16.12.09
Conversas acadêmicas: com Inocêncio Mártires Coelho. Constituição, Hermenêutica e Vida (II)
Parte 2
Os Constitucionalistas: Ante o crescente protagonismo político do Supremo Tribunal Federal (STF), vivemos o risco de uma ditadura do Poder Judiciário?
Iocêncio Mártires Coelho: O risco de uma ditadura do Poder Judiciário só poderia existir se ele tivesse canhões para impor as suas decisões. No julgamento da extradição do Cesare Battisti, o ministro Gilmar Mendes salientou que o presidente da República cumpre a decisão do Supremo não porque o tribunal possa constrangê-lo a tanto, mas porque a Constituição é a suprema conveniência da sociedade política. Fora da Constituição não há salvação. É preciso que se viva o que Pablo Lucas Verdú chamou de sentimento constitucional e Konrad Hesse denominou de vontade da Constituição. Quando a sociedade chega àquele ponto de reconhecer, de vivenciar, que se estiver reunida em torno da Constituição realizará melhor os seus objetivos, não há risco nenhum de haver ditadura de qualquer dos Poderes. Só há ditaduras em momentos patológicos. E quem vive sob a Constituição vive em estado de sanidade constante, a mais saudável das formas de existência política.
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Só há ditaduras em momentos patológicos. E quem vive sob a Constituição vive em estado de sanidade constante, a mais saudável das formas de existência política
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OC: A Constituição adquire uma força coercitiva própria?
IMC: Própria. A Constituição é um valor em si, não pelo texto enquanto texto, mas porque ali se encontram, e ali se veem, todos os segmentos sociais. Lendo um pequeno ensaio do professor Vital Moreira sobre princípios fundamentais da Constituição portuguesa, ele – que foi deputado constituinte em Portugal – dizia que todos os segmentos políticos de alguma forma se viam naquele texto, mas ninguém se via com exclusividade. No momento em que todos nós nos vemos no texto da Constituição, nós nos juntamos em torno dela, numa espécie de leitura de um catecismo comum. Todos rezarão por ela. Porque ela é o livrinho de todos. E não apenas de um segmento social.
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No momento em que todos nós nos vemos no texto da Constituição, nós nos juntamos em torno dela, numa espécie de leitura de um catecismo comum
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OC: No julgamento da extradição do Cesare Battisti, o ministro Gilmar Mendes invocou o princípio da lealdade constitucional…
IMC: Uso muito essa expressão em sala de aula. Qual é o limite para o presidente baixar uma medida provisória? O limite é a lealdade constitucional. Em tudo na vida, nós todos sabemos o que podemos e o que não podemos fazer. Intimamente, nós sabemos qual é o limite das nossas atitudes. Há uma ética política que tem que ser vivenciada pelos agentes políticos. Sobretudo aqueles que, estando no topo, têm condições de subverter essa ordem de valores. [Konrad] Hesse diz que os maiores responsáveis por vivenciar e executar a Constituição são aqueles que têm mais força para destruí-la. O máximo de poder é o máximo de responsabilidade. O homem da rua, o gari, o catador de lixo, não causa nenhum risco à Constituição. O risco está no topo, onde estão os agentes políticos de maior hierarquia. São eles que têm que permanentemente fazer o exercício de autocrítica para ver até que ponto em que medida não estão ultrapassando os limites de fidelidade à Constituição.
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O homem da rua, o gari, o catador de lixo, não causa nenhum risco à Constituição. O risco está no topo, onde estão os agentes políticos de maior hierarquia
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OC: Como o senhor vê essas propostas no Congresso Nacional de convocação de uma mini Assembleia Constituinte?
IMC: Tudo bem, mas apenas se essa mini Assembléia Constituinte fosse convocada com o propósito exclusivo de rever o texto da Constituição para retirar dela tudo aquilo que foi conjunturalmente colocado no contexto de redemocratização do país, mas que, agora, não precisa mais dessa superproteção… Costumo dizer que a Constituição de 88 não é uma Constituição revanche, mas é uma Constituição resposta. Muitas das coisas que lá se encontram só estão ali porque no regime constitucional precedente houve abusos em torno daquelas matérias. E o deputado – que é um homem comum com mandato – acha que constitucionalizando alguma coisa ele evita o risco de perdê-la na hipótese de eventuais surtos autoritários. Nenhuma Constituição se sustenta por si, ela só se sustenta pelo querer coletivo. Então, se o propósito é o de atualizar a Constituição para tirar dela aquilo que foi conjunturalmente colocado…, bem, se for para isso, então não há porque nos opormos a essa ideia. Por que, por exemplo, dizer que o repouso semanal dos trabalhadores será preferencialmente aos domingos? Nada mais anacrônico numa sociedade plural, em que as diversas confissões religiosas têm dias sagrados diferentes. Mesmo assim, isso foi colocado na Constituição. Mas foi colocado por quê? Porque as circunstâncias o permitiram. Se, ao contrário, subjacente a isso, fraudulentamente, o que se pretende é mexer na substância da Constituição, sem que esses “mexedores” tenham mandato para isso, então já está na hora de se dizer não! A ideia é boa desde que seja com um propósito igualmente saudável.
