Claudio de Oliveira Santos Colnago
2.05.12

Congresso quer limitar os poderes do STF?

 

Com títulos como “CCJ aprova proposta que autoriza Congresso a derrubar atos do STF” (aqui) ou ainda “Uma proposta de estarrecer” (editorial do Estado de São Paulo, aqui), vem sendo divulgada a Proposta de Emenda Constitucional nº 3/2011, de autoria do Deputado Nazareno Fonteles.

Como hoje a internet permite isso, recomendamos a leitura da proposta antes de criticá-la com base no “ouvi dizer do jornalista” (aliás, a nossa imprensa tem cometido algumas derrapadas nos últimos tempos que, infelizmente, nos fazem duvidar da qualidade e da seriedade de alguns profissionais). Veja o inteiro teor da PEC aqui.

A proposta pretende modificar o artigo 49, V, da Constituição, que desde 1988 já permite que o Legislativo suspenda, via decreto legislativo, atos do Poder Executivo que exorbitem de sua competência regulamentar. Em outras palavras, sempre que o Executivo editar um decreto que crie obrigações novas, não previstas em lei, o legislador pode suspender seus efeitos, já que cabe ao Congresso Nacional a iniciativa primária de criação de obrigações dirigidas a todos (princípio da legalidade, artigo 5º, II, da Constituição).

A PEC 3/2011 se limita a substituir a expressão “Poder Executivo” por “demais Poderes”. Porém, ela continua fazendo referência a um “poder regulamentar” e a uma “delegação legislativa”. Só isso já mostra que a proposta não tem o condão de permitir que o Congresso venha a cassar decisões do STF, como chegou a ocorrer no governo de Getúlio Vargas (a competência era do Congresso, mas como este estava fechado, Vargas suspendeu, por ato singular, decisão do STF que declarava a inconstitucionalidade do imposto de renda cobrado de servidores públicos estaduais).

A nova redação do art. 49, V, ficaria assim:

Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional:

(…)

V – sustar os atos normativos dos demais Poderes que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa;

No contexto de críticas a propostas legislativas é de boa índole que não se transborde dos limites postos no texto. Por mais que todo projeto possua um contexto (e uma vontade política que o subsidia), a aplicação final do sistema jurídico dependerá do enunciado tal qual aprovado. Por mais que a interpretação das finalidades buscadas pelo legislador seja imprescindível, referida busca fica limitada pelos objetivos declinados no produto legislativo.

O que é de estarrecer é que a crítica de uma proposta como a PEC 3/2011 seja influenciada por subjetivismos travestidos de linguagem imparcial. Trai o leitor fiel àquele veículo de comunicação, que parte de pressupostos esotéricos (quiçá telepáticos?) para descobrir a “real intenção” que está por trás de uma proposta de emenda constitucional.

Com todo o respeito, sustentar que a expressão “atos normativos” abrangeria as decisões em sede de ADI ou mesmo as súmulas vinculantes não nos parece a interpretação mais acertada da Constituição. Assim pensamos porque o trecho inicial do dispositivo deve ser entendido em conjunto com o resto do enunciado, ou seja, com apoio nos enunciados “que exorbitem do poder regulamentar ou dos “limites da delegação legislativa”. Em outras palavras: não é qualquer “ato normativo” que pode ser suspenso com base na competência do art. 49, V. É necessário que tais atos ou desempenhem função regulamentar ou sejam resultado de um delegação feita pelo Congresso (no que se incluiria a delegação para a edição de regulamento – art. 84, IV – ou mesmo a edição de lei delegada – art. 68).

