18.10.10

Ficha Limpa: avanço ou retrocesso? Qual o seu verdadeiro papel na construção do Estado Democrático de Direito?

GISELLE BORGES ALVES

E agora, José?
Sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio – e agora?

Carlos Drummond de Andrade, “E agora José?”

1. Introdução

MAIS CONHECIDA como Lei da Ficha Limpa, a Lei Complementar 135/2010 está longe de pacificar os ânimos quanto à moralização das instituições públicas e da política brasileira. Ao contrário, desde a elaboração até a publicação oficial, em junho de 2010, muitas são as polêmicas surgidas perante os tribunais, nas discussões político-partidárias, nos meios acadêmicos, na imprensa, enfim, em todos os setores de nossa sociedade. As duas perguntas que permeiam o título deste artigo representam os aspectos antagônicos da doutrina e jurisprudência sobre o tema.

Longe de querer pacificar ou esclarecer este ou aquele aspecto da nova, intrigante e polêmica lei, o presente artigo veio antes de tudo para suscitar mais indagações no bom estilo “o direito não é, ele vem a ser”, do saudoso professor Roberto Lyra Filho[1]. Afinal, quanto maiores os debates, mais progresso jurídico-doutrinário teremos.

Muitas são as vozes que ecoam sobre a constitucionalidade desta lei[2] sob os mais diversos aspectos. Mas também muitos são os pontos de inconstitucionalidade suscitados perante os tribunais e meios acadêmicos. A relativização do princípio da presunção da inocência, a aplicação retroativa da lei e a questão relativa à aplicação imediata nas eleições 2010, considerando o preceito do artigo 16 da Constituição Federal de 1988, são apenas alguns dos enfoques que levam a averiguação da constitucionalidade da LC 135/2010.

O artigo se propõe a abordar apenas a questão do princípio da presunção de inocência em choque com as disposições da LC 135/2010. Não se trata de desprezar as outras vertentes que apontam a inconstitucionalidade da Ficha Limpa, incluindo as decisões que atualmente rondam o Judiciário brasileiro, causando insegurança jurídica notória. Apenas daremos atenção ao crucial problema de uma condenação antecipada e as consequências jurídicas, sociais e individuais advindas desta relativização.

Além dos questionamentos quanto à constitucionalidade, os mais arraigados defensores da Lei da Ficha Limpa salientam o aspecto democrático que permeou todo o processo de elaboração, principalmente quanto à mobilização popular, como uma consagração dos cidadãos na participação do processo legislativo brasileiro[3]. Desta participação surgem os que ressaltam o crescimento democrático e participativo da população. Mas a grande pergunta a ser feita (mais uma entre tantas) é: “A população brasileira está preparada para assumir papel tão importante no contexto legislativo e, principalmente, jurídico brasileiro?” Importante ressaltar que antes de responder a este questionamento é necessário buscar resposta a outro: “A população brasileira conhece os direitos e as garantias jurídicas que possui?”

Conforme é possível perceber, este artigo trará mais indagações do que respostas. Afinal, hoje temos mais interrogações do que pontos finais. Importante estabelecer de plano que não se trata de um discurso de exclusão da participação popular, ao contrário, a intenção é debater se esta participação é realmente consciente. O ponto crucial é saber se a Ficha Limpa está sendo aclamada por cidadãos conscientes dos direitos que indiretamente estão sendo coniventes em perder.

A insegurança jurídica e social causada pela Ficha Limpa, lei que viria, em tese, para resolver todos os problemas de corrupção e improbidade na administração pública (como se existisse um “abracadabra” ou um passe de mágica moralizador), hoje gera inúmeros problemas jurídicos que os cidadãos desconhecem ou simplesmente não querem conhecer. A LC 135/2010 foi lançada no berço jurídico e eis a grande pergunta que não quer calar: “E agora José?”, no melhor estilo Drummond de ser.

2. O princípio da presunção da inocência: relativização?

O princípio da presunção da inocência previsto no artigo 5° inciso LVI da Constituição Federal é garantia que, como todas as outras, resultou de um processo de busca democrática para a concretização de um Estado verdadeiramente de Direito, que sem dúvida, foi bem mais dolorido e sangrento do que o da atual corrupção administrativa.

A corrupção é um mal a ser exterminado – sem dúvida nenhuma – para dar lugar ao comportamento ético onde a prioridade seja realmente o interesse público em detrimento dos fins particulares, mas não pode ser conseguida por meio da relativização de princípios e garantias constitucionais. Se tal atitude for permitida pelos cidadãos, não será possível prever quantas outras espécies de relativização poderão surgir e quantos outros direitos serão coniventes em perder.

