, atividade profissional especifica, em decorrência das Portarias Reservadas do Ministério da Aeronáutica n. S-50-GM5, de 19 de junho de 1964, e n. S-285-GM5 será concedida reparação econômica, na forma que dispuser lei de iniciativa do Congresso Nacional e a entrar em vigor no prazo de doze meses a contar da promulgação da Constituição” – vencido o prazo nela previsto, legitima o beneficiario da reparação mandada conceder a impetrar mandado de injunção, dada a existência, no caso, de um direito subjetivo constitucional de exercício obstado pela omissão legislativa denunciada. 3. Se o sujeito passivo do direito constitucional obstado e a entidade estatal a qual igualmente se deva imputar a mora legislativa que obsta ao seu exercício, e dado ao Judiciario, ao deferir a injunção, somar, aos seus efeitos mandamentais tipicos, o provimento necessario a acautelar o interessado contra a eventualidade de não se ultimar o processo legislativo, no prazo razoável que fixar, de modo a facultar-lhe, quanto possivel, a satisfação provisoria do seu direito. 4. Premissas, de que resultam, na espécie, o deferimento do mandado de injunção para: a) declarar em mora o legislador com relação a ordem de legislar contida no art. 8., par. 3., ADCT, comunicando-o ao Congresso Nacional e a Presidencia da Republica; b) assinar o prazo de 45 dias, mais 15 dias para a sanção presidencial, a fim de que se ultime o processo legislativo da lei reclamada; c) se ultrapassado o prazo acima, sem que esteja promulgada a lei, reconhecer ao impetrante a faculdade de obter, contra a União, pela via processual adequada, sentença liquida de condenação a reparação constitucional devida, pelas perdas e danos que se arbitrem; d) declarar que, prolatada a condenação, a superveniencia de lei não prejudicara a coisa julgada, que, entretanto, não impedira o impetrante de obter os benefícios da lei posterior, nos pontos em que lhe for mais favorável. (MI º 283, Relator Ministro Sepúlveda Pertence, DJ 14.11.1991).
O Mandado de Injunção nº 284 reforçou a idéia exposta no mandado de injunção posterior (MI nº 283). A ação teve como Relator o Ministro Marco Aurélio, tendo sido julgada em 21.11.1992, com publicação do acórdão em 26.06.1992, o qual foi assim ementado:
MANDADO DE INJUNÇÃO – NATUREZA JURÍDICA – FUNÇÃO PROCESSUAL – ADCT, ART. 8., PARÁGRAFO 3. (PORTARIAS RESERVADAS DO MINISTÉRIO DA AERONÁUTICA)- A QUESTÃO DO SIGILO – MORA INCONSTITUCIONAL DO PODER LEGISLATIVO – EXCLUSAO DA UNIÃO FEDERAL DA RELAÇÃO PROCESSUAL- ILEGITIMIDADE PASSIVA “AD CAUSAM” – “WRIT” DEFERIDO. – O caráter essencialmente mandamental da ação injuncional – consoante tem proclamado a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal – impõe que se defina, como passivamente legitimado “ad causam”, na relação processual instaurada, o órgão público inadimplente, em situação de inércia inconstitucional, ao qual e imputavel a omissão causalmente inviabilizadora do exercício de direito, liberdade e prerrogativa de indole constitucional. No caso, “ex vi” do parágrafo 3. do art. 8. do Ato das Disposições Constitucionais Transitorias, a inatividade inconstitucional e somente atribuivel ao Congresso Nacional, a cuja iniciativa se reservou, com exclusividade, o poder de instaurar o processo legislativo reclamado pela norma constitucional transitoria. – Alguns dos muitos abusos cometidos pelo regime de exceção instituido no Brasil em 1964 traduziram-se, dentre os varios atos de arbitrio puro que o caracterizaram, na concepção e formulação teorica de um sistema claramente inconvivente com a pratica das liberdades publicas. Esse sistema, fortemente estimulado pelo “perigoso fascinio do absoluto” (Pe. JOSEPH COMBLIN, “A Ideologia da Segurança Nacional – o Poder Militar da America Latina”, p. 225, 3. ed., 1980, trad. de A. Veiga Fialho, Civilização Brasileira), ao privilegiar e