Por Rodrigo Haidar e Israel Nonato
23.02.15

Luís Roberto Barroso: “Não tenho nenhum orgulho do volume de processos que o Supremo julga”

 

Por Rodrigo Haidar e Israel Nonato

O ministro Luís Roberto Barroso está em campanha aberta para transformar o Plenário do Supremo Tribunal Federal em uma Corte Constitucional. Ainda que para isso seja necessário aplicar uma fórmula que, na prática, acabe em um prazo de dois anos com todos os recursos extraordinários que o tribunal não tenha conseguido julgar. “Fizemos um levantamento no gabinete e descobrimos que a média de provimento no mérito dos recursos extraordinários e dos agravos em recursos extraordinários é de 3,37%. Portanto, os processos ficam até cinco anos esperando análise para ter uma média de provimento de 3,37%”, contou o ministro em entrevista ao blog Os Constitucionalistas.

Se a ideia de Barroso vingar, o Supremo funcionará da seguinte forma: os recursos com repercussão geral serão selecionados semestralmente. Por exemplo, em junho o tribunal seleciona, a partir da safra do primeiro semestre, os mais importantes. E em dezembro, os mais importantes que chegaram no segundo semestre. Os que forem selecionados em junho serão julgados no semestre que começa em fevereiro. Os que forem selecionados em dezembro, serão julgados no semestre que começa em agosto.

Muito bem! Mas e os demais que chegaram? Transitam em julgado. E os que estão hoje em estoque? Se não forem selecionados em um prazo de dois anos, também transitam em julgado. “Simples assim”, como diz o ministro. Mas isso não seria negar a jurisdição? “Hoje tem mais da metade do gabinete lidando com os processos que eu não vou apreciar, para dizer que não cabe recurso extraordinário. É um contrassenso”, justificou.

Barroso incomodou ao chegar ao Supremo já cheio de propostas para racionalizar os trabalhos na Corte. A primeira ganhou adesão dos colegas e passou a valer ainda no ano passado: a transferência do julgamento de inquéritos e ações penais para as turmas do tribunal. Agora, trabalha para, em suas palavras, criar uma corte verdadeiramente constitucional, que julgue dentro das suas limitações. “Não tenho nenhum orgulho do volume de processos que o Supremo julga. A jurisdição constitucional não tem de ser de quantidade, tem de ser de qualidade”, defendeu.

O ministro ressalta que nada no Supremo é criação individual, e sim obra coletiva. E tem ciência de que as mudanças, ali, não acontecem do dia para a noite. “O Supremo é uma instituição tradicional, como é a igreja, como são as Forças Armadas. Portanto, as mudanças são lentas, como é próprio das instituições tradicionais. É preciso ter paciência e perseverança”.

Na entrevista, Barroso respondeu às críticas pessoais de que tem mania de legislador e às direcionadas ao Supremo, de que a Corte vem invadindo a competência do Poder Legislativo. O ministro fez uma convicta defesa do tribunal que compõe ao elencar decisões nas quais, em sua ótica, o STF respeitou os limites entre os poderes. “Essa história de que o Supremo se expandiu excessivamente é uma lenda. O Supremo tem pouquíssimas decisões que sequer tangenciaram a linha de fronteira. É que há, aí, uma imprecisão interpretativa. O fenômeno que existe no Brasil é o da judicialização. Por força de uma Constituição abrangente, a sociedade e os atores políticos judicializam todas as matérias. Porém, o Supremo, no geral, é autocontido”, afirmou.

Luís Roberto Barroso disse ainda que é a favor da retomada de poder pelo Legislativo – “Em uma democracia, a política é um gênero de primeira necessidade” – e advogou em favor de uma reforma política que mude, de verdade, o sistema político brasileiro, que o ministro classifica como “indutor da criminalidade”.

Leia a entrevista

Os Constitucionalistas – No ano passado, o Supremo alterou o regimento interno e as ações penais passaram a ser julgadas pelas turmas, não mais pelo Plenário. Foi sua primeira proposta de mudança acolhida pelo tribunal, de uma série. Qual a próxima frente de batalha?