As raízes do princípio e garantia da presunção da inocência, também conhecido como princípio da não-culpabilidade, estão na Revolução Francesa de 1789 que, conforme ressalta Mattos (2010), possui “finalidade especial de manter eficaz e permanente outro princípio fundamental, da dignidade da pessoal humana”. Desta forma qualquer cidadão, diante de injustiça ou indevida acusação, que segundo o autor pode ser “fruto da criação intelectual do representante do órgão público acusador”, está exposto ao erro judiciário.[4]

Ainda segundo Mattos (2010), muitas leis e atos surgiram com a tentativa de restringir o princípio da presunção da inocência e consolidaram o regime autoritário e ditatorial, como a Lei Complementar 5/1970, que previa a perda da capacidade eleitoral passiva pela mera instauração de processo judicial criminal, ou seja, pelo simples recebimento da denúncia[5]. Com essas e outras restrições a direitos fundamentais, os regimes autoritários conseguiram a manutenção do poder ao longo de décadas. E é importante lembrar que durante o largo período da ditadura militar muitos inocentes eram presos, “julgados” e condenados, sem esquecer, claro, dos que eram torturados e mortos.

A tentativa não é estabelecer um paralelo dos anos de chumbo vividos pelo Brasil e a Lei Complementar 135/2010, como se houvesse uma premonição de que “algo está para acontecer”. Este não é o foco e não há aqui previsões sobre o futuro. O intuito é lembrar a árdua luta empreendida pela consagração dos direitos e garantias que atualmente estão resguardados pela Carta Suprema da nação e, sobretudo, repensar a mitigação de princípios tão relevantes para retirar a responsabilidade estatal de um processo justo e célere, que possibilite a responsabilização eficaz dos agentes ímprobos. É esta a prescrição do inciso LXXVIII do artigo 5° da Constituição Federal, em que a todos, no âmbito judicial ou administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.

Para os que defendem que a Lei Complementar 135/2010 não ofende o princípio constitucional da presunção da inocência, os principais argumentos passam pela afirmação de que este é aplicável apenas ao sistema penal, restringindo sua incidência; outros admitem sua existência, mas o relativizam com o fundamento das prisões cautelares, previstas no bojo da nossa Carta Política[6]. Os que utilizam este argumento colocam de lado o caráter acessório de tais medidas. As prisões cautelares são exceções no processo penal e uma das suas principais características é ser passível de revogação, afinal o seu caráter é apenas provisório.[7]

Desta primeira característica, uma vez confrontada com a previsão da Lei Complementar 135/2010, em que os candidatos condenados em segunda instância – o colegiado -, que no dizer popular são considerados “Fichas Sujas”, não poderiam ser eleitos pelo período de 8 (oito) anos, conforme modificação que estabeleceu na Lei Complementar nº 64/1990. Partimos então para mais uma indagação: “Esta relativização do princípio da presunção da inocência com a suspensão de direitos políticos teria o mesmo efeito e caráter provisório das prisões cautelares?”

É notório que uma vez comprovada a inocência do agente político, a medida de restrição de direitos – notadamente o direito à elegibilidade – poderia até ser revogada pelos Tribunais Superiores, mas jamais seria possível restabelecer o status quo ante. Se levarmos a efeito o que está determinado na LC 135/2010, não será apenas afastada a possibilidade de disputar uma eleição, mas também devem ser levados em consideração os respectivos desajustes sociais causados pelo lançamento da tarja da condenação antecipada. As implicações serão devastadoras.

Como resgatar a moral pública deste jurisdicionado? Condenações errôneas até hoje são lamentadas pelo Poder Judiciário, mas nenhum pedido de desculpas pode “limpar” uma imagem condenada publicamente. E lá se vão, além dos direitos fundamentais, os direitos da personalidade também consagrados pelo atual ordenamento civil pátrio. O jus puniendi do Estado jamais poderá ser colocado à frente do jus libertatis. Colocar o direito de punir antes do direito à liberdade é também atingir frontalmente mais um direito fundamental indisponível.

Quando em análise à LC 135/2010 é possível vislumbrar que o órgão colegiado pode inclusive estar na esfera administrativa e nos órgãos de classe. Essa mitigação do princípio da presunção da inocência, aceitando inclusive decisões meramente administrativas, apenas reafirma o caráter reacionário desta lei. Se as decisões administrativas não excluem a apreciação judicial e nem fazem coisa julgada, aceitar condenações administrativas para retirar direitos políticos é ferir não só o princípio da presunção da inocência, mas estabelecer culpabilidade juridicamente inexistente.