cultivar o sigilo, transformando-o em “praxis” governamental institucionalizada, frontalmente ofendeu o princípio democratico, pois, consoante adverte NORBERTO BOBBIO, em lição magistral sobre o tema (“O Futuro da Democracia”, 1986, Paz e Terra), não há, nos modelos politicos que consagram a democracia, espaco possivel reservado ao misterio. O novo estatuto político brasileiro – que rejeita o poder que oculta e não tolera o poder que se oculta – consagrou a publicidade dos atos e das atividades estatais como valor constitucionalmente assegurado, disciplinando-o, com expressa ressalva para as situações de interesse público, entre os direitos e garantias fundamentais. A Carta Federal, ao proclamar os direitos e deveres individuais e coletivos (art. 5.), enunciou preceitos basicos, cuja compreensão e essencial a caracterização da ordem democratica como um regime do poder visivel, ou, na lição expressiva de BOBBIO, como “um modelo ideal do governo público em público”. – O novo “writ” constitucional, consagrado pelo art. 5., LXXI, da Carta Federal, não se destina a constituir direito novo, nem a ensejar ao Poder Judiciario o anomalo desempenho de funções normativas que lhe são institucionalmente estranhas. O mandado de injunção não e o sucedaneo constitucional das funções político-juridicas atribuidas aos órgãos estatais inadimplentes. A propria excepcionalidade desse novo instrumento jurídico “impõe” ao Judiciario o dever de estrita observancia do princípio constitucional da divisão funcional do poder. – Reconhecido o estado de mora inconstitucional do Congresso Nacional – único destinatario do comando para satisfazer, no caso, a prestação legislativa reclamada – e considerando que, embora previamente cientificado no Mandado de Injunção n. 283, rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, absteve-se de adimplir a obrigação que lhe foi constitucionalmente imposta, torna-se “prescindivel nova comunicação a instituição parlamentar, assegurando-se aos impetrantes, “desde logo”, a possibilidade de ajuizarem, “imediatamente”, nos termos do direito comum ou ordinário, a ação de reparação de natureza econômica instituida em seu favor pelo preceito transitorio.
Da leitura da própria ementa verifica-se que a justificativa para a não adoção de uma postura mais ativa pelo STF novamente relaciona-se ao princípio da separação dos Poderes, consignando que o mandado de injunção não poderia “constituir direito novo”, pois “a própria excepcionalidade desse novo instrumento jurídico ‘impõe’ ao Judiciário o dever de estrita observância do princípio constitucional da divisão funcional do poder”.
Outra evolução que se pode observar no julgamento é que foi assegurando “aos impetrantes, “desde logo”, a possibilidade de ajuizarem, “imediatamente”, nos termos do direito comum ou ordinário, a ação de reparação de natureza econômica instituída em seu favor”.
Outro mandado de injunção representante dessa segunda fase é o nº 232, cujo Relator foi o Ministro Moreira Alves, com julgamento em 01.08.1991 e publicação em 27.03.1992. Vejamos a ementa do acórdão:
Mandado de injunção. – Legitimidade ativa da requerente para impetrar mandado de injunção por falta de regulamentação do disposto no par. 7. do artigo 195 da Constituição Federal. – Ocorrencia, no caso, em face do disposto no artigo 59 do ADCT, de mora, por parte do Congresso, na regulamentação daquele preceito constitucional. Mandado de injunção conhecido, em parte, e, nessa parte, deferido para declarar-se o estado de mora em que se encontra o Congresso Nacional, a fim de que, no prazo de seis meses, adote ele as providencias legislativas que se impoem para o cumprimento da obrigação de legislar decorrente do artigo 195, par.7., da Constituição, sob pena de, vencido esse prazo sem que essa obrigação se cumpra, passar o requerente a gozar da imunidade requerida.
