22.03.10
Conversas acadêmicas: Gilmar Mendes e a Jurisdição Constitucional (I)
Parte I
Quem é: Presidente do Supremo Tribunal Federal (2008/2010); Presidente do Conselho Nacional de Justiça (2008/2010); Mestre em Direito pela Universidade de Brasília (1988); Mestre em Direito pela Universidade de Münster (1989); Doutor em Direito pela Universidade de Münster (1990); Professor de Direito Constitucional nos cursos de graduação e pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB); Membro Fundador do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP); Professor de Direito Constitucional nos cursos de pós-graduação e mestrado do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP); Escreveu os livros Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade, Jurisdição Constitucional, Moreira Alves e o Controle de Constitucionalidade no Brasil, Controle Concentrado de Constitucionalidade, em parceria com Ives Gandra da Silva Martins, e Curso de Direito Constitucional, em parceria com Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco.
OC: O que motivou o senhor a fazer o curso de Direito?
GM: Vim de uma família grandemente influenciada pelo Direito. Quando garoto, vivenciei a realidade de Diamantino (MT), que era uma grande comarca. Todos os crimes daquela região eram julgados em Diamantino. Meu avô era advogado prático e atuava, sobretudo, no Tribunal do Júri. Então aquilo nos interessava muito porque no interior não havia nada em termos de espetáculos ou coisas do tipo.
OC: Algum júri o marcou?
GM: Ocorreu um júri por conta de um acidente de avião em que a viúva imputava o “assassinato” do marido ao sócio, que sobreviveu ao acidente. Imagine a comoção na região. Empresários de São Paulo tinham um colega que respondia a um júri em Diamantino. Tudo isso me despertou para o Direito.
OC: O senhor fez o segundo grau em Diamantino?
GM: Não, só até o ginásio. Fiz o primeiro ano do segundo grau em Cuiabá e o segundo ano, em 1973, em São Carlos (SP). No terceiro ano eu vim para Brasília e aí ingressei no curso de Direito da UnB (1975).
“Então aquilo nos interessava muito porque no interior não havia nada em termos de espetáculos ou coisas do tipo.”
OC: Que tipo de aluno o senhor foi?
GM: Muito bom aluno, mas meio tímido, retraído.
OC: Passava cola?
GM: Não! Nem colava também.
OC: Como era estudar Direito na ditadura militar?
GM: Era uma época muito confusa. Fui aluno de 1975 a 1978. Não sabíamos bem qual era o quadro em termos de evolução política. O Direito Constitucional não era valorizado. O enfoque era maior no Direito Civil, que era uma doutrina mais dogmática e organizada.
OC: E o que o fascinou a estudar na Alemanha?
GM: Eu tinha projetos de estudar fora desde a faculdade, mas dificuldades financeiras me impediam. Conversei sobre essa ideia com uma professora muito querida, a Ana Maria Helena Vilela, irmã do José Guilherme Vilela, ex-ministro do TSE. Ela me disse: “Termine o curso, só assim você consegue bolsa. Antes disso não faz sentido algum”. Mas as graves crises políticas do período, o fechamento do Congresso, davam certo desânimo. Estudava-se o Direito sem perspectiva de liberdade. Nesse momento, eu já estava no Itamaraty, como oficial de chancelaria, e surgiu a oferta para trabalhar na Alemanha.
“Comecei a ficar impressionado com o que ele, Schlaich, falava, por exemplo, sobre Corte Constitucional, função da Corte, e foi lá que pela primeira vez ouvi a expressão “processo objetivo”.”
OC: Por que o intervalo de dez anos entre a graduação e o mestrado na UnB?
GM: Fui para a Alemanha em 1979, praticamente depois da minha formatura. Estudei alemão, entrei na Universidade de Bonn, mas não sabia ainda o que fazer. Estava tendente a estudar algo conexo com o Direito Civil, como defesa do consumidor. Algo diferente, mas que eu pudesse aproveitar no Brasil. Por coincidência, fui para um instituto de Direito Civil e estudei com o professor von Marshall. Para fazer qualquer coisa na área de doutorado, tinha que fazer três matérias básicas: Introdução ao Direito Público, Introdução ao Direito Privado e Introdução ao Direito Penal. Quando comecei a fazer as matérias, dois professores me impressionaram muito: o de Direito Civil, Schlütel, e o de Direito Constitucional, o professor Klaus Schlaich, um nome muito reconhecido, com algumas traduções em espanhol. Schlaich escreveu várias obras sobre Jurisdição Constitucional e era o professor titular de Direito Constitucional e de Direito Público na Universidade de Bonn.
OC: Nessa época o senhor já tinha um projeto definido?
