2.12.09
Marcelo Neves e o transconstitucionalismo
OS CONSTITUCIONALISTAS
Na noite de 10 de novembro de 2009, na biblioteca do Supremo Tribunal Federal (STF), o blog Os Constitucionalistas entrevistou o jurista Marcelo Neves, professor de Teoria do Direito no mestrado do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e conselheiro do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Naquela noite, o professor Marcelo Neves lançou em Brasília o seu novo livro, Transconstitucionalismo, editado pela WMF Martins Fontes. Confira a entrevista.
Os Constitucionalistas: A decisão da Corte Europeia de Direitos Humanos (CEDH), que condenou a presença de crucifixos nas escolas públicas da Itália (caso Lautsi v. Itália), é um exemplo de problema do transconstitucionalismo?
Marcelo Neves: É claramente um caso de transconstitucionalismo. Por quê? Porque nesse caso a questão é constitucional. É a liberdade religiosa, é a liberdade individual, quer dizer, são elementos basicamente constitucionais. Mas hoje essas questões não são decididas só pelo Tribunal Constitucional, no caso o italiano. Então, você tem, ao mesmo tempo vai se envolver em determinado momento o Tribunal italiano, porque alguém vai recorrer ao Tribunal Constitucional italiano, mas há essa decisão da Corte Europeia de Direitos humanos. E como é que vamos resolver definitivamente a questão? Vai ter que haver um momento de adequação, de harmonização. Então o problema surge como um problema transconstitucional. E o que eu proponho é o seguinte: como esses problemas aumentam cada vez mais, eles crescem quantitativamente, qualitativamente, nós precisamos de procedimentos e métodos para encontrar soluções mais adequadas para esse tipo de problema. Porque uma ordem vai dizer: “Não, vou pelo meu caminho”. A outra ordem vai reagir a isso, como a Europeia. Então a gente tem que buscar agora uma abertura maior de uma ordem jurídica em relação à outra. A ordem de Direito Constitucional italiana não pode se fechar diante desse caso em face da ordem Europeia. Mas a ordem Europeia tem que ter uma sensibilidade para perceber as particularidades da Itália.
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A ordem de Direito Constitucional italiana não pode se fechar diante desse caso em face da ordem Europeia. Mas a ordem Europeia tem que ter uma sensibilidade para perceber as particularidades da Itália
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Os Constitucionalistas: Até que ponto o transconstitucionalismo se entrelaça com a interjusfundamentalidade do Professor José Joaquim Gomes Canotilho?
Marcelo Neves: Eu diria que há uma relação próxima. Porém, quando eu falo transconstitucionalismo, eu não falo só do problema de fundamentação, e o Canotilho está preocupado com esse problema específico. E também, quando eu falo de transconstitucionalismo, eu não falo só de interconstitucionalismo. O transconstitucionalismo inclui o interconstitucionalismo, porque há situações onde as duas ordens envolvidas, como no primeiro caso, a Corte Europeia de Direitos Humanos e o Tribunal italiano, são ordens constitucionais, mas o transconstitucionalismo implica também sensibilização em face de ordens que muitas vezes não adotam modelos constitucionais. Uma das ordens tem que estar orientada pelos princípios dos direitos fundamentais da limitação do poder. Às vezes a ordem brasileira enfrenta ordens nativas jurídicas que não se fundamentam nos critérios constitucionais brasileiros. Por exemplo, os [índios] Suruahá. Os Suruahá matam bebês que nascem com deficiência física ou bebês gêmeos, que eles acham que é um mal para a comunidade, eles matam. Se você tomar uma posição cega, vamos condenar toda essa comunidade e levar para o Carandiru ou uma prisão. Mas isso é um etnocídio. Então para enfrentar uma questão dessas a gente precisa de um diálogo transconstitucional, mesmo que nesse caso seja unilateral, um aprendizado para possibilitar a integração, um respeito a essas culturas. Então isso é transconstitucionalismo de certa maneira sem interjusfundamentalidade. Às vezes o transconstitucionalismo não implica em interconstitucionalismo. O meu modelo é um pouco mais abrangente do que o modelo de Canotilho. Porque o de Canotilho, ao mesmo tempo em que é interconstitucionalidade, então as duas ordens devem admitir os pressupostos do constitucionalismo, ele, além disso, trabalha no plano da fundamentalidade, eu não trabalho só no plano da fundamentação.