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Nenhuma Constituição se sustenta por si, ela só se sustenta pelo querer coletivo
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OC: Não há razão para rompimento no ordenamento…
IMC: Não há rompimentos. E nós não estamos numa conjuntura que justifique isso. O que diz o Ministro Gilmar, e com razão, sobre o respeito às chamada cláusulas pétreas, é que diante delas mostra-se absurda a alternativa resignar-se ou apelar às armas. É preciso que a Constituição vá se atualizando constantemente, inclusive as cláusulas pétreas, que não devem ser – o nome até nos assusta – garantias de eternidade. Nada mais incompatível com o panta rei do que cláusulas pétreas ou garantias de eternidade. As cláusulas pétreas são colocadas sob uma compreensão de risco, sob uma ideia que eu chamaria de filosofia da suspeita. Com o medo de que alguém mexa na Constituição para recair no arbítrio anterior ao processo de constitucionalização, vamos congelar isso, vamos petrificar aquilo… Eu costumo dizer também, brincando, que as cláusulas pétreas, como todas as normas constitucionais, são enunciados linguisticos, que não falam por si, que não dizem o que significam. Elas têm que ser interpretadas. Então, vamos interpretá-las construtivamente, atualizadoramente, sem precisar mexer no texto que as enuncia. Forma federativa de Estado, tudo bem. Foi o constituinte que, em nosso nome, fez essa opção, verbalizando-a no texto da Constituição. Agora, o que é Federação para nós hoje? Para mim Federação, hoje, seria libertar prefeitos e governadores da condição de pedintes de recurso da União para que eles sejam efetivamente autônomos e possam gerir as coisas de acordo com os interesses das comunidades locais. E não ficar aqui mendigando verbas da União, nessa Federação de fachada em que nos convertemos. Uma Federação de unidades políticas hipossuficientes.
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É preciso que a Constituição vá se atualizando constantemente, inclusive as cláusulas pétreas, que não devem ser – o nome até nos assusta – garantias de eternidade. Nada mais incompatível com o panta rei do que cláusulas pétreas ou garantias de eternidade
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OC: Como construir uma Federação em que todos os entes políticos participem e se sintam prestigiados democraticamente?
IMC: Em conferência que proferiu na Escola Superior de Guerra, intitulada Conjuntura política nacional – o Poder Executivo, cujo texto foi publicado pela editora José Olympio, o meu saudoso chefe e amigo, Ministro Golbery do Couto e Silva, chamava a atenção para o que ele denominava de sístoles e diástoles na vida dos Estados, exemplificando essa ideia com a experiência do Estado brasileiro. Quando o regime político se fecha, há uma concentração de poder em torno da União; quando se abre, há um processo de descentralização, de devolução de poder às entidades políticas menores. Se você traduzir isso num gráfico, verá que coincidem os momentos. Por exemplo, com a Revolução de 1964, fechou-se o regime político nacional, hipertrofiou-se o poder da União; redemocratizado o país, deu-se uma abertura em direção aos Estados e Municípios. Hoje, contudo, vivemos um momento esquizofrênico, franksteniano. Mesmo com evidente abertura política, os recursos permanecem concentrados nos cofres da União, sufocando Estados e Municípios. Há uma falta de sintonia muito grande. É preciso abrir-se o regime também do ponto de vista econômico, do ponto de vista das iniciativas estaduais e municipais, para se tornar concreta a abertura política. E por quê? Porque com a concentração de recursos você sufoca as entidades locais. Agora, quem é que faz a distribuição de recursos? É o Parlamento. Como se coopta a vontade desse Parlamento? Numa triste, pobre e vergonhosa barganha de interesses localizados. Quem votou a Desvinculação das Receitas da União (DRU) para que o Executivo manipule à vontade tais receitas? O Congresso Nacional! Então, ao fim e ao cabo, o responsável por esse estado de coisas é o próprio Congresso Nacional, que aparelhado, arrumado, amoldado pelo Poder Executivo mediante troca de favores. Agora mesmo estamos assistindo isso em torno da possível distribuição de recursos do pré-sal. Uma festa! Uma festa! Por quê? Os Estados “produtores” não têm nenhuma sensibilidade federativa. Nós estamos aqui falando em pacto federativo, em lealdade federativa, em mínimo federativo e três governadores pressionam o presidente da República para continuar, não federativamente, recebendo mais recursos do que os outros entes federados. Os recursos do petróleo não são de nenhum Estado. Os Estados são divisões político-administrativas. O solo é brasileiro, o subsolo é de todo o povo brasileiro. E não de um Estado. Não há uma relação necessária. E a Constituição, sabiamente, separa a riqueza do solo da riqueza do subsolo. Nós estamos aqui discutindo essa distribuição de recursos como se fosse dono do subsolo o Estado que, politicamente, tem um espaço territorial coincidente com aquele do subsolo. Está na hora de o Congresso Nacional repensar tudo isso. E quero crer que, indo ao plenário, os três Estados vorazes vão “dançar”. Porque não há possibilidade de convencer todos, menos três, que esses três devam continuar recebendo mais por conta de uma riqueza que, sendo de todos os brasileiros, não pode ser, obviamente, só desses três entes federativos.