Luís Roberto Barroso – Nada no Supremo é criação individual, e sim obra coletiva. A grande mudança que estamos a caminho de fazer é transformar o Plenário em uma Corte Constitucional. O Plenário só julgaria ações diretas e recursos com repercussão geral. Isso, por si só, seria uma pequena revolução. Tenho me empenhado, junto com outros colegas, por uma mudança discreta, mas muito relevante, que é, ao final dos julgamentos, proclamar a tese jurídica que foi aprovada pela maioria. Porque um dos problemas nos acórdãos do Supremo é que ele é feito por um método agregativo: cada um apresenta o seu voto e a ementa geralmente é feita pelo relator, com base no voto originário. Por isso, em muitos casos a ementa não expressava a posição da maioria. Às vezes não se sabia o que o Supremo tinha decidido. No caso de recursos com repercussão geral, considero que é obrigatória a proclamação porque o Código de Processo Civil exige que se enuncie qual foi a tese do julgamento. E, no geral, o tribunal tem feito isso. O método facilita a vida de todo mundo. Dos advogados e dos juízes, que têm de seguir os precedentes do Supremo.

OC – Essa mudança já está em vigor?

Barroso – Não é uma mudança que exija alteração regimental. É um costume que está se arraigando, que é enunciar a tese. O ministro Dias Toffoli [presidente do Tribunal Superior Eleitoral] tem feito isso no TSE. Mas a mudança mais importante a se fazer no Supremo é em relação aos recursos extraordinários com repercussão geral. Os gabinetes têm de parar de julgar oito mil processos por ano. Eu me constranjo com esses números. Outro dia um assessor meu disse: “Ministro, fomos os recordistas do mês. O senhor julgou milhares…”. Não acho que isso seja bom. São números completamente absurdos e incompatíveis com a jurisdição constitucional. De modo que a minha proposta, e eu espero viver para vê-la implementada, é que o Supremo não reconheça mais recursos com repercussão geral do que seja capaz de julgar em um ano.

OC – E o que acontece com o resto?

Barroso – Transita em julgado. Os processos chegam ao fim sem ter de esperar até cinco anos só no Supremo. Fizemos um levantamento no meu gabinete e descobrimos que a média de provimento no mérito dos recursos extraordinários e dos agravos em recursos extraordinários é de 3,37%. Portanto, os processos ficam até cinco anos esperando análise para ter uma média de provimento de 3,37%. É preciso mudar essa situação.

OC – O trânsito em julgado se daria nesse prazo de um ano?

Barroso – A minha proposta é que os recursos com repercussão geral sejam selecionados semestralmente. Assim, em junho o tribunal seleciona, a partir da safra do primeiro semestre, os mais importantes. E em dezembro, os mais importantes que chegaram no segundo semestre. Os que forem selecionados em junho serão julgados no semestre que começa em fevereiro. Portanto, salta um semestre. Os que forem selecionados em dezembro, serão julgados no semestre que começa em agosto. Todos serão julgados!

OC – A seleção é feita dentre aqueles que chegaram naquele período?

Barroso – Exato. Consequentemente, tudo o mais que não foi selecionado transita em julgado sem obrigar os ministros a dar uma decisão individual por processo. Porque hoje tem mais da metade do gabinete lidando com os processos que eu não vou apreciar, para dizer que não cabe recurso extraordinário. É um contrassenso.

OC – E o que faz com o estoque, com os processos que já estão aí?

Barroso – A minha proposta é dar prazo de dois anos. Ou seja, quatro rodadas de análise de repercussão geral de chance. O que não for selecionado, transita em julgado. Simples assim.

OC – Como essa ideia vem sendo recebida?

Barroso – O Supremo é uma instituição tradicional, como é a igreja, como são as Forças Armadas. Portanto, as mudanças são lentas, como é próprio das instituições tradicionais. É preciso ter paciência e perseverança.

OC – Certamente essa ideia encontra forte oposição.