Os agentes públicos não possuem, em sua grande maioria, o menor preparo jurídico para conduzir um imparcial e justo processo disciplinar.

Transformar sua decisão em uma das caracterizações da “ficha suja” é por demais perigoso para a própria sociedade. (MOTTA, p. 17)

Motta (2010, p. 09) ressalta ainda:

O ordenamento jurídico repele em absoluto o julgamento político e açodado, que a qualquer custo tenta elidir a presunção da inocência do investigado, pela força do poder e do arbítrio. Tal fato é totalmente incompatível com o Estado Democrático de Direito em que vivemos.

A condenação por um colegiado não é garantia de que esta decisão é insuscetível de modificação. Afinal um colegiado não está livre de erros, formais ou materiais, pois apesar de toda responsabilidade e comprometimento ao julgar uma demanda este órgão é composto por seres humanos, portanto, passíveis de cometer falhas. Quantos julgados de segunda instância podem servir de exemplo para demonstrar entendimentos diversos? Quantas decisões diariamente são tomadas nos Tribunais Superiores modificando outras dos tribunais a quo? Aceitar que simples decisões administrativas retirem direitos políticos é também um desserviço ao próprio significado de acesso à justiça e à ampla defesa, que visam, sobretudo, evitar julgamentos ilegais e arbitrários. Quantas decisões administrativas ou de órgãos de classe são julgadas nulas ou inválidas pelos Tribunais por algum vício ou irregularidade?

O processo como direito também é caminho onde há uma trajetória tortuosa a ser percorrida, mas que não permite a retirada de uma ponte ou o desvio de uma estrada, obrigando o jurisdicionado a dar um salto para a sanção através da restrição de direitos. Retirar esta ponte ou desviar o jurisdicionado da estrada onde estão previstos todos os meios de defesa, tudo para sancionar antes do provimento final condenatório, é retrocesso. Perde o jurisdicionado e perde a jurisdição constitucional que deixa com que este abismo se abra e crie um vácuo, que uma vez surgido e aceito, servirá de base para novas restrições de direitos e garantias que na criação sempre foram absolutos. Ou se é culpado ou inocente, não existe o meio termo. O que existe é a marcha processual, que não permite e jamais permitirá decisões interlocutórias de condenação, mesmo que, teoricamente, seja em benefício da coletividade.

Ao relativizar o princípio da presunção da inocência, estamos relativizando também outros direitos fundamentais que jamais podem ser transacionados (mesmo que pela coletividade): a liberdade, o direito de defesa e os direitos políticos são alguns deles. O princípio da dignidade da pessoa humana também não pode ser deixado de lado. Se até o mais inescrupuloso assassino genocida tem direito a um julgamento digno, justo e equânime, sendo que penalmente, mesmo com todos os indícios das atrocidades cometidas, ele só terá o nome lançado no rol dos culpados após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, como podemos retirar direitos políticos apenas com indícios prováveis de uma condenação?

Abordando os direitos políticos como corolário da dignidade da pessoa humana, temos o professor Sarlet (2007. p. 99), que destaca:

Por derradeiro, sem prejuízo de outros tantos exemplos que podem ser citados, os assim denominados direitos políticos – direitos de cidadania e nacionalidade – igualmente apresentam vínculo direto e indissociável com a idéia de dignidade da pessoa. Se um Estado democrático que mereça ostentar esta condição pressupõe respeito e promoção da dignidade da pessoa humana, também os direitos fundamentais à nacionalidade e os assim denominados direitos políticos ativos e passivos, constituem de algum modo exigência e decorrência da dignidade. Com efeito, a liberdade pessoal, como expressão da autonomia da pessoa humana (e, portanto, de sua dignidade) reclama a possibilidade concreta de participação na formação da vontade geral.

Outro questionamento que poderá surgir após esta análise é: “Os cidadãos estarão dispostos a relativizar a presunção da inocência quanto estiverem em foco os seus direitos?” Juridicamente: “O cidadão aceitará a presunção da culpa quando a sentença de segunda instância o condenar?” “Abrirá mão de provar sua inocência?” Está na hora de modificarmos também o velho ditado: “dois pesos, duas medidas”. Não se trata apenas de olhar o lado oposto, mas principalmente de analisar toda a situação e insegurança gerada pela relativização de preceitos que são garantias constitucionais. Afinal, se a todos é dado o direito de defesa e o uso do contraditório, e se tudo isso faz parte de um processo justo, ou seja, do princípio maior do devido processo legal, a simples ideia de participação popular como efetivação da democracia ou, neste caso, o apelo social, não pode desvirtuar preceitos primários, sob pena de em pouco tempo rompermos todos os avanços conquistados com o advento da promulgação da Constituição Brasileira de 1988.

