7.11.14
Vargas, Roosevelt e a independência judicial
– I –
No 60º aniversário da morte de Getúlio Vargas, tem sido lembrada, entre outros fatos, a parceria política mantida pelo estadista brasileiro com o contemporâneo Presidente dos Estados Unidos, Franklin Delano Roosevelt. Os dois governantes se aproximaram e tornaram-se amigos depois de Vargas ter abandonado a postura de neutralidade em face da 2ª Guerra Mundial, e o Brasil entrado no conflito combatendo ao lado dos Aliados, liderados pela União Soviética de Stalin, o Reino Unido de Churchill e os Estados Unidos de Roosevelt. O acordo de ingresso do Brasil na guerra, o qual incluiu a ajuda financeira norte-americana para a construção da Companhia Siderúrgica Nacional – CSN, foi selado em 1943, na cidade de Natal, Rio Grande do Norte, em encontro conhecido como “Conferência de Natal” (foto ilustrativa).
Vargas e Roosevelt tiveram muito em comum em suas trajetórias políticas. Foram os presidentes de mandatos mais longevos de seus países. Vargas governou em diferentes períodos: o Governo Provisório entre 1930 e 1934; o Governo Constitucional entre 1934 e 1937; o Estado Novo de 1937 a 1945, totalizando quinze anos ininterruptos; e a presidência de 1951 a 1954, quando foi eleito pelo voto popular e morreu por suicídio antes do fim do mandato. Ao todo, mais de 18 anos de governo. Roosevelt foi presidente por quatro mandatos – de 1933 a 1945 –, vindo também a morrer durante o último. Governou por 12 anos e não pode ser superado por outro presidente, salvo se revogada a 22ª Emenda à Constituição dos Estados Unidos, por meio da qual foi proibida a segunda reeleição.
Ambos lideraram o enfrentamento de crises seríssimas em seus países: Roosevelt, a crise econômica dos anos 30 conhecida como “Grande Depressão”, tendo criado o New Deal para remediá-la; Vargas, a crise política que culminou com a “Revolução de 30”, da qual foi líder e que pôs fim à República Velha, instaurando o Governo Provisório. Os seus programas de governo eram, igualmente, voltados a assegurar melhores condições sociais aos menos favorecidos, a criar empregos por meio de grandes obras públicas de infraestrutura, e garantir salários dignos e direitos aos trabalhadores. Ou seja, caracterizavam-se pela maior participação do Estado na economia nacional. Com tais medidas, alcançaram grande popularidade. Roosevelt é, comumente, ranqueado entre os três melhores presidentes da história dos Estados Unidos, ao lado de George Washington e Abraham Lincoln. Vargas, “o pai dos pobres”, é tido como um dos mais populares presidentes do Brasil em todos os tempos.
Para este artigo, interessa, no entanto, outro fato comum em particular: os dois governantes travaram verdadeiras batalhas com as Supremas Cortes de seus respectivos países. Os embates, apesar de distintos em aspectos importantes, oferecem, igualmente, lições preciosas para o estudo do comportamento judicial e das relações entre cortes supremas ou constitucionais e os demais atores de governo do sistema político em que inseridas. Compreender essas lições é o propósito deste pequeno texto, que possui a seguinte estrutura: no próximo tópico (II), descrevo os atos arbitrários de Vargas contra o Supremo Tribunal Federal; na sequência (III), a estratégia de Roosevelt para reverter decisões conservadoras da Suprema Corte norte-americana; por fim (IV), aponto as lições que penso poderem ser extraídas dessas disputas.
