26.09.10

Ficha Limpa e um STF infiltrado pelo populismo judicial

REINALDO AZEVEDO

Eis aqui um texto delicado sobre tema delicado, com uma opinião deste escriba que desagrada a muitos leitores. Bem, fazer o quê? Vocês me lêem porque sempre escrevo o que penso. É há coisas que, de fato, dividem a valer a opinião dos leitores do blog. A chamada Lei do Ficha Limpa é uma delas.

Eu me alinho entre aqueles que a consideram flagrantemente inconstitucional. Uma pessoa só é considerada condenada depois que sua sentença tenha transitado em julgado. Enquanto for essa a lei e enquanto vigorar a Constituição que temos, é um absurdo lógico privar de direitos quem quer que seja em razão de uma condenação que pode ser revista. Atenção! Essa é uma questão que não é nem de direita nem de esquerda. Trata-se, entendo, de não ceder ao populismo judicial.

A situação patética em que se encontra o STF hoje – que deixa o meio jurídico perplexo – decorre justamente do fato de que estamos diante de uma lei especiosa, que afronta a ordem legal. Acho falacioso o argumento de que não se está transgredindo a Constituição porque apenas se estabelece uma condição a mais – no caso, de exclusão – para e elegibilidade. Assim como se exige, dizem, que um candidato a Presidência tenha idade mínima de 35 anos, exige-se que os políticos tenham “ficha limpa”, nas condições estabelecidas na lei.

Devagar aí! A inelegibilidade à Presidência das pessoas com menos de 35 anos não nasce de uma condenação judicial que é PROVISÓRIA até que a sentença não tenha transitado em julgado. O critério é de outra natureza. A sociedade decidiu, por meio de seus representantes, que essa idade mínima daria mais segurança ao processo político. Ok, pode-se debater se a exigência é boa ou ruim. Mas é certo que um tribunal não poderá rever a idade de uma pessoa com 25, declarando ter ela 35, por exemplo. Já um tribunal superior pode rever a sentença do tal “colegiado de juízes”.

A Justiça é lenta? Os processos se arrastam? Pois que se veja como resolver a questão. O que não é possível, entendo, é violar a Constituição e estabelecer atalhos para “moralizar” ex machina o processo político, afrontando o que diz a Carta. Não é possível! A janela que se abre, por onde passa esse “benefício”, pode permitir a passagem de muitos malefícios.

Incomoda-me também, e muito!, a pobreza argumentativa dos que  apóiam a lei. Ainda ontem, o ministro Ricardo Lewandowski, ao defender a aplicação da lei já neste 2010, concentrou a sua defesa neste argumento: “A Lei da Ficha Limpa presta inequívoca homenagem aos princípios da probidade administrativa e moralidade, que constituem, a meu ver, o próprio cerne do regime republicano”.

Argumento ruim, ministro! Aliás, ARGUMENTO PÉSSIMO! É uma variante, com retórica meio balofa, do direito achado na rua. O “cerne do regime republicano”, num estado democrático e de direito, é o cumprimento da lei. Talvez a figura histórica que mais tenha se dedicado a defender a “probidade num regime republicano” tenha sido Robespierre. Sua eficiência se contou em cabeças…

Deixando de lado a questão constitucional e jurídica – que parece mesmo indefensável –, dizem muitos: “Ah, mas alguns bandidos não poderão se candidatar”. Pode até ser. Ocorre que, quando se manda a lei às favas para pegar bandido, pode-se mandá-la também para pegar pessoas de bem. Ou um sistema que desrespeita a Constituição “por bons motivos” não pode desrespeitá-la por maus motivos, a depender do poder de turno?

Lei permite caça às bruxas

Poucas pessoas atentaram para o fato de que, entre os indivíduos inelegíveis, estão as que – ATENÇÃO!!!

“forem excluídos do exercício da profissão, por decisão sancionatória do órgão profissional competente, em decorrência de infração ético-profissional, pelo prazo de 8 (oito) anos, salvo se o ato houver sido anulado ou suspenso pelo Poder Judiciário”

Trata-se de um troço escandaloso! “Órgão profissional” assumiu agora a posição de STF ou STJ, a depender do caso. É claro que se abre aí a porta para perseguições de toda natureza. Imaginem se o PT consegue mesmo aprovar o Conselho Federal de Jornalismo nas condições que os esquerdopatas sempre imaginaram – podendo cassar a licença profissional de jornalistas… Tenham paciência! As coisas não podem se misturar dessa maneira, não! Isso é uma aberração!