O julgamento desse mandado de injunção demonstrou determinado avanço de posicionamento pelo STF pois, além da declaração da mora e concessão de prazo para edição da norma, restou assegurada ao impetrante a possibilidade de gozar do direito reclamado (imunidade), caso o prazo fixado para a elaboração fosse vencido sem que a obrigação houvesse se cumprido.
Percebe-se, nesse julgamento, a adoção de uma postura próxima a da corrente concretista individual, pois o STF declarou a omissão legislativa, fixando prazo para que a mesma fosse sanada. Em caso de não cumprimento da obrigação, a Corte Máxima garantiu a implementação do direito (imunidade) até a elaboração da lei pelo poder competente. Entretanto, os efeitos dessa decisão ficaram restritos apenas às partes.
Tal alteração no posicionamento da Suprema Corte já dava indícios de que os clamores no sentido de ser necessária uma mudança na interpretação dos efeitos das decisões proferidas nos mandados de segurança estavam sendo ouvidos. Pode-se perceber um afastamento da orientação inicialmente perfilhada, sem que, contudo, o Supremo assumisse compromisso com o exercício de uma típica função legislativa.
As decisões proferidas nos Mandados de Injunção nº 283, 232 e 284, sinalizaram para uma nova compreensão do instituto e a aceitação de uma solução “normativa” para a decisão judicial. Tal postura deu início a terceira fase da evolução do entendimento do STF sobre o tema.
4.3. Terceira fase – Predominância da Teoria Concretista
Como se pode verificar, o Supremo Tribunal Federal, por longos anos, defendeu a aplicação da teoria não-concretista, fato que tornou o mandado de injunção em um instrumento inócuo, pois, não propiciava ao impetrante o efetivo exercício do direito constitucional até então inviabilizado pela falta de regulamentação infraconstitucional.
Entretanto, desde o fim do ano de 2006 e, com maior vigor no ano de 2007, o STF passou a rever sua posição quanto aos efeitos da decisão no mandado de injunção.
Como precedente dessa salutar mudança, pode-se citar o voto do ministro relator Marco Aurélio, nos autos do Mandado de Injunção de nº 721, datado de 27.09.2006, do qual se destacam os seguintes trechos:
É tempo de se refletir sobre a timidez inicial do Supremo quanto ao alcance do mandado de injunção, ao excesso de zelo, tendo em vista a separação e a harmonia entre os Poderes. É tempo de se perceber a frustração gerada pela postura inicial, transformando o mandado de injunção em ação simplesmente declaratória do ato omissivo, resultando em algo que não interessa, em si, no tocante à prestação jurisdicional, tal como consta no inciso LXXI do art. 5º da Constituição Federal, ao cidadão. Impetra-se mandado de injunção não para lograr-se de certidão de omissão do Poder incumbido de regulamentar o direito a liberdades constitucionais, a prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania. Busca-se o Judiciário na crença de lograr a supremacia da Lei Fundamental, a prestação jurisdicional que afaste as nefastas conseqüências da inércia do legislador. Conclamo, por isso, o Supremo, na composição atual, a rever a óptica inicialmente formalizada, entendendo que, mesmo assim, ficará aquém da atuação dos Tribunais do Trabalho, no que, nos dissídios coletivos, a eles a Carta reserva, até mesmo, a atuação legiferante, desde que consoante prevê o § 2º do artigo 114 da constituição Federal, sejam respeitadas as disposições mínimas legais de proteção ao trabalho (…).
O voto acima transcrito pode ser visto como verdadeiro marco na evolução da jurisprudência do STF, pois foi a partir de então que a intenção de rever o posicionamento anteriormente adotado foi deflagrada, dando início o que identificamos como “terceira fase”.
