27.06.18
Quando empaca, é preciso empurrar o Supremo
Por Israel Nonato
“Não há nada acontecendo”. Lembrei dessa (irônica) tirinha do André Dahmer ao descobrir que, só no Estado de São Paulo, de fevereiro de 2016 a abril de 2018, a Justiça ordenou a prisão de quase 14 mil pessoas, tudo com base no entendimento do STF que permitiu a execução provisória da pena após decisão de segundo grau (HC 126.926). Confira-se a reportagem de Regiane Soares:
A prisão do ex-presidente Lula em abril deste ano abriu uma discussão jurídica sobre se é ou não constitucional o início do cumprimento da pena após a condenação em segunda instância.
Não são apenas os condenados da Lava Jato e Lula que perderam a liberdade após a maioria do STF (Supremo Tribunal Federal) entender que a execução da pena após condenação em segunda instância não ofende o princípio da presunção da inocência.
Segundo levantamento da Defensoria Pública, foram expedidos 13.887 mandados de prisão pelo Tribunal de Justiça de SP entre fevereiro de 2016 e abril de 2018 com base nesse entendimento.
Para o defensor público Mateus Oliveira Moro o debate que está sendo feito sobre o tema está enviesado. “Sob o pretexto de prender os que cometeram crime de colarinho branco, punem-se os mais vulneráveis”, afirmou.
Oliveira Moro afirma que a Constituição e o Código de Processo Penal não deixam dúvida ao afirmar que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença condenatória.
Ou seja, até o julgamento do processo nas instâncias superiores, como o Superior Tribunal de Justiça e o STF, o réu deve ser considerado inocente.
A discussão sobre o tema deverá continuar até o STF julgar duas Ações Declaratórias de Constitucionalidade que vão definir o entendimento jurídico sobre a prisão automática após condenação em segunda instância. Ainda não há prazo para julgamento.
Segundo o defensor público, os quase 14 mil presos só deixarão a penitenciária após a Justiça analisar caso a caso.
O promotor de Justiça Levy Magno, professor do Centro Preparatório Jurídico, é a favor da prisão automática. Ele diz que se um réu foi condenado em segunda instância pode entrar com recursos, mas não é mais possível discutir se ele é culpado ou inocente.
“Nenhum dos dois recursos possíveis nos tribunais superiores, o especial e o extraordinário, permite mais discutir a culpa do réu. Foi por isso que o STF decidiu que, se não permite mais absolver o réu, então já pode executar antecipadamente a pena.”
Levy diz que o direito permite fazer interpretações das leis. “Os direitos fundamentais previstos na Constituição não podem ser alterados, mas podem ser interpretados.”
Já o advogado Rogério Cury destaca o artigo 283 do Código de Processo Penal, que trata das possibilidades de prisão. “O artigo não deixa margem para interpretação. Ninguém pode cumprir pena de forma cautelar”, afirma.
“Estamos diante de um quadro de insegurança jurídica grande porque estamos relativizando princípios e garantias fundamentais. Não pode usar o crime do colarinho branco para defender essa tese.”
(‘Após decisão de segunda instância, Justiça manda prender 14 mil pessoas’, reportagem de Regiane Soares, Folha de S.Paulo, edição 4.6.2018, caderno Cotidiano, página A13)
É inacreditável o momento de perplexidade que vive a jurisdição constitucional. Até as pedras sabem que hoje, com a mudança de entendimento do ministro Gilmar Mendes (leia o voto no HC 152.752), a decisão do Supremo Tribunal Federal seria diferente da proclamada no HC 126.926, com a maioria dos ministros convergindo para o voto do ministro Dias Toffoli, que desde 2016 defende a execução provisória da pena só após decisão do Superior Tribunal de Justiça.
A questão que todos se fazem é: como vencer a resistência da presidente Cármen Lúcia, que se nega a pautar as ADCs 43, 44 e 54, as três ações declaratórias de constitucionalidade que versam sobre o tema?
“Por sua própria inépcia”, escreveu Conrado Hübner Mendes, a ministra Cármen Lúcia “deixou de pautar ação que trata da execução provisória da pena após condenação em segunda instância e esperou o tema explodir na mesa do Supremo por ocasião do habeas corpus de Lula” (leia o artigo ‘A Pacificadora’, revista Época).
Não é mais possível ver o Supremo à deriva. É preciso uma palavra final do Tribunal. Sugiro duas saídas para o julgamento das ADCs 43, 44 e 54. A primeira, o ajuizamento de uma ação de arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF), como propôs Lenio Streck, contra a negativa da ministra Cármen Lúcia de pautar as ADCs.
Como argumentou Streck, uma ADPF “terá a função de reduzir a indeterminação que está gerando essa falta de colocação em pauta das ADCs, as quais, julgadas, terão a função de reduzir a complexidade do subsistema jurídico, com reflexos nos demais subsistemas” (leia o artigo ‘ADCs, a ministra Cármen e o paradoxo do discricionarismo – a solução sistêmica’, ConJur).
A segunda saída é uma decisão do ministro Marco Aurélio antes das férias de julho de 2018. Em vez de esperar a presidente Cármen Lúcia, que não dá o mínimo sinal de que pautará as três ADCs, Marco Aurélio poderia rever o despacho do último dia 26 de junho e acolher o pedido de medida cautelar deduzido na ADC 54. Como relator, essa decisão monocrática não afrontaria o princípio da colegialidade. Pelo contrário. Sendo o tema relevante e urgente, e não havendo qualquer expectativa de pauta, relatores podem deferir medidas cautelares. Assim fizeram, por exemplo, os ministros Gilmar Mendes e Luís Roberto Barroso antes do recesso do ano passado. Em decisões proferidas em 18 e 19 de dezembro de 2017, Gilmar Mendes e Luís Roberto Barroso deferiram os pedidos cautelares formulados, respectivamente, na ADPF 395 (leia aqui) e na ADC 48 (leia aqui), requisitando pauta para referendo e concomitante julgamento do mérito pelo Plenário.
Quando empaca, é preciso empurrar o Supremo. Não há espaço para “decidir não decidir”. O Tribunal deve julgar, com urgência e prudência, as ADCs 43, 44 e 54. Seja para manter, seja para superar a decisão do HC 126.926. O que se discute nas três ações de controle abstrato não é a liberdade de um ex-presidente da República, como erroneamente se tem divulgado. O que está em jogo é a vida de todos aqueles que, atingidos pela decisão do STF, reivindicam a liberdade que lhes fora arrancada, dada a necessidade de trânsito em julgado para execução da decisão condenatória (CF, art. 5º, LVII).
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Israel Nonato é graduado em Direito pela UnB. Estudou Constitucional e Eleitoral na pós-graduação do IDP. É editor e membro fundador do blog Os Constitucionalistas.
O problema é exatamente este: quem acha legítimo empurrar a Justiça, quando e para onde acha conveniente, tem que aceitar como igualmente legítimos os empurrões que outros resolvam dar-lhe. Na beira do precipício, qualquer empurrão pode ser fatal. E depois disso não existe arrependimento eficaz. Deixemos que o tribunal ande com suas próprias pernas e no seu ritmo. “Quando o direito deixa de proteger os nossos adversários, virtualmente deixa de nos proteger também”. Quem hoje empurra amanhã será empurrado.