3. O processo participativo e democrático da população: os pólos da questão

Todo o aparato ideológico que permeia a Lei Complementar 135/2010 representa a descrença da população na mudança de postura dos agentes políticos nacionais. A aparente impunidade que ronda os atos ímprobos destes agentes, que atingem também princípios constitucionais, fez surgir à ideia que somente com a restrição de direitos – sendo o principal deles a retirada da elegibilidade – será possível construir um país mais ético e progressista. Mas será que podemos realmente acreditar nesta mágica?

Lutar pela ética, probidade e moralidade administrativa deve ser uma constante no meio jurídico e social, mas não será com a retirada arbitrária de direitos ou com a relativização de garantias fundamentais que a sociedade irá punir verdadeiramente a corrupção administrativa. O foco deveria ser outro.

O primado de todas as modificações legislativas da atualidade e, principalmente, o foco do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) nos últimos anos, estabelecendo metas de desempenho para os órgãos do Poder Judiciário, é fazer com que a prestação jurisdicional seja mais célere e eficaz, onde a resposta a ser perquirida em um processo satisfaça a pretensão ou sancione os abusos e ilegalidades de maneira imediata, mas sem romper direitos e garantias que são dados a todos que litigam em âmbito judicial ou administrativo.

Um dos grandes problemas que assolam a falta de penalização de agentes corruptos é a falta de punição em tempo hábil e eficaz, que levam processos, que deveriam ter uma tramitação prioritária, a terem a pretensão punitiva prescrita, ou muitas vezes nem se chega a apurar efetivamente os fatos.

O § 4° do artigo 60 da Constituição Federal enumera as chamadas cláusulas pétreas que como tais não estão sujeitas a reformas que tendem a abolir os direitos e garantias individuais previstos no artigo 5° deste diploma. Se os direitos e garantias individuais, entre eles o princípio da presunção da inocência, não podem ser objeto nem mesmo de emenda constitucional, como os tribunais pátrios podem aceitar que uma lei infraconstitucional contrarie frontalmente uma cláusula pétrea? Nem o legislador congressista poderia propor um projeto de emenda constitucional com esta natureza. Isso só reforça a teoria de que os cidadãos brasileiros desconhecem a lei maior de seu Estado Nacional.

Se investigarmos o caráter social desta afirmação, com certeza encontraremos a apartação social realizada pelo próprio Estado, que remeterá os estudos a patamares ainda mais profundos, como a falta de uma educação voltada para a conscientização e acesso à informação do cidadão sobre seus direitos. Uma população que abre mão de seus direitos fundamentais coloca em xeque a questão do acesso ao conhecimento, uma vez que transacionam direitos que desconhecem, promovendo uma abertura para que outras normas sejam promulgadas com novas restrições.

Tomar decisões ao arrepio de calorosos debates “democráticos”, mas que não esclarecem quais os direitos que estarão sendo negados e restringidos é fazer com que surjam dois pólos de forças opostas que jamais deveriam existir: de um lado a participação democrática do cidadão e de outro o Estado Constitucional de Direito.

O Estado de Direito é um Estado Constitucional, ou seja, antes de ser um Estado Democrático de Direito, é um Estado Constitucional de Direito. Este é o entendimento adotado pelo Professor Ferreira Filho (2004) na bela obra Direitos Humanos Fundamentais, de que se pode concluir que sem um Estado Constitucional não há democracia.

A democracia e, consequentemente, a participação do povo na iniciativa do processo legislativo pressupõe o respeito aos princípios constitucionais, notadamente os direitos fundamentais individuais, por serem cláusulas pétreas e garantias quanto ao arbítrio dos governantes. Incabível que se abra mão do respeito às normas constitucionais sob o enfoque do interesse público, pois estaríamos invertendo o próprio conceito de democracia constitucional.