Foi no dia 25.10.2007 que a mudança de posição do Supremo Tribunal Federal se concretizou. Nesse dia, o Supremo julgou os Mandados de Injunção nº 670, 708 e 712, que tinham como objetivo a mora do legislador em regulamentar o direito de greve dos servidores públicos.
Ao analisar o caso, a Corte Suprema passou a admitir “uma moderada sentença de perfil aditivo” [8]. Na oportunidade, o Ministro Gilmar Mendes, na qualidade de relator, votou pelo acolhimento do mandado de injunção para regulamentar o direito de greve dos servidores públicos por meio da aplicação supletiva da Lei nº 7.783/88.
Pela análise dessas decisões, pode-se afirmar que prevaleceu a adoção da teoria concretista geral, pois as decisões resguardaram, garantido de imediato, o exercício de greve para todo o setor público.
A nova visão da Suprema Corte foi muito bem representada nas palavras do Ministro Celso de Mello, proferidas na referida sessão de julgamento. Vejamos:
…Não se pode tolerar sob pena de fraudar-se a vontade da Constituição, esse estado de continuada, inaceitável, irrazoável e abusiva inércia do Congresso Nacional, cuja omissão, além de lesiva ao direito dos servidores públicos civis – a quem vem se negando, arbitrariamente, o exercício do direito de greve, já assegurado pelo texto constitucional -, traduz um incompreensível sentimento de desapreço pela autoridade, pelo valor e pelo alto significado de que se reveste a Constituição da República.
A terceira fase da postura do STF acerca dos efeitos das decisões dos mandados de segurança, após anos de “engessamento” do instituto, finalmente coincide com a vontade do legislador constituinte, quando optou pela inclusão dessa ação no ordenamento jurídico pátrio.
Entretanto, conforme propõe o presente estudo, ainda é necessário confrontar esse novo posicionamento com a separação dos Poderes, de modo a verificar se estaria havendo ou não uma violação do referido princípio.
A princípio, convém fixar a premissa de que a separação dos Poderes não pode ser vista de maneira absoluta, de modo a impedir que o Poder Judiciário possibilite a efetivação e garantia dos direitos e liberdades constitucionalmente assegurados, sob pena da constituição virar rol de direitos e garantias sem qualquer efetividade.
A atividade judicial deve ser vista como possuidora também de funções normativas complementares à atividade do Poder Legislativo, sem que, em qualquer momento, transpareça qualquer afronta ou desprestígio àquele poder. Tal atividade deve ser encarada como uma atividade necessária à plena atuação jurisdicional. Nesse sentido, Kelsen (apud Gonçalves, [online], http://www.jfrj.gov.br/Rev_SJRJ/num23/artigos/artigo_5.pdf) registrou suas idéias:
“O conceito de separação de poderes” designa um princípio de organização política. Ele pressupõe que os chamados três poderes podem ser determinados como três funções distintas e coordenadas do estado, e que é possível definir fronteiras separando cada um dessas três funções. No entanto, essa pressuposição não é sustentada pelos fatos. Como vimos não há três mas duas funções básicas do estado: a criação e a aplicação do Direito, e essas funções são infra e supra-ordenadas […] É impossível atribuir a criação do Direito a um órgão e sua aplicação (execução) a outro, de modo tão exclusivo que nenhum órgão venha a cumprir simultaneamente ambas as funções.
Além de não se poder admitir a “exclusividade de atuação” a cada um dos três Poderes, no desempenho de suas tarefas típicas, também há que se observar, com fundamento no direito comparado, que outros países (especialmente Alemanha e Itália) também admitem que o Judiciário profira decisões normativas como solução legítima nos casos de omissões inconstitucionais, sem que isso seja tido como ofensa ao modelo da separação dos Poderes. A atuação do Judiciário deve, primordialmente, sempre visar a tutela efetiva de direitos fundamentais.