– II –
Desde o início de seu governo, Getúlio Vargas deu mostras que investiria contra a estrutura e a independência do Supremo Tribunal Federal: reduziu as competências e os poderes de decisão do Tribunal, modificou a sua composição, aposentou vários de seus membros. Por meio do Decreto nº 19.398, de 11/11/1930, suspendeu garantias constitucionais e excluiu da apreciação judicial atos praticados pelo Governo Federal, sendo mantido o habeas corpus apenas em favor de acusados de crimes comuns. Com o Decreto nº 19.656, de 3/2/1931, Vargas diminuiu a composição do Supremo de quinze para onze ministros e, apesar da previsão constitucional de vitaliciedade do cargo, aposentou, compulsoriamente, seis ministros (Decreto 19.771, de 18/2/1931). Só que não o fez apenas em razão da redução de vagas na Corte…
Segundo registros históricos, a aposentadoria compulsória deu-se porque, no passado, os ministros “expulsos” (Godofredo Cunha [Presidente], Pedro Mibielli, Pires e Albuquerque, Muniz Barreto, Pedro dos Santos e Germiniano da Franca) tinham dado votos desfavoráveis aos aliados militares de Vargas durante as Revoltas de 1922 e 1924.[1] A possibilidade de remoção por ato exclusivo do Presidente, presente o caráter autoritário de Vargas, fez com que, a partir de então, nenhum ministro se sentisse seguro. O Vice-Presidente da Corte entre 1931 e 1937, Hermenegildo de Barros, chegou a dizer não ter “honra nenhuma em fazer parte desse Tribunal, assim desprestigiado, vilipendiado, humilhado.”[2] Para as vagas abertas, foram nomeados juízes aliados do governo, sendo estabelecida uma composição deferente às arbitrariedades do regime.
Além de constrangimentos e humilhações da espécie, Getúlio Vargas reduziu a capacidade decisória do Supremo Tribunal Federal por meio da Constituição de 1937. Com a instalação do Estado Novo, foi imposta por Vargas uma nova Constituição, “integralmente redigida pelo jurista Francisco Campos, […] um intelectual brilhante, de forte inclinação autoritária, que muitas vezes chegava às raias do fascismo”. [3] Com o Congresso fechado, a Carta de 1937 foi moldada aos propósitos de Vargas que, principalmente depois da insurreição comunista de 1935, ignorou liberdades democráticas e impôs uma ditatura. Há opinião uníssona no sentido de a nova Constituição ter representado grande “passo para trás” nas conquistas alcançadas pelo Supremo, como instituição republicana, quando das Constituições de 1891 e 1934. [4]
Na Constituição de 1937, retirou-se o status constitucional do mandado de segurança, relegando-o à legislação ordinária, a qual excluiu o uso do remédio em face do Presidente da República e dos ministros de Estado (artigo 319 do CPC de 1939). Não foi mantida a chamada “representação interventiva”,[5] nem a competência do Senado para suspender a eficácia das leis declaradas inconstitucionais. As decisões de inconstitucionalidade foram sujeitas a valorações do Presidente da República que, se entendesse a lei impugnada necessária ao “bem-estar do povo, à promoção ou defesa de interesse nacional de alta monta”, poderia submetê-la novamente ao exame do Parlamento e, se este confirmasse a lei “por dois terços de votos em cada uma das Câmaras, ficaria sem efeito a decisão do Tribunal” (artigo 96, parágrafo único), retirando do Supremo a última palavra sobre a validade das normas questionadas.[6]
Aos olhos do constitucionalismo contemporâneo, esta última previsão constitucional poderia ser até bem recebida como mecanismo de diálogo institucional em torno da constitucionalidade das leis, à semelhança da notwithstanding clause canadense. Contudo, os fatos de o exercício da medida ter se dado em contexto ditatorial, e de ter sido prevista em uma Constituição na qual se concentrou demasiado poder nas mãos do Presidente da República, chegando a chamá-lo de “autoridade suprema do Estado” (artigo 73), impedem essa qualificação. Prova disso é que, como o Congresso permaneceu fechado durante todo o Estado Novo, Getúlio Vargas, ele mesmo, editou decretos-leis restabelecendo leis declaradas inconstitucionais pelo Supremo. O problema, portanto, não foi tanto do conteúdo da norma, mas das circunstâncias de sua aplicação.
