25.11.09
Conversas acadêmicas: Paulo Gustavo Gonet Branco e os Direitos Fundamentais (II)
Parte 2
Os Constitucionalistas: O âmbito de proteção de um direito fundamental somente é obtido quando esse direito fundamental entra em conflito com outro direito fundamental?
Paulo Gonet: Brilhante. Esta pergunta está perfeita, ótima! Esse que é o grande problema, porque se a gente só vai descobrir qual é o direito fundamental depois de um atrito, o que isso significa? Significa que a gente só vai conseguir descobrir qual é o significado, o que um direito fundamental protege, depois de o problema ter acontecido. Depois que o problema ocorreu é que a gente vai discutir se tinha ou não o direito a fazer aquilo, se o direito foi ou não ferido. Isso acaba com a função do direito, que é justamente produzir segurança, produzir previsibilidade. Se você tem que esperar os conflitos acontecerem para depois definir o que é um direito fundamental, essa função dos direitos fundamentais fica muito abalada. E essa é uma das críticas que se faz. O [Jürgen] Habermas diz isso. Os direitos fundamentais, com essa teoria da ponderação, perdem muito da sua força normativa. Ficam apenas valores que entram em atrito com outros valores. E que tem uma solução que por várias vezes não vai ser anterior ao problema que surge. O que ele preconiza, entre outros [autores], é que se apurem ao máximo possível as definições dos direitos fundamentais. O problema é que a gente só vai descobrir realmente todas as peculiaridades dos direitos fundamentais com a vida prática mesmo! Vocês devem ter visto, com o professor Inocêncio [Inocêncio Coelho, hoje professor de Teoria da Constituição e Hermenêutica Constitucional do IDP], que interpretamos sempre à vista de um caso concreto, em cima de um caso concreto. É isso o que acontece. Qual é o papel do jurista para resolver este problema? Em primeiro lugar, nós temos que ter alguma segurança. Então, nós temos que ter alguma definição do que são esses direitos fundamentais. Primeiro passo do jurista é descobrir na teoria dos direitos fundamentais o que significa cada direito fundamental. Descobrir qual é a função de cada direito fundamental. O que se cristalizou na doutrina sobre o papel de cada um daqueles direitos fundamentais. Isso mostra a importância de estudar não só a teoria dos direitos fundamentais, mas também os direitos fundamentais em espécie. E isso também é que faz a diferença de um discurso totalmente atécnico de um discurso com fundamento num saber cristalizado ao longo do tempo, que é um discurso que prestigia os direitos fundamentais. Bom, então o primeiro papel do jurista é este. Para que os direitos fundamentais não percam a sua força normativa, é preciso que nós definamos no que eles consistem. Que a gente tenha presente o que ao longo do tempo a sociedade tem reconhecido como próprio do âmbito de proteção desses direitos fundamentais.
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Se você tem que esperar os conflitos acontecerem para depois definir o que é um direito fundamental, essa função dos direitos fundamentais fica muito abalada
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Paulo Gonet: Exatamente. Esses valores consensuais já nos mostram um contorno dos direitos fundamentais. Daí a importância de se conhecer a jurisprudência. Daí a importância de a gente conhecer a doutrina que existe em torno dos direitos fundamentais. Vocês já ouviram falar da teoria da novela do [Ronald] Dworkin? O Dworkin diz que o Direito é como se fosse uma novela escrita por vários escritores. Cada escritor escreve um capítulo. É preciso, para você escrever o próximo capítulo, que você conheça tudo que já foi escrito antes. É preciso que haja uma coerência com o que já foi desenvolvido antes. Você precisa ir além. Você não pode parar no meio, senão a novela para e perde a graça. Para você escrever o próximo capítulo, para você dar um novo passo, para você criar um novo desenvolvimento, é importante ser coerente com o que já foi estabelecido no passado e conhecer o que já foi estabelecido no passado. E onde que está esse conhecimento? No estudo da dogmática dos direitos fundamentais e no estudo da jurisprudência. Mas só isso basta? Não. Por quê? Porque cada instante, cada momento traz desafios novos e, para estes desafios novos, nós não teremos uma resposta atentada, uma resposta previamente estabelecida. Aí teremos que fazer essas ponderações, mas essas ponderações não serão voluntaristas. Por quê? Por que levaremos em conta aquilo que a comunidade já sedimentou ao longo do tempo sobre o conteúdo daqueles direitos.
Os Constitucionalistas: Precisamos doutrinar mais sobre os direitos fundamentais?
Paulo Gonet: Com certeza! Para que os direitos fundamentais tenham força, para que eles cumpram pelo menos essa expectativa de proteção da dignidade da pessoa humana, é preciso uma reflexão sobre eles. Um conhecimento sólido deles. Conhecimento das revoluções históricas, das características até dessas ocorrências de colisão, como se resolvem, saber dos problemas que existem nessas colisões e também o conhecimento de cada um dos direitos fundamentais em espécie, saber o que foi acertado sobre cada um deles. Isso é importante para um discurso coerente, para que a novela do Dworkin não gere uma solução absurda.