A questão da separação dos Poderes à luz do novo posicionamento do STF na apreciação dos mandados de injunção foi brilhantemente abordada em recente decisão da lavra do Ministro Eros Grau, proferida no Mandado de Injunção nº 786, publicada em 07.05.2009. Dessa decisão destacam-se os seguintes trechos, pertinentes ao tema ora em debate:
… 14. Toda a exposição que segue neste apartado do meu voto é extraída de justificativa de autoria do Professor JOSÉ IGNÁCIO BOTELHO DE MESQUITA […] “1. É princípio assente em nosso direito positivo que, não havendo norma legal ou sendo omissa a norma existente, cumprirá ao juiz decidir o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito (Lei de Introdução ao Cód. Civil, art. 4º; Cód. Proc. Civil, art. 126). Assim, o que pode tornar inviável o exercício de algum direito, liberdade ou prerrogativa constitucionalmente assegurados não será nunca a ‘falta de norma regulamentadora’ mas, sim, a existência de alguma regra ou princípio que proíba ao juiz recorrer à analogia, aos costumes ou aos princípios de direito para suprir a falta de norma regulamentadora. Havendo tal proibição, configura-se a hipótese de impossibilidade jurídica do pedido, diante da qual o juiz é obrigado a extinguir o processo sem julgamento de mérito (Cód. Proc. Civil, art. 267, VI), o que tornará inviável o exercício do direito, liberdade ou prerrogativa assegurados pela Constituição. O caso, pois, em que cabe o mandado de injunção é exatamente o oposto daquele em que cabe o mandado de segurança. Vale dizer, é o caso em que o requerente não tem direito de pretender a tutela jurisdicional e em que requerido teria o direito líquido e certo de resistir a essa pretensão, se acaso fosse ela deduzida em Juízo. Esta constatação — prossegue BOTELHO DE MESQUITA — é de primordial importância para o conhecimento da natureza e dos fins do mandado de injunção. Dela deriva a determinação dos casos em que se pode admitir o mandado de injunção e também dos objetivos que, por meio dele, podem ser alcançados”. O mandado de injunção “[d]estina-se, apenas, à remoção da obstáculo criado pela omissão do poder competente para a norma regulamentadora. A remoção desse obstáculo se realiza mediante a formação supletiva da norma regulamentadora faltante. É este o resultado prático que se pode esperar do julgamento da mandado de injunção. A intervenção supletiva do Poder Judiciário deve subordinar-se, porém, ao princípio da independência e da harmonia entre os Poderes (CB, art. 2º). A autorização constitucional para a formação de normas supletivas não importa permissão ao Poder Judiciário para imiscuir-se indiscriminadamente no que é da competência dos demais Poderes. Trata-se apenas de dar remédio para omissão do poder competente. Para que tal omissão se configure, é preciso que norma regulamentadora não tenha sido elaborada e posta em vigor no prazo constitucional ou legalmente estabelecido, quando houver, ou na sua falta, no prazo que o tribunal competente entenda razoável […] O que cabe ao órgão da jurisdição não é, pois constranger alguém a dar cumprimento ao preceito constitucional, mas, sim, suprir a falta de norma regulamentadora, criando, a partir daí, uma coação da mesma natureza daquela que estaria contida na norma regulamentadora […]. Deverá ela regular apenas o caso concreto submetido ao tribunal, ou abranger a totalidade dos casos constituídos pelos mesmos elementos objetivos, embora entre sujeitos diferentes? Dentre essas alternativas, é de se optar pela última, posto que atividade normativa é dominada pelo princípio da isonomia, que exclui a possibilidade de se criarem tantas normas regulamentadoras diferentes quantos sejam os casos concretos submetidos ao mesmo preceito constitucional. Também aqui é preciso ter presente que não cumpre ao tribunal remover um obstáculo que só diga respeito ao caso concreto, mas a todos os casos constituídos pelos mesmos elementos objetivos“. […] constitui dever-poder deste Tribunal a formação supletiva, no caso, da norma regulamentadora faltante. 