20.11.09
A Advocacia-Geral da União e a defesa de lei impugnada por ação direta de inconstitucionalidade: obrigação?
POR GUILHERME NÓBREGA
O presente trabalho, tão singelo quanto despretensioso, tem por condão a análise da existência de obrigatoriedade, ou não, a impor à Advocacia-Geral da União (AGU) a defesa de texto cuja constitucionalidade é questionada junto ao Supremo Tribunal Federal.
Nesse ínterim, tem-se que a Constituição Federal, em seu artigo 103, § 3º[1], estabeleceu a necessidade da citação prévia do AGU quando a discussão versar sobre a constitucionalidade de lei ou ato normativo em tese junto ao STF, guardião da Carta Magna.
Contudo, se faz imperioso ponderar se tal regra se revestiria de caráter absoluto, não comportando quaisquer exceções.
Feitas tais considerações, convém ressaltar que o dispositivo supracitado encontra raiz histórica e provável influência do direito norte-americano, onde se estabeleceu como competência do General Attorney a defesa de lei impugnada junto à Suprema Corte daquele país.[2]
No Brasil, a inovação veio com a Constituição de 1988 que, além de criar a AGU, buscou através do já mencionado § 3º, do artigo 103, dar proteção à presunção de constitucionalidade das leis e atos normativos.
Também pode ser entendido como um dos fundamentos da defesa, pela AGU, de lei impugnada, o resguardo ao papel institucional do Executivo e do Legislativo, que realizam controle de constitucionalidade preventivo das leis através da Comissão de Constituição e Justiça e do veto jurídico, respectivamente, no curso do processo legislativo.
Nesse ponto, há o entendimento de que, em se encarregando o Judiciário da análise exclusiva da constitucionalidade das leis, ignorando o controle preventivo exercido pelo demais poderes, haveria verdadeiro desequilíbrio a comprometer o sistema de freios e contrapesos, violando, por consectário, o princípio da separação de poderes.[3]
Em que pesem tais fundamentos, frise-se, legítimos, entendemos que em determinadas situações deveria haver uma flexibilização e uma relativização da regra do artigo 103, § 3º, desobrigando o AGU da defesa do texto impugnado.
Nessa linha, o controle de constitucionalidade é um “processo objetivo de defesa da Constituição”. Não há partes e nem lide, haja vista o interesse ser comum: a integridade da Constituição.[4] Desse modo, face a flagrante violação constitucional, ninguém mais interessado que a própria União em extirpar do ordenamento jurídico norma eivada de vício.
Portanto, a própria supremacia da Constituição deveria dar-se em detrimento da defesa de lei absolutamente contrária à Lei Magna.
Ilustrando o argumento acima, caso o STF possua jurisprudência sedimentada a respeito de determinada matéria, concluindo reiteradamente pela inconstitucionalidade de diplomas normativos num mesmo sentido, estaria o AGU desobrigado da defesa de lei que apontasse naquele mesmo sentido já julgado contrário à Constituição pelo STF, com um fundamento que se aproxima da transcendência dos motivos determinantes. Nesse norte, entendemos que estaria elidida a presunção de constitucionalidade, não subsistindo justa razão para uma defesa por parte do AGU.[5]
Corrobora ainda para essa conclusão o argumento de que o AGU, fazendo parte da Administração, estaria abarcado pela regra do artigo 102, § 2º[6].
Esse entendimento também encontra respaldo em julgado do STF de lavra do Ministro Gilmar Mendes, que inclusive já ocupou o cargo de AGU:
O munus a que se refere o imperativo constitucional (CF, artigo 103, § 3º) deve ser entendido com temperamentos. O Advogado-Geral da União não está obrigado a defender tese jurídica se sobre ela esta Corte já fixou entendimento pela sua inconstitucionalidade. Ação julgada procedente para declarar inconstitucional a Resolução Administrativa do Tribunal Regional do Trabalho da 6ª Região, tomada na Sessão Administrativa de 30 de abril de 1997". (ADI 1616/PE, rel. Min. Maurício Corrêa, DJ de 24. 08. 01 p. 41).