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… a legitimidade da fundamentação vem do conhecimento teórico, vem do conhecimento da sensibilidade política, vem da sensibilidade para com os valores que nós entendemos como próprios da dignidade da pessoa humana
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Paulo Gonet: Isso é outro ponto importante: quem é que vai custodiar esses direitos fundamentais? A gente chegou a um ponto, depois da Segunda Guerra Mundial, em que se descobriu que cada país tem que ter uma jurisdição constitucional para proteger os direitos fundamentais. Chegou-se à conclusão que a experiência de deixar a proteção dos direitos fundamentais por conta do Parlamento não resultou em nada que mereça continuidade. Deixar também os direitos fundamentais na proteção do próprio Executivo, o guardião da Constituição sendo o presidente, também não gerou nenhuma solução louvável que mereça ser repetida. Depois da Segunda Guerra Mundial, o poder que deve proteger os direitos fundamentais deve ser judicialiforme. Então esse foi o modelo. O modelo de proteção dos direitos fundamentais. Mas se o juiz não tiver isso sob controle, for um juiz temerário, os direitos fundamentais vão ficar sem proteção. Esse é um sistema que é útil nos casos de violação pontual dos direitos fundamentais. Mas naqueles casos de violação maciça, onde toda uma estrutura de poder está contra uma minoria, não adianta nada ter uma jurisdição constitucional. Então se percebeu isso, e aí se internacionalizou a proteção desses direitos fundamentais. A gente tem aí as convenções da ONU e mecanismos, até dentro da ONU, de proteção contra violações maciças dos direitos fundamentais.
Os Constitucionalistas: De onde surge a legitimidade do Poder Judiciário?
Paulo Gonet: De onde surge a legitimidade? Ótima! A pergunta é essa! De onde surge a legitimidade? Surge da composição, dos compromissos dos juízes. E surge mais do poder de convencimento das decisões dos juízes. A legitimidade das decisões dos nossos representantes políticos vem do nosso voto, mas a legitimidade dessas decisões [judiciais], que têm um cunho político, que envolvem opções entre valores, a legitimidade dessas escolhas feitas pelos juízes, que não são eleitos, a legitimidade vem da argumentação, vem da fundamentação e a legitimidade da fundamentação vem do conhecimento teórico, vem do conhecimento da sensibilidade política, vem da sensibilidade para com os valores que nós entendemos como próprios da dignidade da pessoa humana. O que vai garantir legitimidade para as decisões dos tribunais é o fato delas surgirem de um corpo bem capacitado tecnicamente e compromissado com as necessidades dos direitos das pessoas.
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Daí o papel importantíssimo da academia e do Blog de vocês. Para fazer a crítica dessas decisões
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Paulo Gonet: Só tem uma pessoa: somos nós. É a população. Como que a população vai fazer isso? Exigindo que essas decisões do Judiciário sejam fundamentadas. Primeiro ponto. Elas sendo fundamentadas, nós vamos saber por que é que ele escolheu um direito fundamental sobre outro. E nós vamos poder dizer: “Não, essa decisão está errada por causa disso e daquilo”. Nós vamos poder desenvolver razões contrárias a essas decisões. Daí o papel importantíssimo da academia e do Blog de vocês. Para fazer a crítica dessas decisões. Aplaudir quando vocês tiverem certeza de que aquilo está bom e querem que continue assim. E criticar se vocês virem razões que são contrárias àquelas que podem ser adotadas. Com isso vocês estimulam o debate no espaço público. E esse debate pode levar, primeiro, a uma revisão da jurisprudência, ou então a uma medida de ordem legislativa que supere aquela decisão que foi tomada no âmbito dos tribunais. Se parar para pensar, isso não é tão utópico quanto parece. Pensem, por exemplo, no caso da progressão do regime de cumprimento de pena. Esse é um caso típico. Há dez, doze anos, tomou-se essa decisão: no princípio da individualização da pena, não se inclui a decisão pelo juiz sob como vai ser o regime de cumprimento da pena. Então o legislador, em abstrato, pode dizer que certos crimes serão cumpridos integralmente em regime fechado. Dez anos depois, e diante do debate que aconteceu, das críticas, o tribunal muda e passa a dizer: “Não, a fixação em abstrato do regime de cumprimento total da pena fere esse mesmo direito fundamental”. Então, é possível que um tribunal volte atrás. Uma coisa é certa: no Judiciário, existe a coisa julgada do caso concreto. Mas não existe a coisa julgada do tema, da ideia, do direito em si. Existe direito aplicado, mas não do entendimento da hermenêutica. Por isso, é uma grande bobagem, ou às vezes uma brincadeira, dizer que o Supremo não erra nunca porque ele é o último a dizer o que é o direito. Não faz sentido. E por que não faz?