18. O argumento de que a Corte estaria então a legislar — o que se afiguraria inconcebível, por ferir a independência e harmonia entre os poderes [art. 2o da Constituição do Brasil] e a separação dos poderes [art. 60, § 4o, III] — é insubsistente. 19. Pois é certo que este Tribunal exercerá, ao formular supletivamente a norma regulamentadora de que carece o artigo 40, § 4º, da Constituição, função normativa, porém não legislativa […]. 25. Afastado, contudo o critério tradicional de classificação das funções estatais, cumpre fixarmo-nos naquele outro, que conduz à seguinte enunciação: [i] função normativa – de produção das normas jurídicas [= textos normativos]; [ii] função administrativa – de execução das normas jurídicas; [iii] função jurisdicional – de aplicação das normas jurídicas. 26. A função legislativa é maior e menor do que a função normativa. Maior porque abrange a produção de atos administrativos sob a forma de leis [lei apenas em sentido formal, lei que não é norma, entendidas essas como preceito primário que se integra no ordenamento jurídico inovando-o]; menor porque a função normativa abrange não apenas normas jurídicas contidas em lei, mas também nos regimentos editados pelo Poder Judiciário e nos regulamentos expedidos pelo Poder Executivo. 27. Daí que a função normativa compreende a função legislativa [enquanto produção de textos normativos], a função regimental e a função regulamentar. 28. Quanto à regimental, não é a única atribuída, como dever-poder, ao Poder Judiciário, visto incumbir-lhe também, e por imposição da Constituição, a de formular supletivamente, nas hipóteses de concessão do mandado de injunção, a norma regulamentadora reclamada. Aqui o Judiciário — na dicção de JOSÉ IGNÁCIO BOTELHO DE MESQUITA — remove o obstáculo criado pela omissão do poder competente para editar a norma regulamentadora faltante, essa remoção realizando-se mediante a sua formulação supletiva. 29. De resto, é ainda certo que, no caso de concessão do mandado de injunção, o Poder Judiciário formula a própria norma aplicável ao caso, embora ela atue como novo texto normativo. 30 Apenas para explicitar, lembro que texto e norma não se identificam 3 . O que em verdade se interpreta são os textos normativos; da interpretação dos textos resultam as normas. A norma é a interpretação do texto normativo. A interpretação é atividade que se presta a transformar textos — disposições, preceitos, enunciados — em normas. 31. O Poder Judiciário, no mandado de injunção, produz norma. Interpreta o direito, na sua totalidade, para produzir a norma de decisão aplicável à omissão. É inevitável, porém, no caso, seja essa norma tomada como texto normativo que se incorpora ao ordenamento jurídico, a ser interpretado/aplicado. Dá-se, aqui, algo semelhante ao que se há de passar com a súmula vinculante, que, editada, atuará como texto normativo a ser interpretado/aplicado. 32. Ademais, não há que falar em agressão à “separação dos poderes”, mesmo porque é a Constituição que institui o mandado de injunção e não existe uma assim chamada “separação dos poderes” provinda do direito natural. Ela existe, na Constituição do Brasil, tal como nela definida. Nada mais. No Brasil vale, em matéria de independência e harmonia entre os poderes e de “separação dos poderes”, o que está escrito na Constituição, não esta ou aquela doutrina em geral mal digerida por quem não leu Montesquieu no original. 33. De resto, o Judiciário está vinculado pelo dever-poder de, no mandado de injunção, formular supletivamente a norma regulamentadora faltante. Note-se bem que não se trata de simples poder, mas de dever-poder, idéia já formulada por JEAN DOMAT 4 no final do século XVII, após retomada por LEÓN DUGUIT 5 e, entre nós, por RUI BARBOSA 6 , mais recentemente por CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO 7 . 