Vide, a respeito, o entendimento do STF sobre o tema, no qual a Corte vincula diretamente a interpretação do dispositivo constitucional citado à exigência constitucional de reserva de lei:

O princípio da reserva de lei atua como expressiva limitação constitucional ao poder do Estado, cuja competência regulamentar, por tal razão, não se reveste de suficiente idoneidade jurídica que lhe permita restringir direitos ou criar obrigações. Nenhum ato regulamentar pode criar obrigações ou restringir direitos, sob pena de incidir em domínio constitucionalmente reservado ao âmbito de atuação material da lei em sentido formal. O abuso de poder regulamentar, especialmente nos casos em que o Estado atua contra legem ou praeter legem, não só expõe o ato transgressor ao controle jurisdicional, mas viabiliza, até mesmo, tal a gravidade desse comportamento governamental, o exercício, pelo Congresso Nacional, da competência extraordinária que lhe confere o art. 49, V, da Constituição da República e que lhe permite “sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar (…)”. Doutrina. Precedentes (RE 318.873-AgR, Rel. Min. Celso de Mello, v.g.). Plausibilidade jurídica da impugnação à validade constitucional da Instrução Normativa STN 01/2005. (AC 1.033-AgR-QO, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 25-5-2006, Plenário, DJ de 16-6-2006.)

Neste âmbito, percebemos que o objetivo da PEC 3/2011 não consiste em atingir as decisões jurisdicionais do Poder Judiciário, mas sim aquelas competências tipicamente administrativas/regulamentares que são exercidas por esse Poder.

Como bem sabem os juristas, o Poder Judiciário não exerce somente funções jurisdicionais (julgamento de conflitos concretos, por exemplo), mas também pratica atos administrativos regulamentares, que podem ser enquadrados no conceito de “atos normativos”, como, por exemplo, as resoluções expedidas pelo TSE na regulamentação da legislação eleitoral (art. 1º, parágrafo único, do Código Eleitoral).

Logo, a citada proposta não tem o condão de permitir que o Congresso venha a cassar decisões jurisdicionais do Supremo Tribunal Federal, como vem sendo divulgado. O legislador não poderia, mediante decreto legislativo, cassar a decisão do STF sobre a constitucionalidade da Lei da Ficha Limpa, ou do caso dos fetos com anencefalia. Se o fizesse, tal ato seria reputado imediatamente inconstitucional.

Porém, a nossa prática constitucional tem demonstrado que, sempre que não concorda com o STF, o Congresso se articula para aprovar emenda constitucional na qual faz prevalecer a sua interpretação da Constituição. Vide, por exemplo, as Emendas Constitucionais 29/2000 (que permitiu a progressividade fiscal do IPTU, após o STF entender que ela não seria cabível), 39/2002 (que autorizou a instituição, pelos Municípios, de “Contribuição” de iluminação pública, depois de o Supremo concluir que as Taxas de Iluminação Pública eram inconstitucionais) e 57/2008 (que pretendeu “convalidar” os municípios cuja criação foi considerada inconstitucional pelo STF – abordamos o tema especificamente aqui).

Creio que esta é a única interpretação que compatibiliza a PEC 3/2011 com a Constituição Federal. Quaisquer outros entendimentos violam o sistema de separação de poderes e levariam o STF, quando provocado, a considerá-la inconstitucional, sobretudo porque as emendas constitucionais devem respeitar as cláusulas pétreas (limites materiais do Poder de Reforma, previstos no art. 60, § 4º, da Constituição).

Não se nega que determinado grupo de parlamentares queira enfraquecer o Supremo Tribunal Federal. Se tentar fazê-lo, fracassará, haja vista se tratar do guardião da Constituição e guia dos limites constitucionais da atividade legislativa, entre outras. O que se pede, porém, é um pouco mais de responsabilidade e um pouco menos de parcialidade da parte de quem lança conclusões sem qualquer fundamento no objeto analisado.

__________

CLAUDIO DE OLIVEIRA SANTOS COLNAGO é mestre em Direitos e Garantias Fundamentais pela Faculdade de Direito de Vitória – FDV, professor da FDV e membro da Comissão de Tecnologia da Informação da OAB/ES. É advogado em Vitória/ES, sócio da Bergi Advocacia. Twitter @claudiocolnago e blog www.colnago.adv.br.

Foto: noyava/Flickr.