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Hoje, contudo, vivemos um momento esquizofrênico, franksteniano. Mesmo com evidente abertura política, os recursos permanecem concentrados nos cofres da União, sufocando Estados e Municípios. Há uma falta de sintonia muito grande
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OC: A DRU da Educação foi extinta. Isso não é positivo?
IMC: Graças a Deus! A DRU da Educação foi extinta, mas, enquanto isso, alguns Estados fortes ficam a arguir a inconstitucionalidade do piso salarial dos professores, perdendo a oportunidade de fazer a mais importante revolução que se poderia fazer neste país. Que tem tudo a ver com gênero. É fazer com que lá no Nordeste, pelo salário das professoras, elas não sejam empregadas dos machões, dos donos da casa. Até a família brasileira mudará de perfil se nós conseguirmos valorizar o magistério. É uma revolução por dentro, é uma revolução substancial. E vão os Estados arguir a inconstitucionalidade dessa norma emancipadora. Solução à vista? Que a União repasse a diferença para os Estados que, comprovadamente, não possam pagar, mas não discuta mais o piso. Porque o piso é daquelas coisas que, em chegando, não podem mais ser discutidas. Falta, portanto, o quê? Falta um sentimento federativo em tudo isso. É preciso assegurar, sim, um piso salarial para os professores. Que é para a gente poder se libertar dessa dependência psicológica, social e até moral em que vivemos, pela escuridão que é o analfabetismo, e o não acesso da sociedade à informação, à cultura e à tecnologia.
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A DRU da Educação foi extinta, mas, enquanto isso, alguns Estados fortes ficam a arguir a inconstitucionalidade do piso salarial dos professores, perdendo a oportunidade de fazer a mais importante revolução que se poderia fazer neste país
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OC: Revolucionamos a sociedade com a educação?
IMC: Com certeza absoluta! Pela educação você vê mais mundos. É como se você fosse desanuviando os seus olhos e os olhos daqueles a quem você educa. É pela educação que você desenvolve a consciência crítica. E uma vez com a consciência crítica aguçada ninguém venderá mais o seu voto a quem quer que seja. O voto passa a ser uma honraria, em vez de ser apenas um direito. E ninguém negocia sua honra! Nem em situação limite.
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É pela educação que você desenvolve a consciência crítica. E uma vez com a consciência crítica aguçada ninguém venderá mais o seu voto a quem quer que seja
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OC: A educação é uma pré-condição para votar?
IMC: Um pai consciente leva o filho para a vacinação independentemente de campanha. Porque já tem a consciência da necessidade daquilo. Você toma consciência de que deve votar é pela educação. Uma vez consciente e criticamente formado, você não deixará de votar porque sabe que o seu voto é decisivo. Então você atinge uma espécie de auto-obrigatoriedade do voto, se me fosse permitido usar essa expressão.
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Você toma consciência de que deve votar é pela educação. Uma vez consciente e criticamente formado, você não deixará de votar porque sabe que o seu voto é decisivo
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OC: O voto facultativo contribuiria para uma maior indiferença popular?
IMC: O voto obrigatório tem muito a ver com o imposto sindical, que é uma receita passivamente adquirida sem nenhum esforço. Com o voto facultativo, acredito que as lideranças políticas se empenhariam em grandes campanhas para conscientizar o eleitorado. Todavia, elas não querem pagar o preço, sofrer o ônus de ter que ir à catequese política. É uma espécie de atitude de gigolô político. O gigolô político não faz nenhum esforço porque o voto obrigatoriamente vai para ele, ou para o partido dele, ou para qualquer outro, de preferência se for ele esse outro. Cria-se uma espécie de grande família para repartir os votos de acordo com o a lei do menor esforço.