Por tudo isso, pode-se afirmar que a ditadura varguista humilhou o Supremo. Sem embargo, Getúlio Vargas castrou a independência do Tribunal. Como permaneceu no poder durante quinze anos ininterruptos com o Congresso Nacional fechado, Vargas foi senhor absoluto de 21 nomeações de ministros.[7] Com o Decreto-lei nº 2.770, de 11/11/1940, ainda avocou o poder de nomear o Presidente da Corte. Com esse sistema de composição unilateral do Tribunal, sem a amplitude de outrora do habeas corpus e com o mandado de segurança fora da Constituição, o Supremo conviveu, passivamente, com os atos mais arbitrários de Vargas. A condição de guardião da Constituição e das liberdades civis que exerceu, não sem altos e baixos, durante a República Velha, foi absolutamente nula durante o período mais antiliberal da Era Vargas, vindo o Supremo a tornar-se, inevitavelmente, em instrumento apenas legitimador do regime autoritário.[8]
– III –
Na mesma época, mais ao norte das Américas, o Presidente Franklin Delano Roosevelt travava uma briga sensacional com a Suprema Corte dos Estados Unidos, que marcaria a história política e constitucional daquele país. Durante a “Grande Depressão”, grave crise econômica iniciada em 1929, Roosevelt lançou um amplo programa de intervenção econômica e social, conhecido como New Deal, com o propósito de recuperar a economia norte-americana e proteger as classes sociais mais pobres e prejudicadas pela crise. Apesar da ampla mobilização política e do largo apoio popular em torno do programa, a Suprema Corte, em maio de 1935, negou validade a três dessas importantes medidas.[9] Para a maioria conservadora,[10] o Congresso havia delegado, inconstitucionalmente, poderes ao Presidente para intervir na economia. Segundo esses juízes, nem mesmo circunstâncias extraordinárias, como as presentes na ocasião, justificariam tamanha interferência nos negócios particulares.
No ano seguinte, a Suprema Corte anulou outras leis do New Deal,[11] colocando-se, definitivamente, em situação de impopularidade e em espessa zona de conflito institucional, contrapondo-se ao Executivo e ao Legislativo sob a liderança de Roosevelt. A maioria da Corte fundamentava essas decisões em princípios que haviam sido consolidados no conhecido caso Lochner, julgado em 1905. Em Lochner, a Suprema Corte declarou inconstitucional lei estadual por meio da qual se assegurou jornada máxima de trabalho em favor de padeiros. A Corte entendeu que o legislador não poderia interferir nas relações contratuais de trabalho por violação à cláusula do devido processo legal. [12] Este era o perfil de Corte que perdurava há décadas (Lochner Era) até o embate em torno do New Deal: ativista na defesa do direito natural de propriedade e da liberdade de contrato e hostil à intervenção estatal na economia.
Importante destacar, no entanto, que a Lochner Era e a sua filosofia adjudicatória de liberalismo econômico e de hostilidade à intervenção estatal na economia não surgiram em um vácuo político. Em 1870, a Suprema Corte decidiu Hepburn v. Griswold,[13]caso que envolveu lei federal (Legal Tender Act, de 1862) autorizativa da emissão de moeda-papel (greenback) com eficácia retroativa de moeda corrente do país, hábil para pagamento de dívidas contraídas mesmo antes da publicação da lei. O governo federal emitiu em torno de um milhão e meio de dólares dessas notas com o propósito de custear os gastos com a Guerra Civil. Contudo, a Suprema Corte julgou inconstitucional a utilização retroativa da nova moeda. As dívidas contratadas antes da lei, segundo a Corte, deveriam ser pagas exatamente como pactuadas: em moedas de prata ou ouro, dotadas de valor intrínseco.