Nessa esteira, não se pode exigir do AGU, a partir de interpretação literal do dispositivo constitucional, a defesa incondicional de lei impugnada sob pena do mesmo se tornar um “advogado da inconstitucionalidade.”[7] Também o AGU faz parte da “sociedade aberta de intérpretes”[8], não merecendo acolhida o argumento de que, abstendo-se da defesa, haveria usurpação de função do STF.[9]
Noutro giro, quanto a estar desobrigado o AGU, em certos casos, à defesa de lei cuja constitucionalidade é questionada, tampouco haveria que se falar em violação ao contraditório ou ao devido processo legal, visto que, “por inexistirem interesses concretos em jogo”, as garantias constitucionais processuais não se aplicariam à ação direta de inconstitucionalidade.[10]
Como exemplo de uma daquelas situações excepcionais em que estaria autorizado o AGU a se escusar de defender norma, cite-se a hipótese de lei editada pelo Congresso e vetada, na espécie jurídica, pelo Presidente após parecer do AGU. Imagine-se que, posteriormente, com derrubada do veto pelo Congresso, seja ajuizada ADI pelo Presidente da República contra o dispositivo anteriormente vetado.
Ora, o AGU possui dentre suas competências a de “assessorar o Presidente da República em assuntos de natureza jurídica, elaborando pareceres e estudos ou propondo normas, medidas e diretrizes”[11], sendo pouco razoável, quiçá absurdo, que após elaborar parecer pelo veto e redigir ADI contra dispositivo, o mesmo deva defender a mesma norma outrora atacada[12].
Nesse mesmo norte, novamente socorremo-nos dos ensinamentos de Gilmar Mendes, para quem “o Advogado-Geral da União, na condição de órgão constitucional, ostenta um ‘dever de fidelidade à Constituição’ e, por conseguinte, o exercício de seu múnus orienta-se igualmente por esse dever fundamental.”[13]
Outro argumento, conveniente porque plausível, nos é trazido por Carlos Luiz Neto:
Aliás, como é dever do Advogado-Geral da União “editar enunciado de súmula administrativa, resultante de jurisprudência iterativa dos Tribunais”, admitindo-se que ele esteja obrigado a opinar favoravelmente à constitucionalidade questionada, chegar-se-ia ao absurdo de ter que defender uma norma contrária a uma súmula por ele editada, situação que é inconcebível, por ser totalmente desarrazoada e desprovida de qualquer lógica jurídica.[14]
Vê-se, pois, a incoerência em se exigir do AGU, em toda e qualquer hipótese, a defesa inquestionável de lei alvo de ação direta de inconstitucionalidade.
Sintetizando essa digressão, concluímos pela possibilidade do AGU, em casos excepcionais como os apresentados acima, de se esquivar da defesa de norma impugnada, seja pelo fato de a União ser a maior interessada na exclusão de lei viciada do ordenamento, seja por ser o AGU também subordinado à Constituição.
Argumentos que sustentem entendimento contrário, baseados numa interpretação literal do artigo 103, § 3º, esbarram em incoerências práticas absurdas, soando mais razoável que, em determinados casos, aquela regra seja relativizada, sem, contudo, prejudicar o princípio da separação dos poderes e da presunção de constitucionalidade das leis editadas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CLÈVE, Clèmerson Merlin. A fiscalização abstrata da constitucionalidade no direito brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995.
HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional – a Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição: Constituição para e Procedimental da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris editor, 1997.
LUIZ NETO, Carlos. Obrigatoriedade do Advogado-Geral da União atuar na defesa do ato ou texto impugnado por ação direta de inconstitucionalidade. Disponível em http://www.escola.agu.gov.br/revista/Ano_VII_marco_2007/Obrigatoriedade%20do%20AGU-Carlos%20Luiz%20Neto.pdf Acesso em 03.07.2009.