5 Comentários

  1. Lucas Gabriel Pereira disse:

    Prezado, a matéria ficou ótima.
    Todavia, na JUSTIFICATIVA da PEC encontramos, tais argumentos não encontram no sentido do defendido pelo colega neste texto.
    Só!

  2. Leonardo disse:

    Mas alterar a Constituição por mera adaptação textual (demais Poderes no lugar de Poder Executivo), não se afigura desnecessária? É que o poder regulamentar de qualquer dos poderes, que exceda aos limites …, está suscetível de controle jurisdicional, seja por violação à reserva legal, seja por violação ao pacto federativo. No mais, concorde com a eloquência midiática. Todavia, em um Estado Constitucional, não estamos imunes as opiniões desarrazoadas juridicamente.

  3. Lucas G. Pereira disse:

    Caro colega Leonardo,
    qto a sua pergunta, podemos dizer que é desnessária tal alteração, uma vez que o Congresso já possui os mecanismos necessários p/ sustar os atos do Executivo que transborde de seu Poder Regulamentar (CF, 49, V). No mais,paulatinamente estão alterando nossa Carta p/ atender “certos interesses”, que, aos poucos, o temor é de desfigurar a mesma do espírito desejado-criado pelo poder constituinte. Por fim, na justificativa da PEC, especialmente fls. 09 e 13 ‘tópico 2’, resta clarividente que o legislador deseja sim USURPAR da competência do STF etc.

  4. Deveríamos nos ater ao assunto de origem que é o artigo, no entanto, não encontramos nenhum mero bacharel em direito para dar´se conta de que a Constituição brasileira foi um blefe desde sua concepção. Assim continua com apenas 30% dela regulamentado. Então estamos falando do quê ? De Constituição de qual país ? Uma Constituição ajuntada em filigranas jurídicas não deveria ser chamada de Carta do Povo. Essa carta nenhum povo, por mais letrado que seja, jamais seria capaz de ler. Menos ainda, de compreender. SUGIRO leitura da proposta de Júri Popular da autoria do Procurador da República Ailton Benedito http://www.prgo.mpf.gov.br/images/stories/ascom/Artigo-Tribunal-Juri-Corrupcao.pdf e Proposta de Recall Eleitoral no link para o site do DominioFeminino http://www.dominiofeminino.com.br/artigos_tematicos/hps2009/recall_eleitoral.htm — Duas soluções *remendatórias* a serem implementadas com urgência. OBS.: ao gosto e vontade da hora, o Impeachment foi adotado quando deveriam ter pensado no Recall Eleitoral que se aplica aos políticos em geral, mais apropriadamente a governadores e prefeitos. Impeachment é só para presidente da República. De onde o Brasil copiou, havia esta ferramenta que é o Recall eleitoral.

  5. Jurista M disse:

    Eu só não entendi a parte em que o Poder Judiciário exerce tipicamente algum poder regulamentar que não seja aquele de regular, conforme a autonomia dos tribunais, procedimentos judiciais ou que, no todo, ele tenha autorização constitucional para editar ato sujeito à delegação legislativa.
    Se o Poder Judiciário não exerce tipicamente o poder regulamentar (afinal, todos sabemos que é outro artigo constitucional que dá poderes aos tribunais para criar atos normativos sobre procedimentos processuais) e nem a delegação legislativa, sobram apenas duas opções:

    A) A emenda quer atingir o inciso errado. Melhor seria se criasse um inciso específico, prevendo claramente que o Congresso quer controlar a função atípica de administrar do Poder Judiciário (e isso envolveria os atos normativos desse poder que sejam editados para essa função singular);

    B) É golpismo.

    Outro aspecto digno de nota, e aqui indo além do autor, é até que ponto que não permanece a competência do Supremo Tribunal Federal para controlar, inclusive, quando o próprio Congresso se excedeu na aplicação de um eventual e novo inciso V?!

    Por essas considerações, com todo respeito ao autor e sua respectiva opinião, mas não vejo com bons olhos essa proposta de emenda, seja ela um movimento equivocado ou uma disfarçada tentativa de golpe.