Paulo Lopo Saraiva
13.03.12

O STF e a supremacia dos princípios

 

A soberania popular entre nós não foi obra do acaso.

Foi produto de seculares lutas sociais, com o apoio de devotados patriotas, que buscavam, no seio do povo, a verdadeira solução para os prementes problemas da democracia brasileira.

Após um período ditatorial, conquistamos nova oportunidade de participar de uma Assembléia Nacional Constituinte, por meio de representantes eleitos e que estatuíram um novo estado brasileiro, desta feita, com vistas à implementação dos direitos fundamentais.

Dentre as grandes conquistas dos constitucionalistas de 1987/88, ressaltamos, por dever de justiça e glória, a inserção da soberania popular, no novo texto constitucional, através do plebiscito, do referendo e da iniciativa popular. É o que consagra o artigo 14 da CFB, expressis verbis:

Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante:

I – plebiscito;

II – referendo;

III – iniciativa popular.

O Mestre Paulo Bonavides, em letras áureas, descreveu a nossa participação, no episódio:

O art. 14 da Constituição de 1988 constitui parte da espinha-dorsal de nosso sistema de organização política, que assenta sobre duas dimensões: uma representativa, a única de funcionamento normal desde a promulgação da Lei Maior, há cerca de uma década; outra, democrática direta; ambas positivamente previstas e expressas no art. 1º do Estatuto Fundamental da República Federativa do Brasil. A última ficou, conforme já exaustivamente patenteamos, sujeita ao bloqueio da reserva legal do sobredito art. 14, reserva que tem sido o instrumento das elites conservadoras, temerosas do governo popular direto, para refrear a expansão de uma presença mais ativa e imediata do corpo da cidadania na formação da vontade governativa.

Vejamos a seguir as origens dos institutos da democracia semidireta no sistema constitucional brasileiro, excelentemente retratadas pelo constitucionalista Paulo Lopo Saraiva que, tomando parte ativa nos trabalhos de assessoria aos constituintes de 1987-1988, foi testemunha da batalha política ferida nos bastidores do colégio da soberania nacional para aprovar aquele dispositivo:

‘O art. 14 da vigente Constituição representa uma grande vitória popular sobre a elite conservadora nacional.

Por esse dispositivo, consagrou-se a soberania popular, através do plebiscito, do referendo e da iniciativa popular, institutos da democracia semidireta, na sábia lição de Paulo Bonavides.

‘A emenda inicial, por nós elaborada, quando Assessor Parlamentar constituinte, contemplava, de igual modo, o veto popular. Mas o então relator-geral houve por bem (ou mal) suprimir o veto popular.

‘A inserção dos mecanismos de participação popular foi uma vitória das forças progressistas contra o malsinado Centrão.

‘É Este o comentário de João Gilberto Lucas Coelho, atual vice-Governador do Rio Grande do Sul, e Antonio Carlos Nantes de Oliveira, sobre a votação n. 149, na Assembléia Nacional Constituinte. Dizem eles: ‘O Centrão tentou derrubar a soberania popular conquistada na fase das subcomissões. Uma emenda do senador Lavoisier Maia resolveu a questão e permitiu a aprovação da matéria em primeiro turno, nos seguintes termos: ‘A soberania popular será exercida pelo plebiscito, pela iniciativa popular, pelo veto popular e pelo referendo, conforme dispuser a lei’. Em Plenário, presentes 461 constituintes, 370 (78%) votaram sim, 89 não e houve 12 abstenções. Fechadas com o sim votaram as bancadas do PC do B, do PCB, do PDT e do PMDB, do PSB e do PT; os dois constituintes sem partido votaram sim; por maioria dos demais partidos, inclusive PSD e PFL, aprovaram a emenda’ (in A Nova Constituição, INESC, Ed. Revan, p. 92).

“A nossa luta pela aprovação da emenda foi intensa, de vez que o Centrão reunia grande força no seio da Constituinte.

“Agora, devemos nos mobilizar para que o Congresso Nacional regulamente o exercício desses salutares institutos a fim de que o povo tenha participação direta no processo político-eleitoral.

“Não basta que o texto constitucional enuncie essas conquistas. É preciso efetivá-las, por meio do seu exercício democrático” (Paulo Lopo Saraiva, Curso de Direito Constitucional, Ed. Acadêmica, 1995, pp. 57-58).” (Teoria Constitucional da Democracia Participativa, Malheiros Editores, 2001, p. 117)

O Centrão tudo fez para impedir este oceânico avanço popular. Mas as forças democráticas impuseram forte derrota a esse segmento da ANC, firmando a possibilidade da participação do povo, nos negócios do Estado.