MASCARENHAS, Robson Silva. O Advogado-Geral da União e o dever de defesa nas ações diretas de inconstitucionalidade. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 621, 21 mar. 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6471>. Acesso em: 03 jul. 2009.
MENDES, Gilmar Ferreira. O Advogado Geral da União e a Ação Direta de Inconstitucionalidade. Disponível em <www.redebrasil.ifn.br> Acesso em 15.09.2006.
PURVIN DE FIGUEIREDO, Guilherme José et BARROS, Marcos Ribeiro de. O Advogado Público nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade. Disponível em <www.ibap.org> Acesso em 30. 09. 2004.
SOUTO, José Carlos. A União Federal em Juízo. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 47.
[1] Art. 103. Podem propor a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade: (…) § 3º – Quando o Supremo Tribunal Federal apreciar a inconstitucionalidade, em tese, de norma legal ou ato normativo, citará, previamente, o Advogado-Geral da União, que defenderá o ato ou texto impugnado.
[2] SOUTO, José Carlos. A União Federal em Juízo. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 47.
[3] MASCARENHAS, Robson Silva. O Advogado-Geral da União e o dever de defesa nas ações diretas de inconstitucionalidade. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 621, 21 mar. 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6471>. Acesso em: 03 jul. 2009.
[4] CLÈVE, Clèmerson Merlin. A fiscalização abstrata da constitucionalidade no direito brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, pág. 113-114.
[5] LUIZ NETO, Carlos. Obrigatoriedade do Advogado-Geral da União atuar na defesa do ato ou texto impugnado por ação direta de inconstitucionalidade. Disponível em http://www.escola.agu.gov.br/revista/Ano_VII_marco_2007/Obrigatoriedade%20do%20AGU-Carlos%20Luiz%20Neto.pdf Acesso em 03.07.2009.
[6] Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: (…)§ 2º As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal.
[7] PURVIN DE FIGUEIREDO, Guilherme José et BARROS, Marcos Ribeiro de. O Advogado Público nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade. Disponível em <www.ibap.org> Acesso em 30. 09. 2004.
[8] Cfr. HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional – a Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição: Constituição para e Procedimental da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris editor, 1997.
[9] O artigo 4º, X, da Lei Complementar nº 73, de 10 de fevereiro de 1993, estabelece dentre as competências do AGU: “fixar a interpretação da Constituição, das leis, dos tratados e demais atos normativos, a ser uniformemente seguida pelos órgãos e entidades da administração Federal.”
[10] CLÈVE, Clèmerson Merlin. A fiscalização abstrata da constitucionalidade no direito brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, pág. 113-114.
[11] Art. 4º, VI, da Lei Complementar nº 73, de 10 de fevereiro de 1993.
[12] LUIZ NETO, Carlos. Obrigatoriedade do Advogado-Geral da União atuar na defesa do ato ou texto impugnado por ação direta de inconstitucionalidade. Disponível em http://www.escola.agu.gov.br/revista/Ano_VII_marco_2007/Obrigatoriedade%20do%20AGU-Carlos%20Luiz%20Neto.pdf Acesso em 03.07.2009.
[13] MENDES, Gilmar Ferreira. O Advogado Geral da União e a Ação Direta de Inconstitucionalidade. Disponível em <www.redebrasil.ifn.br> Acesso em 15.09.2006.
[14] LUIZ NETO, Carlos. Obrigatoriedade do Advogado-Geral da União atuar na defesa do ato ou texto impugnado por ação direta de inconstitucionalidade. Disponível em http://www.escola.agu.gov.br/revista/Ano_VII_marco_2007/Obrigatoriedade%20do%20AGU-Carlos%20Luiz%20Neto.pdf Acesso em 03.07.2009.