O caput do artigo 5° prescreve, entre outros, a garantia do direito à liberdade e à igualdade que devem ser observados sob o enfoque de cada um dos setenta e oito incisos que se seguem. Desta forma, uma vez estabelecidos os primados de liberdade e igualdade, estes devem ser observados quando no inciso XXXV há a determinação de que não se excluirá da apreciação judicial lesão ou ameaça de direito; no inciso LIII que afirma que ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente; no inciso LIV que assevera que ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal, devendo o conceito de liberdade ser entendido em seu sentido amplo, que abrange não só a liberdade de locomoção, mas principalmente a liberdade de exercitar todos os seus direitos constitucionais ou infraconstitucionais, obedecidas as condições mínimas de gozo; no inciso LV que assegura aos litigantes em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes; no inciso LVI o atual e mitigado princípio da presunção da inocência, para citar apenas algumas das disposições constitucionais que restaram feridas pela Lei Complementar 135/2010.

Inconcebível é a teoria que afirma que, por ser expressão da vontade geral do povo, a Ficha Limpa pode retirar garantia fundamental, ferir disposições constitucionais e, ao mesmo tempo, isentar o Estado da culpa pela morosidade na tramitação processual que envolve as ações de improbidade e as denúncias acerca de crimes contra a Administração Pública e crimes de responsabilidade dos agentes políticos.

É preciso salientar que o ordenamento jurídico nacional possui meios eficazes de combate a corrupção e improbidade. A título de exemplo podemos citar a Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429/92), as leis que apuram crimes de responsabilidade (Lei n° 1.079/1950 e o Decreto-Lei n° 201/67), bem como a Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar n° 101/2000), que visa moralizar o uso dos recursos públicos e a gestão orçamentária da Administração Pública e as próprias disposições do Código Penal Brasileiro (Decreto-Lei n° 2.848/1940). Negar que existem leis suficientes para sancionar todos os atos imorais e ilegais que advém da má atuação na gestão administrativa é no mínimo uma negligência. O erro brasileiro é achar que uma avalanche de leis resolverá problemas eminentemente administrativos e de gestão dos órgãos do Judiciário.

Ser conivente com a retirada de direitos fundamentais para justificar a morosidade até a chegada de um provimento final de uma demanda é vilipendiar todo o arcabouço normativo conquistado em poucos mais de 20 anos de história constitucional democrática. Estamos aos poucos abrindo mão da verdadeira democracia, do verdadeiro Estado Constitucional.

4. Conclusão

Todos os questionamentos aqui expostos, longe de abordá-los sob o enfoque eminentemente científico, mas, sobretudo, primando pela linguagem simples do discurso, trazem apenas constatações a partir de todos os acontecimentos que norteiam uma lei que teoricamente viria para amenizar o caos ético instaurado na Administração Pública.

Se a LC 135/2010 conseguirá atingir o objetivo de moralizar a Administração Pública, mesmo que ao arrepio da ordem constitucional, diante da flagrante violação de preceitos fundamentais, é algo que apenas no decorrer dos próximos anos poderá ser constatado. Mas quanto a amenizar o grau de insegurança do futuro das instituições públicas, esta lei, por sua vez, trouxe apenas transtornos ainda maiores.

O princípio da presunção da inocência, fruto de conquistas históricas, consagrado inclusive na Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, não pode ser mitigado sob a égide de uma “administração limpa”. A limpeza ética e a moralização da Administração Pública passam pela responsabilização efetiva, com sanções aplicadas em tempo hábil e eficaz. Isso é combate à impunidade.

A participação popular é louvável de ser estimulada, mas junto com ela é necessário um amplo esclarecimento, principalmente sobre o conceito de exercício da cidadania que parece ganhar enfoque apenas no período eleitoral. O cidadão legislador deve ser um ser realmente preparado e consciente daquilo que está propondo para o seu país. Relativizar para moralizar não deve ser um princípio norteador, assim como acontece com o advento da LC 135/2010.

O futuro da jovem democracia brasileira pode estar fadado ao fracasso se os cidadãos combaterem todas as impunidades e a morosidade na tramitação processual com restrições de garantias e direitos individuais ou coletivos.

As respostas para as duas perguntas centrais que intitulam este artigo são simples e podem ser definidas em uma frase direta: a Ficha Limpa indica retrocesso, gerado, sobretudo, pela mitigação de direitos fundamentais contrariando o próprio Estado Democrático de Direito.

___________

GISELLE BORGES ALVES, bacharel em Direito pelo Instituto de Ensino Superior Cenecista (INESC/CNEC), é advogada em Unaí/MG e pós-graduanda em Direito Processual Civil pela Rede de Ensino Luis Flávio Gomes em parceria com o Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP) e Universidade Anhaguera Uniderp – Campo Grande/MS.