E Peluso?

Lamentável, de resto, a postura de Cezar Peluso, presidente do STF, no julgamento de quinta-feira. A ele, presidente do tribunal, caberia o desempate – e é por isso, e só por isso, que tem a prerrogativa, na presidência, de votar duas vezes. Qualquer coisa que fizesse seria compreensível e facilmente defensável. Mas não! Optou pelo caminho mais fácil para ele e mais difícil para a sociedade. Quem ganha com o impasse? Ninguém, a não ser, talvez, ele próprio, que preferiu se livrar de um peso que é um dos atributos do cargo.

Concluindo

O conjunto da obra não cheira bem, de modo nenhum! Vejo um Supremo que já foi infiltrado por uma espécie de populismo judicial, preocupado demais com o alarido e, em alguns casos, de menos com o cumprimento da Constituição. Que um parlamentar diga na Câmara e no Senado coisas como “se o povo quer, esta Casa quer”, vá lá. A um ministro do Supremo, cabe dizer outra coisa: “Se o povo quer, esta Casa só quererá se estiver de acordo com a Constituição”.

E o Ficha Limpa não está. E, se não está, mas recebe mesmo assim as bênçãos, pode ser apenas uma das vezes em que a Corte Suprema do país endossará a violação do texto Constitucional pelo qual lhe cumpre zelar. Arremato dizendo que estou pouco me lixando se isso deixa Rorizes, Jáderes e caterva fora da política. Eles são pequenos demais para justificar a violação da Constituição.

É o que eu penso.

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REINALDO AZEVEDO é jornalista.

Publicado originariamente no blog do autor em 25/09/2010.



6 Comentários

  1. Ótimo artigo!

    Nunca tinha pensado por este lado.

    Pena que este lado da história não foi apresentado ao povo brasileiro, do qual não sabe ao menos do que se trata a Constituição e defendem o ato cegamente.

    O que me deixa preocupado é que aqueles a quão fazem mau ao Brasil, que alimentam o “câncer político”, estes continuarão no poder, vide Maluf, Família Sarney, Romeu Tuma e companhia.

  2. ricardo sandoval disse:

    Concordo que esse inciso “forem excluídos do exercício da profissão …”

    Pode ser usado por interesses escusos e quanto à resolução ideal dessa questão me vejo no momento indeciso.

    Agora ao cerne do seu artigo

    A Carta Magna não é absoluta em todos os sentidos, pois existem possíveis conflitos de interpretações e direitos que a própria carta deixa inevitavelmente à decisão do tribunal ou juiz.

    Num aparte, que me desculpem os doutrinadores, mas argumentos de que a lei pode estar no mundo jurídico e não ser eficaz me parecem vazios. Afinal para que existe a lei se não para ser eficaz?

    Enquanto a frase de Ricardo Lewandowski: “A Lei da Ficha Limpa presta inequívoca homenagem aos princípios da probidade administrativa e moralidade, que constituem, a meu ver, o próprio cerne do regime republicano.”

    Entendo como perfeitamente adequada não importando que hoje e sempre outros usem argumentos pró-moralidade para cometer as maiores barbaridades.

    Afinal não é o papel do desonesto se vestir da “pureza” para enganar? E então, se argumenta, devem se retirar os valores da moralidade/ética do discurso?

    A ética continua devendo sim ser o primeiro princípio norteador de todo cidadão.

    Quanto ao seu argumento: “O cerne do regime republicano”, num estado democrático e de direito, é o cumprimento da lei.

    Rebato:

    1) “O homem não é feito para a lei mas a lei para o povo”, ou seja, a lei deve ser criada para defender os princípios éticos e sociais, não o contrário.

    2) A lei não é de conhecimento de todos, e é decidida se não muito indiretamente por estes.