34. A este Tribunal incumbirá — permito-me repetir — se concedida a injunção, remover o obstáculo decorrente da omissão, definindo a norma adequada à regulação do caso concreto, norma enunciada como texto normativo, logo sujeito a interpretação pelo seu aplicador. 35. No caso, o impetrante solicita seja julgada procedente a ação e, declarada a omissão do Poder Legislativo, determinada a supressão da lacuna legislativa mediante a regulamentação do artigo 40, § 4º, da Constituição do Brasil, que dispõe a propósito da aposentadoria especial de servidores públicos. 36. Esses parâmetros hão de ser definidos por esta Corte de modo abstrato e geral, para regular todos os casos análogos, visto que norma jurídica é o preceito, abstrato, genérico e inovador — tendente a regular o comportamento social de sujeitos associados — que se integra no ordenamento jurídico 8 e não se dá norma para um só. 37. No mandado de injunção o Poder Judiciário não define norma de decisão, mas enuncia a norma regulamentadora que faltava para, no caso, tornar viável o exercício do direito da impetrante, servidora pública, à aposentadoria especial. […] Julgo parcialmente procedente o pedido deste mandado de injunção, para, reconhecendo a falta de norma regulamentadora do direito à aposentadoria especial dos servidores públicos, remover o obstáculo criado por essa omissão e, supletivamente, tornar viável o exercício, pelo impetrante, do direito consagrado no artigo 40, § 4º, da Constituição do Brasil, nos termos do artigo 57 da Lei n. 8.213/91. – Grifos nossos.
Os bem lançados argumentos utilizados na decisão acima não deixam dúvidas de que a nova postura adotada pelo STF no julgamento dos mandados de injunção não viola o princípio da separação dos Poderes.
O novo posicionamento, ao contrário, apenas se mostra atento à necessidade de efetivação dos direitos e garantias previstos no texto constitucional, cumprindo com o poder-dever do Estado, no mandado de injunção, de formular supletivamente a norma regulamentadora faltante, como pretendeu o legislador constitucional.
5. Conclusão
Há quem diga que se está vivendo o “século do Judiciário”, pois esse poder estatal está se mostrando cada vez mais atuante, num movimento que se convencionou chamar de “ativismo judicial”.
Aludida postura pró-ativa do Poder Judiciário, dependendo do caso em que for adotada, pode, de fato, afrontar o princípio da separação dos Poderes, caracterizando verdadeira usurpação da esfera de atuação e de competência de um ou de outro poder. Não se pode esquecer que o ativismo judicial jamais deve se sobrepor ao poder do legislador democrático, pois vivemos sob a égide de um Estado Democrático de Direito.
Contudo, também é necessário entender que, por muitas vezes, a omissão do Poder Legislativo ou mesmo do Executivo, causa inúmeros prejuízos à sociedade, restringindo e até inviabilizando seus direitos. É justamente nesses casos que o Poder Judiciário deverá atuar, especialmente em relação ao mandado de injunção, atendendo ao seu dever-poder de formação supletiva da norma regulamentadora faltante.
Foi justamente atento a esse entendimento que o STF, acertadamente, se dispôs a rever seu entendimento sobre a efetivação do mandado de injunção, tendo rompido com a postura de simplesmente declarar a omissão inconstitucional (teoria não concretista), passando a garantir o exercício do direito obstado pela ausência de norma, até a edição da mesma (teoria concretista), sem, contudo, que isso fosse tido como violação ao princípio da divisão dos Poderes.
Oportuno observar que a evolução no posicionamento do STF é de extrema relevância para a sociedade como um todo, pois a questão da omissão inconstitucional transcende a esfera de realização das legítimas pretensões individuais, sendo fundamental para a concretização da Constituição como um todo, ou seja, para a realização do próprio Estado Democrático, que tem seus fundamentos na soberania, na cidadania, na dignidade da pessoa humana, nos valores sociais do trabalho, da iniciativa privada e no pluralismo político, conforme disposto no art. 1º da Carta Magna.