A decisão deixou não apenas o governo federal descontente, mas também o setor econômico mais importante da época: o ferroviário. Havia a necessidade para ambos de superação de Hepburn. No mês seguinte à decisão, o presidente Grant teve a oportunidade de nomear dois novos juízes para a Corte e ele indicou dois advogados de companhias ferroviárias. Em um ano e com os votos decisivos dos dois novos juízes, a Suprema Corte superou Hepburn.[14] Desde então, a posição em favor das poderosas corporações econômicas tornou-se uma tendência, vindo a consolidar-se na medida em que Presidentes Republicanos continuaram a nomear advogados de ferrovias e de outros poderosos setores econômicos para a Corte, todos fervorosos defensores do laissez faire, que se tornou não só a filosofia, mas a prática constitucional dominante.
Os Estados Unidos viviam, então, a “Era Dourada” (Gilded Age), caracterizada pelo crescimento econômico extraordinário. Como disse MacGrecor Burns, foi uma época marcada pela “devoção Republicana pós-guerra civil ao laissez faire” e pela “ubiquidade do poder das ferrovias”.[15] Nesse cenário, foi natural a influência das principais corporações econômicas sobre o governo federal na formação da Suprema Corte. Essa estratégia resultou na formação de uma Corte que, aos poucos, se mostrou hostil a toda e a qualquer intervenção estatal sobre a liberdade das empresas. Foi durante esse período que a Suprema Corte assentou a cláusula do devido processo legal como “ferramenta importante para a proteção da propriedade privada e de direitos adquiridos” contra as intervenções do Estado na economia, e o seu próprio papel de censor da legislação econômica e regulatória norte-americana.[16] Foi a consolidação da base ideológica e doutrinária de Lochner, a mesma utilizada contra o New Deal.
Portanto, o ativismo judicial conservador da Era Lochner, que culminou com o ataque da Suprema Corte ao New Deal, encontrou origem na estratégia do governo em estabelecer a composição da Suprema Corte, durante as últimas décadas do século XIX, majoritariamente favorável aos interesses das forças econômicas então dominantes. Política democrática e poder econômico interagiram para institucionalizar, na Suprema Corte, a interpretação constitucional que consideravam a mais adequada: proteção da propriedade e da liberdade econômica das grandes empresas. A Suprema Corte agia com pouca ou nenhuma deferência às importantes decisões dos outros poderes para favorecer a manutenção do status quo. Para mudar esse persistente quadro de ativismo judicial que ameaçava a implementação do New Deal, seria necessária a mesma estratégia que deu origem a essa filosofia adjudicatória: a ação política sobre a formação da Suprema Corte. Essa foi a estratégia de Roosevelt.
Fortalecido pela reeleição para seu segundo mandato (eleições de 1936), o presidente investiu contra a estrutura conservadora da Suprema Corte, formulando o que ficou conhecido como Court-Packing Plan: ele propôs ao Congresso, em 5 de fevereiro de 1937, lei aumentando a composição da Corte para quinze juízes e estabelecendo a nomeação de um juiz adicional, até o máximo de seis, para cada outro que superasse a idade de 70 anos. Como era, na época, a mais velha Corte da história (a Old Court), Roosevelt poderia então nomear o limite de seis juízes de uma só vez e, assim, abarrotar a Suprema Corte com homens que apoiassem o New Deal e colocar ponto final no ativismo judicial conservador até então vigente. O plano não foi realizado exatamente como formulado, pois a proposta de “empacotar” a Corte, mesmo sendo a favor do New Deal, não teve apoio da população, do Congresso nem do seu próprio partido. Não obstante, Roosevelt, assim mesmo, alcançou a vitória…