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O gigolô político não faz nenhum esforço porque o voto obrigatoriamente vai para ele, ou para o partido dele, ou para qualquer outro, de preferência se for ele esse outro
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OC: Então não é tão temerário assim tornar facultativo o voto para essa sociedade que ainda não está educada?
IMC: Eu tenho pavor dessa expressão “ainda não está”. Como dizem que disse o nosso Pelé, “o povo ainda não está preparado para votar”. Ora, ninguém aprende a nadar se não molhando-se. O paradoxo, ironizado, se não me engano, pelo velho Hegel, daquele sujeito só se dispunha a enfrentar os riscos da natação depois que aprendesse a nadar… Há, então, essa como que impossibilidade. Eu prefiro arriscar o voto facultativo! Até porque, se aparecer algum problema sério, sempre poderemos voltar atrás. Nós nunca experimentamos o voto facultativo. E isso é um atestado de imaturidade, para não dizer até de alienação política definitiva.
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Nós nunca experimentamos o voto facultativo. E isso é um atestado de imaturidade, para não dizer até de alienação política definitiva
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OC: O papel contra-majoritário do Supremo Tribunal Federal é compatível com a democracia?
IMC: O argumento que sempre se apresenta contra a jurisdição constitucional é esse argumento contra-majoritário. Ou seja, os juízes das Cortes Constitucionais, mesmo aquelas Cortes que tenham uma composição mais aberta, como as da Alemanha, Espanha, Itália e Portugal, por exemplo, que possuem segmentos oriundos de instituições distintas, das Casas do Legislativo, do Executivo, e da própria magistratura, mesmos esses juizes são tidos e havidos como controladores ilegítimos da constitucionalidade das leis. E a crítica que se faz sempre é que esses senhores juízes não têm voto. E, não tendo voto, não podem decidir pela anulação de uma lei que foi votada pelo Parlamento. Penso que essa crítica só teria sentido se a gente mudasse a ideia de Constituição. Se a gente substituísse a ideia de que a Constituição é o documento fundamental; que ela é a expressão da maioria das maiorias, do povo constituinte, que, enfim, não teria consistência o argumento de Hamilton, reproduzido por Marshall, no caso Marbury versus Madison, quando disse que em havendo choque entre a vontade do povo, expressa na Constituição, e a dos seus representantes, manifestada na lei, deve o juiz resguardar vontade da grande maioria, da “maioria maior”, consubstanciada na Constituição, e declarar inválida a lei que a contrariar. Então, guardar a Constituição é guardar a vontade da maioria e isso me parece não ter nada de contra-majoritário.
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(…) guardar a Constituição é guardar a vontade da maioria e isso me parece não ter nada de contra-majoritário
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OC: Podemos argumentar que a magistratura é uma representação funcional criada pela Constituição?
IMC: É claro! Por uma necessidade sistêmica. A Constituição está posta aí. Seria uma pretensão ilusória você organizar constitucionalmente um Estado, admitir que a grande conquista, o grande avanço, é a Democracia Constitucional, é o Estado Constitucional de Direito, e depois dizer que vai entregar a guarda da Constituição ao Parlamento, para que este guarde os seus próprios atos em face da Constituição. Olha, já está na hora de reler o Montesquieu. Reler de cabo a rabo e devagar! Nada mais perigoso do que concentrar nas mãos do legislador o poder de fazer as leis e de considerá-las boas. Eu prefiro o contraditório. Quem faz a lei não deve julgar se ela é boa. Por isso é que eu sou contra, por exemplo, o Ministério Público investigar os crimes cuja prática, mais adiante, ele irá denunciar. E por quê? Porque eu posso dirigir a investigação em função da denúncia que tenho em vista apresentar. Eu preparo todo o bolo e depois eu digo: “Excelente essa comida”. Não! Quem tem que dizer que a comida é boa é o cliente do restaurante, e não o chefe da cozinha. Então, quem prepara o inquérito não pode fazer denúncia com base nele. Também aqui deve haver um mínimo de contraditório. Um Ministério Público que investiga por conta própria acaba por construir a culpabilidade de que precisa para oferecer suas denúncias.
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Nada mais perigoso do que concentrar nas mãos do legislador o poder de fazer as leis e de considerá-las boas. Eu prefiro o contraditório. Quem faz a lei não deve julgar se ela é boa
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Queridos, parabéns pela entrevista!
PS:vcs são fotogênicos!!!
Ana Cândida
Acabo de ler a argumentação mais inteligente e simples contra o "poder de investigação" do Ministério Público. E vem de um ex-Procurador da República.
A entrevista toda está excelente!