Barroso – A pior coisa que existe na vida é pregar para quem já é convertido. Eu prego para quem ainda não se converteu. No Supremo, de forma geral, já há a percepção de que é preciso reformar a repercussão geral. Como advogado, eu estava acostumado a ver as coisas funcionando bem. Quando eu vejo processos que estão lá desde o tempo do ministro Moreira Alves, isso me causa angústia, uma certa frustração. Mas não estou sozinho. Muita gente compartilha desse sentimento. O problema é que os ministros do Supremo são todos muito ocupados. A vida no tribunal é uma vida dura. Portanto, as pessoas muitas vezes estão cuidando dos seus acervos e sem tempo de pensar na instituição.

OC – Sempre que se pensa em uma reforma, são invocados os números. Mas, e a qualidade do debate? Porque ser julgado com o pescoço alheio, com a repercussão geral, é complicado…

Barroso – É necessário melhorar, sim, a qualidade do debate e a qualidade dos julgamentos. Isso só é possível com uma redução drástica do número de processos. Em qualquer tribunal do mundo é assim. O ideal seria uma pauta marcada com seis meses de antecedência, mas eu tenho defendido que a pauta do Pleno seja publicada com pelo menos um mês de antecedência. Não pode a pauta sair sexta-feira, com 20 processos pautados para a sessão de quarta, 20 processos para a de quinta, sendo que ainda tem sessão da turma na terça. Que horas você estuda, se prepara, vê a estatística, o Direito Comparado? Eu não quero menos processos para trabalhar menos. Eu quero menos processos para trabalhar melhor.

OC – A crítica mais comum que se faz à sua postura é a de que o senhor tem complexo de legislador. Inclusive, ao julgar. Há alguns exemplos citados: seus votos na discussão sobre desaposentação e na ação que ataca o financiamento de campanhas eleitorais por pessoas jurídicas. O que o senhor responde a essa crítica?

Barroso – Que eu sou um dos principais defensores do diálogo institucional. No caso da desaposentação, o primeiro citado, eu fiz uma proposta que considero interpretação da Constituição Federal. Observei que não há lei tratando da desaposentação, que há uma lacuna, e sugeri que meu voto só valesse depois de seis meses para que o Congresso Nacional tivesse chance de prover sobre a matéria no lugar do Supremo. Portanto, o meu voto foi: existe o direito à desaposentação, levando-se em conta o que foi recebido ao longo da aposentadoria anterior, porque essa é a solução constitucionalmente adequada. Mas como há uma lacuna normativa, essa matéria deve ser tratada pelo Congresso. Por isso, proponho que se esperem 180 dias até vigorar essa solução, porque se o Congresso Nacional optar por outra deve valer a decisão do Parlamento. Em precatórios, fiz a mesma coisa. O Congresso por duas vezes tentou disciplinar por emenda constitucional a questão dos precatórios. O Supremo derrubou a primeira e, agora, derrubou a Emenda Constitucional 61. Portanto, o Supremo tem o dever de dizer o que deve entrar no lugar. Foi o que fiz. Propus o uso dos depósitos judiciais tributários, pelo menos 50%, para pagar os precatórios. Fiz uma proposta de decisão resgatando a proposta do Congresso quanto aos acordos, apenas tarifando os acordos em uma redução de 25% para evitar o abuso draconiano do Poder Público, que dizia: “eu não te pagava nada, agora proponho pagar 20% do valor devido”. E ofereci as sugestões do que deveria vigorar para que nós saíssemos dessa crise dos precatórios, para que o Supremo não entregasse essa situação dos precatórios em um estado pior do que recebeu quando o Congresso aprovou a Emenda Constitucional 61. Fiz uma série de propostas que permitiriam o pagamento dos precatórios no prazo de cinco anos. Ponto! E para vigorar em seis meses ou um ano, para que se permita ao Congresso prover a respeito se achar que é o caso. Portanto, em nenhum dos dois casos eu legislei. Eu resolvi problemas nacionais importantes, deferindo a prioridade para o Congresso enfrentá-los. Se o Congresso não conseguisse um consenso mínimo, eu cumpri a Constituição e ofereci a solução constitucionalmente adequada que considerei a melhor. Cumpri minhas atribuições de juiz.

OC – No caso da perda de mandato de parlamentares condenados, o Supremo não legislou?