Referências

BRASIL. Constituição Federal (1988). Vade Mecum Compacto. Antônio Luiz de Toledo Pinto, Márcia Cristina Vaz dos Santos Windt e Lívia Céspedes (Colaboração). 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

CALVANTI JÚNIOR, Ophir; COÊLHO, Marcus Vinícius Furtado. Lei Ficha Limpa: a vitória da sociedade. Comentários a Lei Complementar 135/2010. Brasília: OAB, Conselho Federal, 2010. Disponível em: <http://www.oab.org.br>. Acesso em: 08. Out. 2010.

CAPEZ, Fernando. Processo Penal. 17. ed. São Paulo: Damásio de Jesus, 2007.

FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2004.

LEITE, Raul Lycurgo. Ficha Limpa não viola a presunção de inocência. Conjur. 09.set.2010. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2010-set-09/lei-ficha-limpa-nao-viola-presuncao-inocencia>. Acesso em: 14. Out. 2010.

LYRA FILHO, Roberto. O que é direito. Coleção primeiros passos. 17. ed. 1995. São Paulo: Brasiliense, 2007.

MATTOS, Mauro Roberto Gomes de. O princípio da presunção da inocência e a inconstitucionalidade de sua mitigação para fins de registro de candidaturas políticas – “Ficha Limpa”. Gomes de Mattos. 2010. Disponível em:<http://www.gomesdemattos.com.br/artigos/O%20PRINCIPIO%20DA%20PRESUNCAO%20DE%20INOCENCIA%20…%20Ficha%20LIMPA.pdf>. Acesso em: 08. Out. 2010.

SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 5. ed. rev. atual. Porto Alegre: Livraria do advogado Ed., 2007.

Notas

[1] Relembrando as palavras do Professor Roberto Lyra Filho, em O que é direito, está uma das máximas da ciência jurídica: “Como já dissemos, o Direito não ‘é’; ele ‘vem a ser’. Por isso mesmo é que o revolucionário de ontem é o conservador de hoje e o reacionário de amanhã.” (p. 82)

[2] Entre os defensores está a Ordem dos Advogados do Brasil, com a publicação do livro Ficha Limpa: a vitória da sociedade, de autoria de Ophir Cavalcante Júnior e Marcus Vinícius Furtado Coelho, disponível em e-book no site do Conselho Federal: <www.oab.org.br>.

[3] Neste sentido CAVALCANTE JÚNIOR, p.12-13.

[4] MATTOS, p. 02.

[5] MATTOS, p. 19.

[6] Neste sentido LEITE, Ficha Limpa não viola presunção de inocência, 2010.

[7] Acerca das características das prisões cautelares, importantes considerações são feitas por CAPEZ, Processo Penal, p. 171-196.



5 Comentários

  1. Robert Wilson disse:

    thanks for the post

  2. Ivete disse:

    Ótima abordagem. Parabéns pela clareza.

    É triste perceber que o povo brasileiro se contenta com migalhas e não luta por um lugar à mesa.

  3. Mais um texto interessante e bem escrito sobre a “lei de limpeza política”. Contudo, assim como já escrevi anteriormente, os termos “povo”, “popular” e outros relacionados acabam por serem empregados de forma estritamente jurídica.

    Não cabe aqui, até mesmo em razão da escassez de espaço, adentrarmos as questões relativas à teoria da representação, notadamente nas suas perspectivas mais modernas. Mas cabem alguns comentários.

    A “lei da ficha limpa”, ainda que tenha tido gênese na vontade de parcela da sociedade, não reflete realmente a vontade do povo. O “povo” do art. 1º da CF é termo normativo, ideal e ideológico, que, no Brasil, não corresponde à realidade social. A “lei de limpeza política” é mais uma forma de expressão da cidadania-de-cima-para-baixo no Brasil. Demonstração disso é que, uma lei que teria origem nos anseios “populares”, acabou não sendo orientação para o “povo massa” (Oliveira Viana) votar: vários “ficha suja” foram eleitos.

    A “construção do Estado Democrático de Direito” passa sim pela legislação produzida num ambiente democrático, de debate racional e razoável sobre os temas de interesse político; mas passa, sobretudo, pelo incentivo ao desenvolvimento de valores cívicos e pela democratização verdadeira das formas de produção e aplicação das normas.

  4. Henrique Hiroshi disse:

    Nossa Gi!
    Ficou muito bom!
    Beijoss

  5. Tharley disse:

    Parabéns Dra Gisele ficou excelente o texto!