Luís Roberto Barroso
3.06.12

Direito e política: a tênue fronteira

 

Nos últimos anos, o Supremo Tribunal Federal (STF) tem ocupado um espaço relevante no cenário político e no imaginário social. A centralidade da Corte e, de certa forma, do Judiciário como um todo não é peculiaridade do Brasil. Em diferentes partes do mundo, em épocas diversas, tribunais constitucionais tornaram-se protagonistas de discussões políticas ou morais em temas controvertidos. Desde o final da Segunda Guerra Mundial, em muitas democracias verificou-se o avanço da justiça constitucional sobre o campo da política majoritária, aquela feita no âmbito do Legislativo e do Executivo, tendo por combustível o voto popular.

Os exemplos são numerosos e inequívocos. Nos Estados Unidos, a eleição de 2000 foi decidida pela Suprema Corte. Em Israel, foi também a Suprema Corte que deu a última palavra sobre a construção de um muro na divisa com o território palestino. Na França, o Conselho Constitucional legitimou a proibição de burca. Esses precedentes ilustram a fluidez da fronteira entre política e Direito no mundo contemporâneo.

Ainda assim, o caso brasileiro é especial, pela extensão e pelo volume. Apenas nos últimos 12 meses, o STF decidiu acerca de uniões homoafetivas, interrupção da gestação de fetos anencéfalos e cotas raciais. Anteriormente, decidira sobre pesquisas com células-tronco embrionárias, nepotismo e demarcação de terras indígenas. Em breve, julgará o mensalão. Tudo potencializado pela transmissão ao vivo dos julgamentos pela TV Justiça. Embora seja possível apontar inconveniências nessa deliberação diante das câmeras, os ganhos são maiores que as perdas. A visibilidade pública contribui para a transparência, para o controle social e, em última análise, para a democracia. TV Justiça só existe no Brasil, não é jabuticaba e é muito boa.

A ascensão do Judiciário deu lugar a uma crescente judicialização da vida cotidiana e a alguns momentos de ativismo judicial. Judicialização significa que questões relevantes do ponto de vista político, social ou moral são decididas pelo Judiciário. Trata-se de uma transferência de poder das instâncias tradicionais, Executivo e Legislativo, para juízes e tribunais. Há causas diversas para o fenômeno. A primeira é o reconhecimento de que um Judiciário forte e independente é imprescindível para a proteção dos direitos fundamentais. A segunda envolve uma certa desilusão com a política majoritária. Há uma terceira: atores políticos, muitas vezes, para evitar o desgaste, preferem que o Judiciário decida questões controvertidas, como aborto e direitos dos homossexuais. No Brasil, o fenômeno assume uma proporção maior em razão de a Constituição cuidar de uma impressionante quantidade de temas. Incluir uma matéria na Constituição significa, de certa forma, retirá-la da política e trazê-la para o Direito, permitindo a judicialização. A esse contexto ainda se soma o número elevado de pessoas e entidades que podem propor ações diretas perante o STF.

A judicialização ampla, portanto, é um fato, uma circunstância decorrente do desenho institucional brasileiro, e não uma opção política do Judiciário. Fenômeno diverso, embora próximo, é o ativismo judicial. O ativismo é uma atitude, é a deliberada expansão do papel do Judiciário, mediante o uso da interpretação constitucional para suprir lacunas, sanar omissões legislativas ou determinar políticas públicas, quando ausentes ou ineficientes. Exemplos de decisões ativistas envolveram a exigência de fidelidade partidária e a regulamentação do direito de greve dos servidores públicos. Todos esses julgamentos atenderam a demandas sociais não satisfeitas pelo Poder Legislativo. Registre-se, todavia, que, apesar de sua importância e visibilidade, tais decisões ativistas representam antes a exceção do que a regra. A decisão do STF sobre as pesquisas com células-tronco, ao contrário do que muitas vezes se afirma, é um exemplo de autocontenção. O Tribunal se limitou a considerar constitucional a lei editada pelo Congresso.

Inúmeras críticas têm sido dirigidas a essa expansão do papel do Judiciário. A primeira delas é de natureza política: magistrados não são eleitos e, por essa razão, não deveriam poder sobrepor sua vontade à dos agentes escolhidos pelo povo. A segunda é uma crítica ideológica: o Judiciário seria um espaço conservador, de preservação de elites contra os processos democráticos majoritários. Uma terceira crítica diz respeito à capacidade institucional do Judiciário, que seria preparado para decidir casos específicos, e não para avaliar o efeito sistêmico de decisões que repercutem sobre políticas públicas gerais. E, por fim, a judicialização reduziria a possibilidade de participação da sociedade como um todo, por excluir os que não têm acesso aos tribunais.