Barroso – Neste caso, a Constituição é claríssima ao fixar que tem de se submeter a decisão à Casa Legislativa. Particularmente, eu acho uma solução ruim. Qual foi a minha proposta? Tem de submeter ao Legislativo, mas faço um apelo ao Congresso para que emende a Constituição nessa parte, porque ela cria um mecanismo extremamente disfuncional e desgastante. O Senado até aprovou a emenda constitucional, que ainda está em análise na Câmara. As minhas soluções são de diálogo institucional, de convocação ao Congresso Nacional. Decisão política tem de ser tomada pelo Congresso. Mas se o Congresso não atua, e existe uma questão importante prevista na Constituição, eu preciso resolvê-la. No caso do financiamento eleitoral por pessoas jurídicas, não julguei inconstitucional a possibilidade de empresa participar do financiamento de campanhas eleitorais. Se empresa deve ou não deve participar do financiamento eleitoral é uma decisão política, que tem de ser tomada pelo Congresso Nacional. O que eu disse é que o modelo brasileiro de financiamento eleitoral por empresa é antidemocrático e antirrepublicano.

OC – Por quê?

Barroso – Porque é um modelo em que a mesma empresa financia os três candidatos à Presidência da República. Não é uma opção ideológica, nem é o exercício de um direito político. Ou a empresa está sendo achacada ou está comprando favores futuros. Qualquer uma das duas hipóteses é péssima. Além disso, a legislação não impede que a empresa que financia o candidato depois seja contratada mediante contratação direta, sem licitação, ou mesmo mediante licitação, pelo governo do candidato vencedor, que retribui o favor privado que recebeu, o financiamento, com o dinheiro público, por meio de um contrato administrativo. Portanto, o modelo brasileiro contraria a decência política e a moralidade administrativa. O problema não é a empresa participar. Mas é preciso ter regras que não sejam inconstitucionais. Portanto, a inconstitucionalidade aqui é por omissão. Não tem regra nenhuma. Vale qualquer coisa. Mas esse é o meu ponto de vista. Se o Congresso quiser disciplinar o financiamento eleitoral por empresa e achar que esta é uma boa solução, ele pode. Mas tem de disciplinar, tem de ter regras, regras decentes, regras morais. Não decentes e morais à luz do que eu acho, mas decentes e morais à luz da Constituição Federal. Portanto, neste caso, eu também estou devolvendo a matéria para o Congresso, para dizer: “Congresso, se você acha que empresa deve participar, é preciso que essa participação se dê nos termos da Constituição”.

OC – Hoje, as doações são limitadas a percentuais sobre o faturamento da empresa ou o rendimento do cidadão. O senhor acha que seria uma boa saída, no lugar de percentual, a fixação de um teto, um valor máximo para as empresas doarem?

Barroso – Há algumas escolhas políticas aí e não é o meu papel fazer essas escolhas. Mas é ruim ter um sistema de absoluta centralidade do dinheiro. Nós temos um sistema político que, dentre muitos outros problemas, um deles é o de ser indutor da criminalidade via financiamento eleitoral.

OC – Indutor?

Barroso – Não sou eu que acho. Basta olhar para o lado. Basta ter olhos de ver. Além de o sistema ser indutor da criminalidade em amplo espectro, ele é incapaz de atrair qualquer vocação. O sistema político brasileiro decretou a morte do idealismo. Ninguém entra mais em política por vocação. Ou o sujeito entra porque já tem um patrocinador, ou entra por hereditariedade. E isso traz um problema perigoso para a democracia, que é a falta de quadros qualificados para a política. Portanto, nós temos que fazer uma reforma que faça com que a política volte a ser atraente, volte a ser uma opção para jovens idealistas que não têm patrocinador, nem muito dinheiro.

OC – “Estamos submetidos a uma Constituição. Mas a Constituição é o que os juízes dizem que ela é”. A frase é de um discurso feito em 1907 pelo então presidente da Suprema Corte dos EUA, Charles Evans Hughes. O senhor concorda com ela?