GM: Nada. Comecei a ficar impressionado com o que ele, Schlaich, falava, por exemplo, sobre Corte Constitucional, função da Corte, e foi lá que pela primeira vez ouvi a expressão “processo objetivo”. Na realidade, fui fazer matéria para cumprir exigência curricular e fiquei impressionado. Estava pesquisando na área de Direito Privado, fiz inclusive um seminário, e fui aceito no doutorado. Mas no final de 1982 fui removido de volta para o Brasil.
“O trabalho teve uma abordagem diferente sobre o papel do Supremo, do processo objetivo, as diferenças do papel do procurador-geral na representação interventiva.”
OC: E quando veio o mestrado na UnB?
GM: Demorei muito para escolher o tema da dissertação (Controle de Constitucionalidade) por conta do período ainda nebuloso, entre 1985 e 1986. Quando defini o tema, se imaginava que tudo estava resolvido pela Constituição, que o Supremo já tinha feito tudo. Mas insisti, e o trabalho, feito na transição da Constituição velha para a nova, foi exitoso. O trabalho teve uma abordagem diferente sobre o papel do Supremo, do processo objetivo, as diferenças do papel do procurador-geral na representação interventiva. Aí fui para a Alemanha. Mandei meu trabalho para várias pessoas, inclusive o professor Igor Tenório, tributarista da UnB, que tomou a iniciativa de encaminhá-lo para a editora Saraiva, que o publicou. Àquela altura eu já estava na Alemanha escrevendo o controle abstrato na jurisdição constitucional, focado totalmente em Direito Constitucional e Jurisdição Constitucional.
OC: O Judiciário brasileiro é hoje o Poder mais legítimo para responder aos anseios da sociedade?
GM: No Brasil, o Judiciário é muito desafiado. Comemoramos os 200 anos da existência do Judiciário independente. Essa preocupação de um Judiciário independente já vinha do período colonial. Isso tem que ser considerado para os padrões da época. No Brasil independente, nasce a Justiça Federal com um papel bem definido. O que mostra todo o esforço para a construção de um Judiciário independente. A Constituição de 1934 sofistica esse modelo ao criar o quinto constitucional e o concurso público, que são a ideia de seleção pela capacidade técnica em detrimento da indicação política.
Com desenvolvimento da administração, se consolida a ideia de Estado Social, que depende muito mais da intervenção do Poder Judiciário. Assim, o Judiciário tornou-se não o Poder mais importante no que diz respeito à distribuição de justiça, mas, sim, o único. Por isso, recentemente, criou-se a cultura de que só se reconhecem direitos via Judiciário. Daí o alto índice de litigantes que temos hoje.
“Primeiro retarda o pagamento, depois o reconhecimento da dívida e, finalmente, há o notório atraso do precatório. E recalcitrância por parte dos grandes devedores, como o Estado e os grandes empregadores.”
OC: Ou seja, a lei não é garantia de direito…
GM: Há várias explicações. Por exemplo, no período inflacionário, com os planos econômicos, as pessoas tinham de ir à Justiça para ter seu direito de ressarcimento reconhecido. Então, era uma justiça de cada caso, totalmente individualizada, o que sobrecarregou demais o Judiciário, mas também deu a ele um poder enorme porque era a única via capaz de coagir ou coibir o Estado inadimplente, devedor sistêmico, sistemático, recalcitrante. Para terem uma ideia, no ano de 2008 tramitaram pela Justiça brasileira aproximadamente 70 milhões de processos. Isso fala por si. Mostra a sobrecarga que onera o Judiciário.
OC: Que não está preparado para responder à avalanche…
GM: Claro que não. Não tem estrutura e o modelo é irracional. Há uma crise numérica, muitos processos idênticos. O Estado talvez devesse se curvar, como ocorre em outros países, à decisão paradigma. Com isso, não existiriam tantas demandas.
OC: Os números são assustadores…
GM: Os números já estão aí, mas se pegarmos só o Supremo, de 20 mil processos por ano em 1988, passamos para algo em torno de 100 mil processos anuais em 2000. Nesta década, a média passou para 160 mil, o que vai ocasionar uma crise sem precedentes na história do tribunal. Essa década será praticamente consumida em um esforço de racionalização. Mas vale ressaltar que o Judiciário está cumprindo uma função importante em várias áreas. A Constituição de 1988 cria novos direitos, fortalece os direitos sociais e reforça o papel institucional do Judiciário, com autonomia administrativa, financeira, garantias formais e materiais.
“…controvérsias envolvendo o INSS sempre chegavam até o Supremo para, depois, entrar na fila dos precatórios. Isso retarda enormemente o cumprimento dos direitos.”
OC: Essa crise numérica pode paralisar o Judiciário?
GM: Eu não acredito que isso possa acontecer realmente. Estamos em um momento de transição.
