Por Carlos Alexandre de Azevedo Campos
20.10.14

A indispensável faceta qualitativa da repercussão geral

 

No dia 21 de março deste ano, foi inserido no Plenário Virtual o Recurso Extraordinário com Agravo nº 790.813/SP, interposto contra acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo no qual havia decidido não proibir a circulação de revista adulta contendo foto de mulher despida com rosário à mão, assentando que isso implicaria censura prévia e violação da liberdade de expressão artística. Tratava-se de edição da revista Playboy com foto da atriz Carol Castro, caracterizada da personagem de Jorge Amado, “Gabriela Cravo e Canela”, despida e utilizando um rosário. No extraordinário, como razões de reforma do acórdão, os recorrentes alegaram que atividades pornográficas não se confundem com imprensa e que a associação do rosário à imagem erótica revela abuso da liberdade de expressão e ofensa ao sentimento religioso.

Segundo manifestação do relator, o ministro Marco Aurélio, a repercussão geral da matéria versada no recurso justificava-se por estar envolvido conflito entre direitos fundamentais, competindo ao Supremo definir, “como guarda maior da Carta da República” e com vista à orientação de casos futuros, o equilíbrio adequado entre os bens em jogo, caros à própria Constituição e à sociedade brasileira: as liberdades religiosa e de expressão artística. Caberia à Corte decidir se seus recentes julgados em favor da liberdade de imprensa deveriam ser observados no tocante às publicações destinadas ao público adulto, ou se essas, por si sós, são merecedoras da tutela contra censura prevista nos artigos 5º, inciso IX, e 220 da Carta Federal.

Em 10 de abril, encerrou-se a votação virtual, vindo dez ministros a reconhecer tratar-se de matéria constitucional, mas oito, a rejeitar a presença de repercussão geral. Ante a natureza emblemática da disputa constitucional, envolvidos direitos fundamentais de primeira grandeza, o que pode explicar esse resultado? Por estar dispensada a fundamentação do voto no Plenário Virtual, pessoas diferentes podem especular razões diferentes para que oito ministros tenham rejeitado a repercussão. Contudo, uma preocupação deve ser comum: como pode um instrumento, criado para racionalizar os trabalhos do Supremo, implicar o afastamento de tema dessa natureza, típico conflito que compõe a agenda das principais cortes constitucionais, da jurisdição do Tribunal? Poderia haver tema “com mais cara de Supremo”? Algo de errado há.

Tem sido preocupação recente – e crescente – a funcionalidade da repercussão geral. A elevada quantidade de matérias com repercussão reconhecida, o estoque alto desses casos com apreciação de mérito pendente (1), os vários anos que o Supremo precisaria para conseguir julgá-los, o impacto negativo desses números sobre a dinâmica das instâncias judiciais anteriores e em face das expectativas dos jurisdicionados são elementos desse debate. Por sua vez, são apontadas como causas combinadas desse estágio de coisas, entre outras, a constitucionalização abrangente, a exigência constitucional da manifestação de, no mínimo, 2/3 dos membros da Corte pela inexistência da repercussão geral para que esta seja rejeitada e a omissão de alguns ministros em votar, em diversas oportunidades, no Plenário Virtual.

A repercussão geral foi criada para dar maior celeridade aos processos, dotar o sistema recursal de racionalidade (2) e, ao fim e ao cabo, aperfeiçoar a agenda do Supremo, reservando-a aos casos constitucionais mais relevantes, aproximando o Tribunal do ideal de uma autêntica corte constitucional. Se, ao contrário, a operação do instituto tem resultado no congestionamento dos recursos e no retardamento da solução dos conflitos na Corte e no Judiciário em geral, modificações são necessárias. Prioritariamente, segundo penso, diminuir o quórum para rejeição da repercussão geral e reduzir o efeito negativo da ausência de manifestação dos ministros no Plenário Virtual. A primeira medida requer alteração constitucional, a segunda, comportamental.

A crise quantitativa é real, e o atual Presidente do Tribunal, ministro Ricardo Lewandowski, tem se dedicado muito em reduzi-la. O citado “caso Carol Castro”, no entanto, nos permite vislumbrar outro defeito operativo que afasta a repercussão geral ainda mais do propósito de conferir ao Supremo típica agenda de cortes constitucionais. Refiro-me à qualidade dos temas selecionados. Dentre as centenas de matérias reconhecidas como tendo repercussão geral, a significativa escassez de casos paradigmáticos envolvendo direitos fundamentais chama a atenção. Tal quadro, acredito, sugere a hipótese de a maioria dos ministros, seja quando da escolha individual do tema a ser inserido no Plenário Virtual, seja no momento da votação colegiada virtual (3), aplicar os critérios da “relevância” e “transcendência” das matérias, respectiva e predominantemente, sob os ângulos econômico e numérico.

A prevalência de assuntos tributários, previdenciários e relacionados a servidores públicos nada tem a ver com essa hipótese. A disciplina abrangente dessas matérias pela Carta de 1988 e a multiplicidade de diferentes situações litigiosas em torno de um mesmo gênero temático favorecem esse cenário. Por outro lado, e este é o ponto do texto, o número de conflitos cruciais de direitos fundamentais incluídos no Plenário Virtual e o resultado da votação alcançado nessas oportunidades são variáveis que podem confirmar a hipótese. O domínio de temas econômicos e de conflitos repetitivos é relacionado ao nosso desenho constitucional e, portanto, nada prova. Todavia, a carência de repercussões gerais relativas aos direitos mais fundamentais de nossa ordem constitucional pode ser sim o resultado da adoção, pelos ministros do Supremo, da perspectiva puramente econômica ou numérica da repercussão geral.