    3) A lei é comumente usada por aqueles com maiores poderes (econômicos e de influência) que conseguem os melhores advogados que acham “brechas na lei” e apelam com diversidade de recursos para protelar ou evitar a sua aplicação. Ou seja, a aplicação da lei na prática não é igual para todos.

    4) Esquecer o que acontece no mundo real, e seguir o discurso de que devemos seguir a letra da lei, enquanto ela mesma enseja naturalmente a diversidade de interpretações e a disputa entre direitos, é no mínimo confuso.

    5) E finalizando, a disputa de interpretações nas leis é comumente usado por aqueles que procuram favorecer aquelas que lhes parecem individualmente mais favoráveis para também cometerem as maiores barbaridades.

    Existem diversos meios de se cometerem barbaridades e quem quer preveni-las deve trazer à baila os mais diversos recursos como: A lei, o esclarecimento e discussão da lei, a ética, a publicidade de atos duvidosos e a transparência em geral.

    Ficaria feliz se rebatesse algum de meus argumentos.

  3. Ricardo disse:

    Nenhuma contra argumentação?

    Gostei principalmente de:

    Enquanto a frase de Ricardo Lewandowski: “A Lei da Ficha Limpa presta inequívoca homenagem aos princípios da probidade administrativa e moralidade, que constituem, a meu ver, o próprio cerne do regime republicano.”

    Entendo como perfeitamente adequada não importando que hoje e sempre outros usem argumentos pró-moralidade para cometer as maiores barbaridades.

    Afinal não é o papel do desonesto se vestir da “pureza” para enganar? E então, se argumenta, devem se retirar os valores da moralidade/ética do discurso?

    A ética continua devendo sim ser o primeiro princípio norteador de todo cidadão.

  4. Naiara disse:

    Ótimo artigo.
    Concordo com suas palavras e argumentos. A Lei da Ficha Limpa fere o princípio constitucional da Segurança Jurídica. O que de fato é inadmissível.

  5. Não obstante os bons argumentos do jornalista, autor do texto, podemos olhar o empate do STF sob outro aspecto.
    Embora a ausência de solução ao RE tenha sido, talvez, um ato de verdadeira covardia institucional dos ministros, um resultado não esperado, mas prudente, foi obtido.

    Com a (não)decisão sobre a constitucionalidade/inconstitucionalidade da “lei da ficha limpa” o órgão máximo do Poder Judiciário brasileiro deixou aos verdadeiros legisladores e executores das normas a escolha entre eleger ou não candidatos cujas condutas desabonam a seriedade e a dignidade de representantes do povo.

    Quem sabe hoje seja mais fácil opinar neste sentido que exponho, mas é perceptível que, com ou sem “lei de limpeza política”, o titular do poder político, o povo, votou nas eleições contrariamente à inconstitucionalidade da lei, elegendo inúmeros candidatos “ficha suja” ou, ao menos, de conduta duvidosa.

    O STF não é o colegiado de reis-filósofos platônicos, aliás está longe disso. O Poder Judiciário, ao contrário da opinião do Sr. Ney de Barros Bello Filho (http://www.osconstitucionalistas.com.br/quando-os-lobos-sao-muitos) é – para usar aqui uma linguagem fora do contexto estritamente jurídico – e deve ser um Poder democrático. Por isso, o que se espera de um Tribunal Constitucional é que, minimamente, saiba manejar argumentos jurídicos e extrajurídicos, para o bem da manutenção do Direito e do Estado Democrático de Direito. Afinal, o chamado “pós-positivismo” de alguns (que mais não é que um neopositivismo) norteia os votos de muitos ministros.

  6. Marco disse:

    Manifesto plena concordância com os versos acima do Ricardo. Sinceramente, há conflito de princípios e, pelo sopesamento do caso em tese, há de prevalecer os princípios norteadores da administração pública, sendo estes os presentes no art. 14, §9º: probidade administrativa e moralidade. In casu, estes princípios adquirem mais relevância que a mera presunção de inocência, visto que se discute no âmbito do direito eleitoral e aqueles princípios do art. constitucional retro são basilares nesta seara.
    Senhores, inelegibilidades não são penas, interpretando-se, assim, que não há falar em descumprimento do princípio da presunção de inocência.