Barroso – Sim e não. Do ponto de vista formal, sim. Quem dá a última palavra na interpretação da Constituição é o Supremo. Esta afirmação, no entanto, não é totalmente precisa, por duas razões. Em primeiro lugar porque, em rigor, o Congresso pode aprovar uma emenda constitucional e superar uma jurisprudência do Supremo. Embora isso não seja corriqueiro, existem precedentes. Em segundo lugar, e mais importante, o Supremo formalmente dá a última palavra, mas não é um tribunal de si próprio. O tribunal é um intérprete de um conjunto de forças sociais, que incluem o Legislativo e o Executivo, a opinião pública e uma certa capacidade de interpretar o espírito da época. Portanto, a afirmação de que a Constituição é o que o Supremo diz não é totalmente precisa porque o Supremo não diz o que quer. O Supremo diz, em parte, o que pode, mas sobretudo ele é um intérprete de um conjunto de forças sociais. E, nesse sentido, evidentemente a Constituição não é o que o Supremo diz que ela é.

OC – Não vivemos, então, uma Supremocracia?

Barroso – Não, certamente não. Nós vivemos, no entanto, uma época em que o Legislativo vive certa crise de funcionalidade e uma grande dificuldade de produzir consensos. E diante da dificuldade de o Legislativo produzir consensos, e do surgimento de determinados problemas da vida real, que deságuam no Supremo, o tribunal termina decidindo. Se houvesse lei tratando de uniões homoafetivas, não precisaria o Supremo ter decidido. Se houvesse lei tratando de interrupção da gestação do feto anencefálico, o Supremo não precisaria ter cuidado desse assunto. Se tivessem vindo as leis estaduais proibindo o nepotismo, o Supremo não teria decidido sobre isso. E o dia que vier uma reforma política sistemática, o Supremo não vai ficar intervindo pontualmente e assistematicamente, o que também é um problema. De modo que não há uma Supremocracia, mas há perda de espaço do Legislativo pela sua dificuldade de produzir consensos mínimos em matérias importantes.

OC – A necessidade de uma reforma política é um consenso…

Barroso – Sim. E isso revela que o Congresso está muito partido. Todos querem a reforma política, mas esse é um consenso que gera a mais espantosa inação. Ninguém sai do lugar. A reforma política é necessária para o bem do país e da democracia, e é necessária sobretudo para o bem do Congresso Nacional. Em uma democracia, a política é um gênero de primeira necessidade. Não acho bom o Supremo estar ocupando esse espaço político que ocupa. É preciso que o Congresso retome esse espaço, mas é preciso que retome atuando.

OC – O Supremo não ocupou espaço demais?

Barroso – Eu diria que o Legislativo está ocupando espaço de menos. Sou a favor da retomada do espaço pelo Poder Legislativo. Mas isso não é um ato de força, nem uma canetada, é uma reconquista de espaço político, com legitimidade, com credibilidade, que pressupõe uma reforma política. Essa história de que o Supremo se expandiu excessivamente é uma lenda. O Supremo tem pouquíssimas decisões que sequer tangenciaram a linha de fronteira. É que há, aí, uma imprecisão interpretativa. O fenômeno que existe no Brasil é o da judicialização. Por força de uma Constituição abrangente, a sociedade e os atores políticos judicializam todas as matérias. Porém, o Supremo, no geral, é autocontido.

OC – Mas, e o julgamento de Raposa Serra do Sol, por exemplo. O Supremo não legislou na prática?

Barroso – Raposa Serra do Sol foi uma decisão de autocontenção. O ministro da Justiça fez a demarcação. O presidente da República homologou a demarcação. Portanto, o Poder Executivo atuou. E o Supremo validou a demarcação. Portanto, houve uma judicialização, mas a decisão foi de autocontenção. O Supremo disse que o ato do Executivo era legítimo.

OC – Porém, ao dizer que o ato do Executivo era legítimo, o Supremo criou um código de demarcação de terras indígenas, não?

Barroso – Sim. Aí houve embargos de declaração. Fui sorteado relator e votei no sentido de que a decisão valesse apenas para o caso Raposa Serra do Sol. E prevaleceu o meu voto. Há outros exemplos. A decisão do Supremo sobre cotas raciais também foi de autocontenção, já que o tribunal validou a decisão política do Congresso. Pesquisa com células-tronco embrionárias? O Supremo decidiu que a lei que o Congresso Nacional aprovou e o Poder Executivo sancionou é constitucional. Portanto, não existe essa história de que o Supremo está se metendo em tudo. Houve a judicialização, o Supremo decidiu, mas sem nenhuma gota de ativismo. O Supremo foi autocontido em todos esses exemplos.