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…. o transconstitucionalismo implica também sensibilização em face de ordens que muitas vezes não adotam modelos constitucionais
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Os Constitucionalistas: No último dia 23 de outubro, o professor Canotilho esteve em Brasília onde proferiu uma palestra no IDP. Ele elogiou muito o senhor…
Marcelo Neves: Não, mas eu o elogio muito. Estou dizendo só a diferença. O Canotilho sempre respeitou muito meu trabalho, desde, veja bem, Canotilho conheceu meu trabalho em 1993 quando ele leu, sem me conhecer, na biblioteca de Fribourg, ele estava pesquisando e encontrou o meu livro, minha tese de doutorado [Verfassung und Positivität des Rechts in der peripheren Moderne: Eine theoretische Betrachtung und eine Interpretation des Falls Brasilien] feita com Niklas Luhmann e não foi traduzida para o português. Eu sempre adio a tradução dessa tese, mas eu sempre publiquei meus livros na Alemanha, mas traduzi para o português, mas esse eu não traduzi. Quando ele leu a tese, ele se impressionou muito, ele me disse, e aí ele se aproximou muito de mim, a tal ponto que ele me chamou para o Congresso dos 20 anos da Constituição Portuguesa. O único jurista brasileiro convidado para a palestra fui eu. Eu me lembro que estava lá o Gilmar [Gilmar Mendes, hoje presidente do Supremo Tribunal Federal], todo mundo, que eram amigos meus, na platéia e eu fui chamado. O Gilmar brincava comigo, ele dizia: “Como é que você chegou aqui?”; eu dizia: “Não rapaz, eu cheguei, o Canotilho…” Então estava o Gilmar, era Advogado-Geral da União, tudo isso, então ele [Canotilho] sempre respeitou muito meu trabalho e a gente tem uma boa relação e ele me tem muita consideração, então o trabalho dele é importante também para mim que aprendi muito com Canotilho.
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O Gilmar brincava comigo, ele dizia: ‘Como é que você chegou aqui?’
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Os Constitucionalistas: Os tribunais brasileiros estão preparados para as “pontes de transição” propostas pelo transconstitucionalismo?
Marcelo Neves: É uma boa pergunta! Eu acho que em parte alguns tribunais podem estar preparados. Em parte alguns ministros, alguns juízes, mas outros não estão preparados. É claro que eu posso ver alguns juízes que estão preparados para isso, como o ministro Gilmar [Mendes], como o ministro [Ricardo] Lewandowski, só pra dar exemplo, eles estão porque eles compreendem bem essa problemática; os dois, eles têm noção mais ou menos do que é esse novo significado de um diálogo além do constitucionalismo local. Eu penso que o Gilmar tem essa sensibilidade, o Lewandowski tem. Você encontra juízes brasileiros, mas ainda não há uma cultura transconstitucional no Brasil. Eu trago esse tema exatamente para provocar, para estimular o transconstitucionalismo também no Brasil.
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Eu trago esse tema exatamente para provocar, para estimular o transconstitucionalismo também no Brasil
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Os Constitucionalistas: Com o transconstitucionalismo, as Cortes Constitucionais, como o Supremo Tribunal Federal, perdem a prerrogativa da última palavra em questões constitucionais?