Com efeito, exame, ainda que superficial, do perfil das matérias submetidas ao Plenário Virtual me faz acreditar que a hipótese se confirma quanto ao momento da escolha dos temas pelos relatores. Pesquisa empírica mais profunda poderá revelar a mais absoluta escassez de oportunidades em que os ministros, diante de recursos ou agravos envolvendo direitos fundamentais, selecionaram temas de alta complexidade moral e de grande repercussão social, ausentes quaisquer efeitos econômicos, para a votação virtual. A mesma pesquisa poderá demonstrar que, sem sombra de dúvida, esses temas chegam ao Tribunal. Evidentemente, chegam em volume reduzido se comparado ao daqueles de implicações econômicas, mas em quantidade suficiente a não haver a escassez no nível aqui acusado.

Uma das raras oportunidades, em que tema dessa natureza foi incluído no Plenário Virtual, foi o “caso Carol Castro”. A “deliberação” virtual realizada no caso sugere o viés puramente numérico da concepção da maioria dos ministros quanto ao critério da transcendência. Se reconheceram tratar-se de matéria constitucional, e sendo evidente o envolvimento de conflito emblemático de direitos fundamentais, por que então oito ministros rejeitaram a repercussão geral?  Ao que me parece, porque não é todo dia que uma atriz famosa, em revista adulta de grande circulação, posa nua utilizando ou segurando símbolos religiosos. Ou seja, não bastaria a relevância qualitativa para configurar-se a repercussão geral, seria indispensável a potencialidade de o litígio multiplicar-se. A hipótese se confirma: a transcendência como critério da repercussão geral, segundo assentou a maioria, diz só com números (4).

É verdade que, em pelo menos duas outras oportunidades, o Plenário Virtual reconheceu a repercussão geral de temas relacionados a direitos fundamentais sem efeitos econômicos diretos: nos Recursos Extraordinários nº 611.874/DF e nº 670.422/RS, ambos da relatoria do ministro Dias Toffoli. O primeiro versa a possibilidade de realização de etapas de concurso público em datas e locais diferentes dos previstos em edital por motivos de crença religiosa do candidato; o segundo, a possibilidade de alteração de gênero no assento de registro civil de transexual, mesmo sem a realização de procedimento cirúrgico de redesignação de sexo. Embora ambos envolvam conflitos cruciais de direitos fundamentais, não penso serem capazes de infirmar a hipótese, e isso porque, diferentemente do “caso Carol Castro” (5), esses litígios possuem capacidade de multiplicar-se. O critério numérico certamente foi levado em conta.

Enfim, a prática da repercussão geral não pode afastar conflitos cruciais, como o do “caso Carol Castro”, da jurisdição do Supremo. A agenda das cortes constitucionais é composta, principalmente, dos conflitos dramáticos que envolvem direitos fundamentais, tanto os conflitos entre direitos individuais, como entre esses direitos e os interesses mais amplos da sociedade. Em todos esses casos, trata-se, no fundo, da discussão acerca da legitimação do ordenamento jurídico e da identidade da sociedade – é o espaço nobre da jurisdição constitucional. Se a repercussão geral resulta na exclusão de temas dessa natureza da agenda do Supremo, então não temos um problema apenas quantitativo a ser resolvido, mas também qualitativo, que dificulta ainda mais a aproximação do Tribunal ao ideal de uma corte constitucional.

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Carlos Alexandre de Azevedo Campos é mestre e doutorando em Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Professor de Direito Constitucional e Tributário da Universidade Candido Mendes e da Faculdade de Direto da UNIFLU. Assessor de Ministro do STF.

Artigo publicado originalmente no JOTA, edição 17/10/2014.

Foto: extraída de comentários ao post do blog Direitos Fundamentais, intitulado Ainda a Carol Castro: uma boooa discussão, acesso em 20/10/2014.

Notas:

(1) Conforme dados do site do Supremo, pesquisados em 26/9/2014, são 528 processos com repercussão geral reconhecidas, tendo 202 sido julgados.

(2) A busca pela racionalidade seria alcançada pela correção do defeito histórico de nosso controle difuso de constitucionalidade relativo à falta de efeito vinculante das decisões do Supremo. Contudo, esta qualidade do instituto não é admitida por todos.

(3) Logicamente, não ignoro a circunstância, mencionada no começo do texto, de muitas das repercussões terem sido reconhecidas sem a manifestação da maioria dos ministros.

(4) A preocupação numérica tem feito com que a repercussão geral alcance estágio de importância maior para a pauta do Pleno, mesmo se comparada a das ações diretas. Esse quadro de proeminência torna o debate sobre a debilidade qualitativa do instituto ainda mais urgente.

(5) A própria premissa quantitativa do “caso Carol Castro” pode ser equivocada, haja vista não serem incomuns manifestações artísticas e propagandísticas que entrem em choque com valores religiosos. Devo à colega Patrícia Perrone este comentário.



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