OC – Até o Supremo decidir, parece que a lei não vale. A partir do momento em que o tema é judicializado, mesmo sem liminar que suspenda a norma, mesmo com a lei em pleno vigor, fica no imaginário popular que a regra não tem valor.

Barroso – Aí o problema é do imaginário social, não do Supremo.

OC – Mas existem decisões expansivas do Supremo. A decisão que equiparou o status jurídico da união homoafetiva e da união estável entre casais convencionais é um exemplo de ativismo. É uma decisão civilizatória, mas é ativista.

Barroso – Havia uma omissão legislativa. Quando o tema é judicializado, a Justiça não pode simplesmente deixar de agir. É preciso prestar a jurisdição. Em todos os casos nos quais o Supremo Tribunal Federal é criticado por ter sido expansivo havia omissão legislativa. Interrupção terapêutica da gestação em caso de fetos anencéfalos? Omissão legislativa! Nepotismo? Havia lei federal proibindo o nepotismo, mas no plano dos estados havia a omissão. O Conselho Nacional de Justiça procurou sanar a omissão. Os tribunais de Justiça não cumpriram e, então, a Associação dos Magistrados Brasileiros, eu fui o advogado, entrou com uma ação declaratória da validade da proibição do nepotismo feita pelo CNJ. O Supremo disse que era válida. São raras as decisões que envolvam algum grau de ativismo. “Ativismo” entre aspas porque eu abandonei o uso desse termo.

OC – A decisão que fixou a perda de mandato por infidelidade partidária…

Barroso – Ainda assim, o Supremo atendeu uma demanda da sociedade que não foi atendida pelo Congresso Nacional. Uma demanda por reforma política, por um mínimo de autenticidade no sistema partidário. De modo que foi uma decisão mais expansiva, contudo para atender a uma demanda social reprimida. Há uma decisão com a qual eu não estou de acordo, com o máximo respeito, que foi a declaração de inconstitucionalidade da cláusula de barreira. Porém, embora pareça ter sido uma decisão contramajoritária, na verdade, todos os partidos políticos foram ao Supremo pedir para declarar a regra inconstitucional. Eu não era ministro, mas como advogado assisti à romaria ao Supremo. Então, pode aparentar que o Supremo foi contramajoritário derrubando um ato do Congresso Nacional, mas os parlamentares já tinham mudado de ideia. Na verdade, eles aprovaram a cláusula de barreira com prazo de carência e, quando chegou o momento, eles não queriam mais. Portanto, nem essa decisão foi expansiva. Uma tentativa de decisão expansiva não passou, que foi a tentativa liderada pelo meu querido amigo Carlos Ayres, de impedir o registro de “fichas sujas” antes da aprovação da Lei da Ficha Limpa. Esta seria uma decisão expansiva. Mas não passou. Portanto, são raríssimos os exemplos de decisões do Supremo que alguém possa dizer que ultrapassaram a fronteira.

OC – Por que o senhor abandonou o uso da expressão “ativismo judicial”?

Barroso – “Ativismo judicial” é uma expressão que perdeu o seu conteúdo e passou a ser um termo utilizado para depreciar algo. Um pouco como o que aconteceu com a expressão “neoliberalismo”. Logo, ela deixou de ter sentido. Quando eu comecei a usá-la, há muitos anos, eu tinha uma definição, que era uma forma expansiva de interpretação da Constituição para levá-la a situações que não haviam sido expressamente contempladas, nem pelo constituinte, nem pelo legislador, mas que precisavam ser resolvidas. Mas ela virou um emblema negativo. Se tornou um artifício retórico depreciativo. Por isso, a abandonei.

OC – O senhor defendeu a reforma da Lei da Anistia?