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ANA CAROLINA RIBEIRO DE OLIVEIRA é advogada e pós-graduanda em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP).
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BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 2008.
STF, MI n.º 107 , Rel. Min. Moreira Alves, DJ, 1, de 21/09/1990.
STF, MI n.º 219, Rel. Min. Octavio Gallotti, DJ, 1, de 27/08/1990.
STF, MI n.º 283, Rel.Min. Sepúlveda Pertence, DJ, 1, de 24/10/1991.
STF, MI n.º 284, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ, 1, de 26/06/1992.
STF, MI n.º 232, Rel. Min. Moreira Alves, DJ, 1, de 16/08/1991.
STF, MI n.º 670, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ, 1, de 06/11/2007.
STF, MI n.º 708, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ, 1, de 06/11/2007.
STF, MI n.º 712, Rel. Min. Eros Grau, DJ, 1, de 23/11/2007.
STF, MI n.º 721, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ, 1, de 01/02/2008.
STF, MI n.º 786, Rel. Min. Eros Grau, DJ, 1, de 07/05/2009.
Notas:
[1] “Art. 103 – Podem propor a ação direta e a ação declaratória de constitucionalidade:
I – o Presidente da República;
II – a Mesa do Senado Federal;
III – a Mesa da Câmara dos Deputados;
IV – a Mesa de Assembléia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal;
V – o Governador de Estado ou do Distrito Federal;
VI – o Procurador-Geral da República;
VII – o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil;
VIII – partido político com representação no Congresso Nacional;
IX – confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.
………………………………………”
[2] “Art. 2º – São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”.
[3] “Art. 5º ……………………
§1º As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.”
[4] Mandado de Injunção nº 107, Supremo Tribunal Federal, Min. Relator Moreira Alves.
[5] Mandado de Injunção nº 107, Supremo Tribunal Federal, Min. Relator Moreira Alves.
[6] “Art. 45 – A Câmara dos Deputados compõe-se de representantes do povo, eleitos, pelo sistema proporcional, em cada Estado, em cada Território e no Distrito Federal.
§ 1º – O número total de Deputados, bem como a representação por Estado e pelo Distrito Federal, será estabelecido por lei complementar, proporcionalmente à população, procedendo-se aos ajustes necessários, no ano anterior às eleições, para que nenhuma daquelas unidades da Federação tenha menos de oito ou mais de setenta Deputados.
………………….”
[7] Convém apenas registrar que o Congresso Nacional não editou a norma.
[8] MI 670, rel.orig.: Min. Maurício Corrêa, relator para o Acórdão min. Gilmar Mendes Ferreira.
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ESCLARECEDOR ALÉM DE PRECISO NAS CONCLUSÕES,O TEXTO QUE ACABO DE LER SEM SOMBRA DE DÚVIDAS ME AUXILIOU E MUITO NO ENTENDIMENTO DOS INSTITUTO DO MANDADO DE INJUNÇÃO E SEUS PRECEDENTES HISTÓRICOS .CONGRATULO A AUTORA DO TEXTO E PEÇO QUE CONTINUE A PRODUZIR COM A MESMA QUALIDADE E PERSPICÁCIA QUE A MOVEU AO ELABORAR O PRESENTE ARTIGO.
Reli o texto de Ana Carolina, depois de um certo tempo, e pude perceber que a análise é ainda melhor do que eu guardava na memória. Sinceros parabéns!
Muito bom o artigo. Tá na linha de frente. Artigos como este devem servir de incentivo aos operadores do Direito para enfrentar, sem medo e sem receio, a burla descarada entre os titulares do Planalto e a maioria do STF no cumprimento da constitucionalidade do artigo 37 inciso X, da CF/88. Enfrentar os abusos de agora, constitui-se tão importante como era enfrentar os abusos da ditadura. Parabéns.