OC: E por que é difícil racionalizar? Falta diálogo entre os três Poderes?
GM: Também são problemas culturais. A ideia de que a decisão só surte efeito para as partes envolvidas no processo não é mais condizente com os tempos de sociedade de massa em que vivemos. Por exemplo, a definição sobre a constitucionalidade de uma regra previdenciária pode repercutir sobre milhões de pessoas. Se esperarmos que todas elas recorram ao Judiciário com processos individuais, potencializaremos a distorção sem necessidade.
OC: Por que esse problema não foi enfrentado antes?
GM: Havia uma ideologia de contorno, de não enfrentamento do problema. Quando, na perspectiva do Estado, os conflitos são individualizados, acreditávamos na generalização dos efeitos das decisões. Portanto, há vários fatores para a adoção desse modelo. Além de questões de conveniência. Por que se recorre tanto em vez de se curvar a uma decisão? Há um cálculo embutido nisso. Muitas vezes é mais barato pagar os juros de mora e deixar o dinheiro investido. De vez em quando nos deparamos com isso. Não faz muito tempo, tínhamos uns casos absolutamente inviáveis de uma empresa automobilística, mas ela trazia tudo ao Supremo depois de passar pelo Tribunal Superior do Trabalho.
OC: Capitalizava e depois pagava o empregado…
GM: É lógico que ela não está perdendo. Por exemplo, controvérsias envolvendo o INSS sempre chegavam até o Supremo para, depois, entrar na fila dos precatórios. Isso retarda enormemente o cumprimento dos direitos.
OC: É uma espécie de rolagem da dívida.
GM: Exato. Para muitos Estados, inclusive, isso correspondia a uma forma de financiamento.
OC: Por quê?
GM: Primeiro retarda o pagamento, depois o reconhecimento da dívida e, finalmente, há o notório atraso do precatório. E recalcitrância por parte dos grandes devedores, como o Estado e os grandes empregadores. No âmbito do Judiciário, ao invés de se promover a discussão acerca desse tipo de política, a solução encontrada foi a expansão da máquina judiciária. Mais juízes, mais promotores. O Brasil até precisava disso, mas talvez tenha respondido à demanda com excesso por não observar a irracionalidade dos números. É inadmissível um país com seis milhões de causas trabalhistas. Ações que tenham como objeto hora-extra e adicional noturno, por exemplo, poderiam ser resolvidas por meio de acordos coletivos.
“Os Juizados foram criados para resolver esses resquícios da burocracia, mas como as demandas não eram organizadas, identificadas, houve a sobrecarga.”
OC: Os acordos são uma solução para a crise numérica?
GM: Na primeira vez que estive na Alemanha fiquei muito impressionado com alguns incidentes que vivi na relação de condomínio. Quando havia um vazamento, por exemplo, recorria-se a uma associação de proteção dos inquilinos, com assessoria de um advogado. E ele estabelecia os limites da responsabilidade do inquilino ou do condomínio. “Neste ponto o senhor tem razão, neste não”. E mandava uma carta para o síndico definindo as condições do acordo proposto. O direito tinha paradigmas mais ou menos definidos.
OC: O Judiciário é o último estágio…
GM: Exatamente.
OC: Já que não há a cultura do acordo, o Judiciário tentou encontrar saídas mais simples para resolver questões de menor porte. Pode-se dizer que a criação dos Juizados Especiais Federais foi uma dessas tentativas?
GM: Quando o governo Fernando Henrique decidiu criar os Juizados Especiais, a pergunta básica era: quantos processos tramitarão por esses Juizados? O único paradigma eram as Varas de Previdência Social Federais, por onde tramitavam em torno de 180 mil processos naquele momento. Não eram muitos processos considerando a avalanche que temos hoje. Após a Emenda Constitucional 20, com o aumento do teto (para 40 salários mínimos), os Juizados começaram a resolver as demandas, muitas vezes em seis meses, enquanto na via ordinária levava-se até 10 anos. Mas o Juizado, em pouco tempo, chegou a mais de dois milhões de processos. Isso revelou o quê? Que as pessoas tinham o direito, elas não apareceram de uma hora para outra. Estavam aí, só que seus pleitos não iam à Justiça.
OC: E por que essas pessoas não recorriam ao Judiciário?
GM: Por conta da morosidade e da burocracia. Aí ficavam sem reconhecimento do direito. Esses dados não eram conhecidos. No Brasil, há pessoas que não têm sequer registro de nascimento, portanto, o Estado não sabe que elas existem. Mas elas existem, muitas com mais de 65 anos, pobres. Os Juizados foram criados para resolver esses resquícios da burocracia, mas como as demandas não eram organizadas, identificadas, houve a sobrecarga.
(continua na quarta, 24/03)
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