Todas essas críticas merecem reflexão, mas podem ser respondidas. Em primeiro lugar, uma democracia não é feita apenas da vontade das maiorias, mas também da preservação dos direitos fundamentais de todos. Cabe ao Judiciário defendê-los. Em segundo lugar, é possível sustentar que, na atualidade brasileira, o STF está à esquerda do Congresso Nacional. Quando o Tribunal decidiu regulamentar o aviso prévio proporcional ao tempo de serviço, as classes empresariais acorreram ao Congresso, pedindo urgência na aprovação da lei que tardava. Ninguém duvidava que o STF seria mais protetor dos trabalhadores que o legislador. Quanto à capacidade institucional, juízes e tribunais devem ser autocontidos e deferentes aos outros Poderes em questões técnicas complexas, como a transposição de rios ou demarcação de terras indígenas. Por fim, a judicialização jamais deverá substituir a política, nem pode ser o meio ordinário de resolver as grandes questões. Ao contrário. O Judiciário só deve interferir quando a política falha.

Em muitas situações, em lugar de se limitar a aplicar a lei já existente, o juiz se vê na necessidade de agir em substituição ao legislador. A despeito de algum grau de subversão ao princípio de separação de Poderes, trata-se de uma inevitabilidade, a ser debitada à complexidade e ao pluralismo da vida contemporânea. Por exemplo: até 1988, havia uma única forma de constituir família legítima, pelo casamento. Com a nova Constituição, passaram a existir três possibilidades: além da família resultante do casamento, há também a da união estável e a família monoparental (a mãe ou o pai e seus filhos). Todavia, diante da realidade, representada pelas uniões homoafetivas, o STF, na ausência de lei específica, reconheceu e disciplinou uma quarta forma de família.

Juízes e tribunais também precisam desempenhar uma atividade mais criativa – menos técnica e mais política – nas inúmeras situações de colisão entre normas constitucionais. Tome-se como exemplo a disputa judicial envolvendo a construção de usinas hidrelétricas na Amazônia. O governo invocou, para legitimar sua decisão, a norma constitucional que consagra o desenvolvimento econômico como um dos objetivos fundamentais da República. Do outro lado, ambientalistas fundamentavam sua oposição na disposição constitucional que cuida da proteção ao meio ambiente. Pois bem: o juiz não pode decidir que os dois lados têm razão. Ele tem de resolver a disputa, criando a norma que considera adequada para o caso concreto. Isso aumenta seu poder individual e reduz a objetividade e previsibilidade do Direito. Mas a culpa não é do juiz. A vida é que ficou mais complicada, impedindo o legislador de prever soluções abstratas para todas as situações.

Conclui-se que o Judiciário se expande, sobretudo, nas situações em que o Legislativo não pode, não quer ou não consegue atuar. Aqui se chega ao ponto crucial: o problema brasileiro atual não é excesso de judicialização, mas a escassez de boa política. Imaginar que a solução esteja em restringir o papel do Judiciário é assustar-se com a assombração errada. Do que o país precisa é restaurar a dignidade da política, superando o descrédito da sociedade civil, particularmente em relação ao Legislativo. É hora de diminuir o peso do dinheiro, dar autenticidade aos partidos e atrair vocações. Enquanto não vier a reforma política, o STF desempenhará os dois papéis que o trouxeram até aqui: o contramajoritário, que estabelece limites às maiorias; e o representativo, que responde às demandas sociais não satisfeitas pelas instâncias políticas tradicionais.

Há uma última questão: a relação do STF com a opinião pública. Muitas vezes, a decisão justa não é a mais popular. E o populismo judicial é tão ruim quanto qualquer outro. Um Tribunal não pode decidir pensando nas manchetes. Sem cair na armadilha, o STF tem servido bem à democracia brasileira.

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LUÍS ROBERTO BARROSO é professor titular de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – Uerj. Mestre pela Universidade de Yale. Doutor e livre-docente pela Uerj. Visiting scholar na Universidade de Harvard.

Artigo publicado originalmente na Revista Época, edição 733.

Fotos: Felipe Sampaio/SCO/STF (Plenário do STF) e Carlos Humberto/SCO/STF (Plenário do Congresso).



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