A soberania popular foi definitivamente consolidada, com aprovação da votação nº 149, de autoria do então senador Lavoisier Maia Sobrinho, de nossa lavra, pois, á época, exercíamos a função de Assessor Parlamentar Constituinte.

Como resultado da iniciativa popular, plantada por nós, no texto constitucional, foi promulgada a Lei Complementar nº 135/2010, conhecida como a Lei da Ficha Limpa.

Recentemente, o STF, por maioria de votos, decidiu pela sua constitucionalidade, em votação com placar de 7 x 4. Pensamentos divergentes e até críticas atacaram o referido decisum, acusando-o de “confisco de cidadania”.

Na verdade, o STF, em oportuno tempo, com essa histórica decisão, privilegiou a supremacia dos princípios, em detrimento da valoração das normas.

Os contemporâneos constitucionalistas, tendo à frente, o Mestre Paulo Bonavides, já proclamaram que, na era dos princípios, as normas terão de obedecer à hierarquia dos valores. “As regras vigem; os princípios valem”, já afirmou, há muito, o Mestre Paulo Bonavides, na sua pregação cívica e convincente.

O STF privilegiou o princípio da moralidade (art. 37, caput, CFB), acima do princípio da presunção de inocência, que, em face das circunstâncias jurídicas da Lei da Ficha Limpa, passa a ser uma regra.

De fato, todos nós entendemos que se impõe o combate à corrupção, por meio das estratégias idôneas e válidas. Esta lei é uma dessas estratégias. Teve origem no clamor do povo. Representa a verdade da maioria e é a confirmação do sentimento constitucional.

Conheci Étienne-Richard Mbaya, em Recife, nos anos 90.

O Mestre Paulo Bonavides apresentou-me a ele, que era do Zaire, mas lecionava em Colônia-alemanha. Ele gentilmente ofertou-me o livro intitulado “La Charte Africaine des Droits de L’Homme Et des Peuples”. Foi vítima do combate à corrupção, no seu país.

Se vivo fosse, tenho certeza, o Mestre africano, estaria feliz com a vigência da lei brasileira da ficha limpa.

Já afirmei antes e faço-o agora: quando é necessário, a luta faz a lei. Foi o que aconteceu com a Lei Complementar 135/2010.

Ante a imperiosa necessidade de fazer a faxina ética, na política brasileira, o povo usou o dispositivo constitucional da iniciativa popular e impôs a mudança na vida política.

Isto é “confiscar a cidadania?”. Isto é desrespeitar algum princípio constitucional?

Pelo contrário, nunca a cidadania foi tão ativada, como agora, através dessa decisão do STF.

Realizar a Constituição, na linha do pensamento de Friedrich Muller, é oxigenar os quadros da vida pública impedindo a presença dos que não mais têm “o elemento de candura”, a serem representantes do povo.

Entre o princípio da moralidade e o da presunção de inocência, o STF preferiu o da moralidade.

E fez a diferença entre valer e viger.

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PAULO LOPO SARAIVA, pós-doutor em Direito Constitucional pela Universidade de Coimbra, é advogado e coordenador do curso de Direito da FACEP – Pau dos Ferros/RN.

Foto: dMad-Photo/Flickr.



2 Comentários

  1. Frederico Pinheiro disse:

    Com relação à opinião de juristas, comparando a Lei da Ficha Limpa a uma tutela antecipada, faço lembrar os requisitos para sua concessão:
    – Fumus boni iuri (ou ‘fumaça do bom direito’);
    – Periculum in mora (ou ‘perigo da demora’) ;
    – Reversibilidade de seus efeitos, caso seja considerada indevida após a análise mais detalhada do caso.
    No caso da Lei da Ficha Limpa, este terceiro requisito é impossível de ser cumprido, pois a candidatura já terá sido recusada e as exigências a serem cumpridas pelo candidato e seu partido também. Por isso ser tão importante o respeito ao princípio constitucional da presunção de inocência …

  2. EstudantedeDireito disse:

    A inversão de valores moralidade/inocência violou o sistema normativo, onde as leis infraconstitucionais buscam a sua validade e fundamentação na Lei Maior e não o Contrário! A inversão, adequando a Constituição à Lei Complementar maculou e deslegitimou todo o sistema normativo! O princípio Constitucional da inocência (garantia individual) é cláusula pétrea e jamais poderia ser relativizado, pois descaracteriza e deslegitima todo o sistema! Essa Decisão afronta a Teoria Pura do Direito onde uma norma busca sua validade e fundamentação na norma que lhe é superior! Pois no Direito, ao fazermos o percurso da verticalidade fundamentadora das normas “desaguamos” na -fonte primária- a Constituição Federal! Foi uma decisão populista e não técnica! Técnica seria se tivesse respeitado o princípio normativo da não-culpabilidade ou inocência. Minha opinião!