Barroso – Não. Em nenhum momento. Eu tenho por princípio o cuidado de não opinar sobre o mérito de nenhuma questão que ainda não tenha sido decidida. Como regra geral, eu não opino sobre o que votaram ou disseram os meus colegas e não opino previamente sobre nenhum caso que será submetido a Supremo. Não dei uma palavra sobre esse assunto, apesar de ter saído equivocadamente na imprensa que eu disse que a Lei da Anistia precisa ser revista. Nunca disse isso. O que eu disse foi que o Supremo declarou a validade da lei. E este é o direito vigente no Brasil hoje em dia. Palavra do Supremo. Posteriormente à decisão do Supremo, sobreveio uma decisão da Corte Interamericana de Justiça dizendo que a Lei da Anistia é incompatível com a Convenção Interamericana de Direitos Humanos. Portanto, existe uma decisão do Supremo dizendo que a lei é compatível com a Constituição e, do outro lado, há uma decisão da Corte Interamericana dizendo que a lei é incompatível com a Convenção. Tanto quanto eu saiba, essa é uma situação inusitada. A regra geral é que as decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos devam ser cumpridas internamente, porque o Brasil é signatário da Convenção e reconhece a competência da Corte. Mas nunca aconteceu de uma decisão da Corte com base na Convenção contrariar uma decisão do Supremo, com base na Constituição Federal. Esta é uma situação inusitada e há mais de uma ação no Supremo colocando essa questão. Penso que o Supremo, em algum momento, deverá enfrentar essa situação. Foi isso que falei. Não disse como eu irei decidir, nem se a anistia é boa ou ruim. A única coisa que eu falei sobre anistia, e na minha sabatina, é que existem na vida missões de justiça e missões de paz. Os dois tipos de missão são legítimos. Em linha de princípio, quem deve fazer a escolha é quem tem voto.

OC – A imunidade parlamentar protege discursos de ódio no Parlamento?

Barroso – Houve um caso recente no Supremo envolvendo um parlamentar, que havia feito comentários altamente depreciativos aos homossexuais [o parlamentar evangélico Marco Feliciano publicou no Twitter a frase “A podridão dos sentimentos dos homoafetivos levam ao ódio, ao crime, à rejeição” e o Ministério Público Federal o denunciou por crime de discriminação]. Fui sorteado relator. Por unanimidade, a 1ª Turma, com base no meu voto, considerou que ele estava protegido pela imunidade parlamentar. Não diria que tenha sido um discurso de ódio porque ele não incitava a violência ou a agressão. Foi um comentário extremamente preconceituoso e, para a minha visão, inadequado. Mas a liberdade de expressão não existe para assegurar o que eu acho adequado. Pelo contrário. O que eu acho adequado não precisa de proteção da liberdade de expressão. Na frase clássica de Rosa de Luxemburgo, a liberdade é sempre a liberdade de quem pensa diferente. Portanto, eu votei pelo não recebimento da denúncia neste caso. Porém, discursos de ódio no sentido de incitamento à violência, eu consideraria essa uma exceção rara à liberdade de expressão plena. Como decidiu o Supremo no caso do editor antissemita Siegfried Ellwanger, quando declarou ilegítimas as manifestações de ódio racial aos judeus. E eu acharia o mesmo se fosse em relação aos negros, aos homossexuais e, em certos casos, em relação às mulheres, que não são minoria, mas são um grupo vulnerável.

OC – A decisão no caso do deputado Marco Feliciano repercutiu pouco. Isso é resultado da transferência das ações penais para as turmas, porque não houve a transmissão da TV Justiça?

Barroso – Os advogados criminalistas reivindicavam que se tirasse a transmissão da TV Justiça dos casos criminais. Não foi por essa razão que eu apresentei a proposta. Minha proposta foi no sentido de tornar o Plenário mais funcional e de agilizar os julgamentos. A Turma tem uma dinâmica muito mais ágil. Porém, ao se transferirem os processos criminais para as turmas, ocorreu como subproduto a não transmissão pela televisão. Mas eu, particularmente, sou a favor da TV Justiça em geral. A TV Justiça é um bem. Os votos ficaram maiores? Ficaram. Mas eu acho que o que se ganha em transparência, visibilidade, em atuação pedagógica do Supremo compensa com sobra o que se perde em concisão e até numa deliberação um pouco mais tensa.