Marcelo Neves: Eu acho que sim. Aí é que é a diferença. O constitucionalismo clássico significa que essas Cortes entendem que elas são as últimas. Elas são as últimas internamente, mas o problema perdura. Por exemplo, a Corte Constitucional alemã no caso de Caroline de Mônaco. A Corte alemã afirmou que a intimidade de Caroline de Mônaco não prevalecia contra a liberdade de imprensa. Por quê? Só para o filho dela, porque o filho era menor. Porque ela era proeminente, e nessa proeminência, nessa notoriedade pública ela tinha que arcar com esses ônus dos paparazzi. A Corte Europeia de Direitos Humanos declarou no mesmo caso, em face contra o Estado alemão, a decisão de que não cabe dizer que a liberdade de imprensa prevalece, mas sim a intimidade de Caroline de Mônaco. Aí não tem um modelo último, porque ninguém é superior ao outro. A Corte Europeia de Direitos Humanos é que condena, mas depende do Estado alemão para se adequar. Então surge um impasse aí, surge um impasse transconstitucional que só pode ser resolvido se as duas ordens estiverem dispostas a um diálogo transconstitucional. É esse o problema que eu ponho. Aparentemente o Supremo é a última instância, é claro dentro do contexto brasileiro, mas o Supremo às vezes, aparentemente nessa superioridade, teve que se subordinar à mudança quanto ao depositário infiel. “Não, é a última instância, ele decidiu porque quis”. Mas decidiu porque teve que mudar uma jurisprudência histórica pela pressão que veio da Corte Americana de Direitos Humanos que tomou providência oposta. Então essa idéia de última instância não existe mais, o que há são ordens diversas dialogando e isso vai se fortificar cada vez mais. É claro que há o constitucionalismo interno, que vai existir, como o rádio não deixou de existir porque apareceu a televisão; como o cinema não acabou porque houve o DVD. Às vezes dizem que eu estou acabando com o Direito Constitucional interno, esse tradicional – esse é importante ainda pra muitos casos, há vários casos que até no CNJ a gente encontra, são tipicamente constitucionais e são internos. Agora, os problemas novos que vão se tornar cada vez mais qualitativamente importantes para esses problemas transconstitucionais. E esses que são pouco estudados ainda. Por isso que o livro vem para provocar a análise e o estudo desses problemas.
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Então essa idéia de última instância não existe mais, o que há são ordens diversas dialogando e isso vai se fortificar cada vez mais
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Os Constitucionalistas: O julgamento da extradição do italiano Cesare Battisti pode ser considerado também um caso de transconstitucionalismo?
Marcelo Neves: Eu acho que também. É claro que esse caso dentro da tradição da discussão sobre extradição ele é muito a tradição constitucional brasileira antes do transconstitucionalismo, mas agora ele se torna muito mais impactante, ele se transforma em transconstitucional porque hoje a outra ordem cada vez mais ela toma, ela apresenta modelo de retaliação, de reagir a decisões desse tipo. Eu acho que tende a se transformar num impasse, pelo menos inicialmente, num impasse transconstitucionalismo se houver uma decisão que não seja de harmonização e pode ser que nem sempre temos que nos subordinarmos à ordem do outro. Porque senão não seria um transconstitucionalismo, seria um colonialismo. É claro que o impasse pode surgir e, evidentemente, se a decisão for contrária, por exemplo, à extradição, vai haver reações, vai haver problemas de relacionamento entre os países. Agora tem que haver um aprendizado recíproco. Os italianos, a cultura italiana jurídico-constitucional, ela tem que estar disposta a aprender com nossa experiência e depois pode haver harmonizações futuras e adequações com novos modelos de tratados de regulação dessa matéria. Mas, sem dúvida, vai surgir um impasse transconstitucional especialmente se tivermos uma decisão contrária.
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Os italianos, a cultura italiana jurídico-constitucional, ela tem que estar disposta a aprender com nossa experiência
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Os Constitucionalistas: Então no caso devem ser preservadas a soberania e a reciprocidade, é isso?
Marcelo Neves: Soberania não é negada aqui. Estou dizendo que a soberania não é mais no sentido antigo. A soberania é como algo absoluto sem responsabilidade. A soberania hoje implica muito mais a noção de responsabilização do que de autonomia do Estado. O Estado tem que ser responsável. Por exemplo, se o Brasil toma uma decisão ambiental, se, por exemplo, [o presidente] Lula e o Congresso decidissem criar um campo de golfe na Amazônia toda… Claro que eu acho que tinha que invadir o Brasil. Eu acho! Quer dizer, por quê? Um campo de golfe na Amazônia é o fim de toda a humanidade. É acabar com o pulmão da humanidade. Então nós temos essa responsabilidade com a humanidade. Então, eu acho, é claro, não é em qualquer besteirinha de Amazônia, uma política seja num sentido ou em outro, mas tem limites para a soberania, e esses limites para uma sociedade altamente integrada ambientalmente; é claro, se o Lula dissesse “Vamos criar um campo de golfe para a burguesia brasileira na Amazônia”, destruir a floresta, isso não teria nenhum fundamento com o princípio de soberania, isso teria um impacto em outros países e não só para o Brasil. Então, nesse sentido, a soberania tem que ser compatibilizada com responsabilização.
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A soberania hoje implica muito mais a noção de responsabilização do que de autonomia do Estado. O Estado tem que ser responsável
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