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Mas as ideias, a interpretação da Constituição, essa não faz coisa julgada nem para o Supremo. Ele pode voltar atrás sob os influxos de argumentos da doutrina, de pessoas que pensam como vocês do Blog
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Os Constitucionalistas: O Supremo Tribunal Federal acerta e erra por último…
Paulo Gonet: Nem sempre. Nem isso é exato. Porque ele dá a última palavra naquele caso concreto, mas aquelas ideias, aqueles princípios do direito vão voltar a ser rediscutidos e pode acontecer da população, da comunidade jurídica, apontar o erro e o Supremo dizer: “Sim, erramos. Vamos mudar. Agora nós temos uma situação diferente, vamos reavaliar.” Isso acontece com mais frequência do que a gente imagina. Outro caso que a gente pode considerar é o do artigo 8º da ADCT. O Supremo tinha como entendimento de que os militares que tinham sido punidos na época do regime militar, segundo esse dispositivo, eles poderiam ser promovidos, receber como se tivessem sido promovidos, mas até o instante em que as promoções podiam ser feitas apenas por antiguidade. Quando no regime militar se exigem cursos para que a pessoa seja promovida, aí não poderia galgar esses postos. Então, esse é um furo do sistema. Um dia, um caso, alguém levou lá um precedente idêntico. “Está errado! Ele não pode fazer esse curso porque ele foi, de modo impróprio, excluído das fileiras militares. Então a gente não pode puni-lo duas vezes. Vamos deixar que ele continue a ser promovido fictamente, de modo fictício, para fins remuneratórios mesmo nesses casos em que era exigível um curso.” Mudou a jurisprudência. Mas mudou por quê? Porque se percebeu que aquela decisão antiga estava errada, não era a mais adequada. Então, os casos que já tinham sido julgados anteriormente, que já tinham feito coisa julgada há mais de dois anos, não puderam ser refeitos. Mas as ideias, a interpretação da Constituição, essa não faz coisa julgada nem para o Supremo. Ele pode voltar atrás sob os influxos de argumentos da doutrina, de pessoas que pensam como vocês do Blog.
Os Constitucionalistas: No caso de crimes hediondos, que chocam, abalam a sociedade, como fica a posição do juiz: concede ou não o direito de progressão ao preso? Muitos pessoas são são contrárias à concessão desse direito.
Paulo Gonet: O juiz vive na sociedade, ele toma as decisões sob o influxo do que ele sente, do que ele percebe como nós que estamos vivendo nessa mesma sociedade. Só que o juiz tem que ter uma coisa diferente da gente: ele tem que ter, mais do que qualquer outra pessoa, a coragem de ir contra a opinião pública. Tanto é verdade que o juiz tem que ter isso que o constituinte garante para ele a independência, garante para ele uma série de prerrogativas, a vitaliciedade, a inamovibilidade, a irredutibilidade de vencimentos, tudo para que ele possa se contrapor às maiorias, aos sentimentos efervescentes de cada momento. Para que ele se mantenha firme na rota dos direitos fundamentais, mesmo quando as pessoas acham que tem que ter pena de morte, que tem que jogar uma bomba de nêutron nos morros do Rio de Janeiro. Ele tem que ser firme. Não pode se deixar levar nem mesmo pelas críticas. Vocês querem um exemplo de um juiz que é independente, corajoso, que não tem medo da mídia e que é firme nos seus princípios?
Os Constitucionalistas: O ministro Gilmar Mendes.
Paulo Gonet: O ministro Gilmar Mendes. Veja o que ele sofreu no caso Daniel Dantas, em que ele agiu por princípios. Ele sabia que seria trucidado porque a opinião pública estava muito aguçada, muito…
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Só que o juiz tem que ter uma coisa diferente da gente: ele tem que ter, mais do que qualquer outra pessoa, a coragem de ir contra a opinião pública
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Os Constitucionalistas: A opinião pública ou a opinião publicada?
Paulo Gonet: Até isso! Exatamente! A opinião publicada acaba influenciando a opinião pública. Esse que é o grande drama. E o juiz tem que ter coragem e dizer: “Não, eu não vou crucificar alguém porque está todo mundo pedindo que ele seja morto porque isso vai contra o sistema de direitos fundamentais que nós temos.” E um dado interessante. Às vezes nós mesmos, às vezes até os juízes, dizemos: “Ah, vamos passar por cima desses formalismos”. Toda ditadura começa assim: “Vamos deixar os formalismos de lado e vamos direto ao que interessa. Vamos proteger o bem que interessa.” Toda ditadura começa assim: “Para que essas garantias se a gente já sabe que ele é culpado?” Até se chegar à pergunta: para que processo?