OC – Há quem diga que o Supremo de antigamente era mais previsível. Que a evolução da jurisprudência acontecia de forma mais lenta e que as súmulas representavam mais a solidificação do pensamento do tribunal. Que hoje há muita mitigação de súmula e que a jurisprudência evolui muito mais rápido do que deveria. O senhor concorda com isso?

Barroso – Sim e não. O mundo é que ficou mais rápido, mais complexo e menos previsível. A lei já não consegue mais dar conta da variedade de situações de ocorrem. Portanto, os juízes acabam interpretando com princípios, cláusulas gerais, conceitos jurídicos indeterminados.

OC – Por exemplo?

Barroso – Pode um casal surdo e mudo desejar, por meio de engenharia genética, produzir um filho surdo e mudo para que a criança habite o mesmo universo existencial que eles? Onde é que está a resposta para essa pergunta? Outra: pode uma mulher pretender engravidar do sêmen, depositado em um banco de esperma, do seu marido morto, sendo que isso afetará drasticamente a ordem de vocação hereditária dos herdeiros que já existem? Todos as questões que estou colocando são casos reais. Uma juíza de São Paulo, há algum tempo, me contou que viveu a seguinte situação. Havia uma fila de transplante de fígado. Uma senhora chegou em primeiro lugar e recebeu o fígado. A fila andou e um cavalheiro chegou ao primeiro lugar. Quando surgiu um novo fígado, que seria encaminhado para o cavalheiro, a mulher da cirurgia anterior teve uma rejeição e reivindicou o novo fígado. Portanto, ela tinha de decidir se ia dar o fígado para a senhora ou para o cavalheiro. Basicamente, ela ia brincar de Deus, já que ia decidir provavelmente qual dos dois iria viver. Onde está a resposta para essa indagação? Em que norma? Pode um adepto da religião Testemunhas de Jeová recusar transfusão de sangue, mesmo com risco de perder a vida? E deve o médico fazer a transfusão mesmo contra a vontade do paciente? Onde está a solução para esse problema? Portanto, a vida ficou mais complexa. O mundo ficou mais complicado e muda mais rapidamente. De modo que a imprevisibilidade não é do Supremo, nem dos juízes em geral. A vida é que ficou mais complexa e, consequentemente, o direito ficou menos previsível.

OC – Mas a jurisprudência do STF não muda só diante de casos complexos como esses que o senhor citou.

Barroso – Sim, o Supremo muda demais de jurisprudência. Porque julga muito e, às vezes, não tem nem a memória adequada do que já julgou. Então, nós recaímos na mesma situação. O Supremo tem de julgar menos para julgar com mais reflexão e melhor.

OC – Qual o seu processo de decisão?

Barroso – Tudo que é justo, correto e legítimo deve encontrar um caminho no Direito. Essa sempre foi a minha filosofia como advogado. Agora, a vida do juiz é um pouco mais difícil do que a do advogado. Porque o advogado é contratado por um lado. E só tem um momento em que ele precisa fazer um juízo moral e político, que é o momento em que ele aceita a causa. Depois que ele aceita a causa, ele tem um lado e tem o dever de produzir argumentos para aquele lado. O advogado é o profissional que, nos limites da lei e da ética, patrocina os interesses que lhe foram confiados. O juiz tem uma vida um pouco mais difícil, que é a vida de não poder ter um lado. É a vida de ter de procurar a resposta correta. E essa é uma vida difícil porque a resposta correta é um pouco fugidia, nem sempre ela se apresenta como muita nitidez. Por isso, a vida de um juiz é um pouco mais complexa do ponto de vista pessoal e moral do que a vida de um advogado. Mas eu continuo militante da crença de que se há uma solução justa, correta e legítima eu tenho de ser capaz de construí-la argumentativamente através do Direito.

OC – O senhor tem, hoje, uma bandeira?

Barroso – Eu estou em campanha pela racionalização do trabalho do Supremo. Em campanha para criar uma corte verdadeiramente constitucional, que julgue dentro das suas limitações. Não tenho nenhum orgulho do volume de processos que o Supremo julga. A jurisdição constitucional não tem de ser de quantidade, tem de ser de qualidade. Essa é a minha cruzada atual.

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Foto: Nelson Jr./SCO/STF.



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