Pouco mais de um mês depois de formulado o Court-Packing Plan, em uma série de decisões iniciada com West Coast Hotel Co. v. Parrish,[17]a Suprema Corte “capitulou em meio à ameaça de uma autêntica crise constitucional”[18] e superou as decisões anteriores contra o New Deal. Em função da mudança de orientação do juiz moderado Owen Roberts, que ficou conhecida como “the switch in time that saved nine”, formou-se nova maioria, desta feita a favor do New Deal, sendo abandonada a doutrina de laissez faire,negado o caráter absoluto da liberdade de contrato e reconhecida a possibilidade de regulação razoável pelo Estado. A Corte deixou de lado o ativismo conservador de Lochner e passou a ser deferente às medidas de reforma política e social do New Deal, sendo asseguradas, em definitivo, as transformações constitucionais pretendidas pela coalizão política dominante liderada por Roosevelt. [19]
Posteriormente, dentro da normalidade institucional de nomeação de Justices, Roosevelt assegurou que a Suprema Corte, como defendeu Robert Dahl, se tornasse “parte essencial da aliança política de governo”:[20] nos anos seguintes à aludida mudança de orientação, houve várias aposentadorias e mortes dos membros da Old Court e Roosevelt nomeou, entre 1937 e 1943, nada menos que oito novos juízes, todos defensores do New Deal e ligados ao Partido Democrata ou à sua administração. Ele ainda indicou um novo Chief Justice em 1941, Harlan Fisk Stone, um republicano liberal que já compunha a Corte desde 1925 e que sempre proferiu votos favoráveis ao New Deal. Com essas nomeações, Roosevelt tinha formado uma Suprema Corte orientada pelos princípios do New Deal (a New Deal Court) e o ativismo judicial conservador do tipo Lochner havia sido completamente extirpado.
Dizer que os nomeados por Roosevelt eram defensores dos princípios do New Deal não significa, contudo, que eram apenas deferentes às ações regulatórias do governo no campo econômico e social. Significa mais: que eram comprometidos com a promoção de direitos e liberdades básicas do homem. Em função desse compromisso, a Suprema Corte passou a dirigir suas preocupações à cláusula da equal protection of the laws, assumindo novo papel: em vez de defesa dos direitos de propriedade e liberdade de contrato, o “novo negócio” era a proteção dos direitos civis e da igualdade. Em suma, a estratégia de Roosevelt formou a base daquela que viria a ser a lendária Corte Warren dos anos 50 e 60, paradigma da living constitution e campeã da proteção das liberdades civis e da igualdade racial.[21] As ações de Roosevelt, portanto, moldaram, para além de seu próprio tempo, o lugar da Suprema Corte no constitucionalismo norte-americano.
-IV-
A abordagem descritiva, até aqui desenvolvida, tem importantes implicações normativas. Os conflitos relatados possuem aspectos distintos relevantes. O regime ditatorial de Vargas e o governo democrático de Roosevelt resultaram em constrições e reações muito diversas. As ações arbitrárias de Vargas subjugaram o Supremo; Roosevelt pleiteou ao Congresso transformar a composição da Suprema Corte de modo a torná-la mais responsiva às necessidades políticas e sociais contemporâneas, mas sem retirar a independência institucional da Corte. Por outro lado, ambas as disputas oferecem um ponto comum do qual relevante conclusão pode ser extraída: cortes constitucionais ou supremas, assim como seus comportamentos decisórios não podem ser explicados ou avaliados em isolamento, com distanciamento dos contextos políticos, históricos, ideológicos e institucionais condicionantes. O pensamento juriscêntrico apenas favorece a supremacia judicial.
As constrições irresistíveis de Vargas sobre o Supremo deixam clara a incapacidade não só das cortes, mas do próprio Direito em oferecer resistência a regimes autoritários. Nossa história de instabilidades políticas e de conflitos institucionais revela ter o Supremo até esboçado reações iniciais aos governos hostis, mas ou as decisões não eram obedecidas, ou o Tribunal era vilipendiado, ameaçado, atacado em sua estrutura e organização e, com isso, acabava recuando. Foi assim não só com Vargas, também com Floriano Peixoto na República Velha e com a Ditadura Militar. Nesses ambientes problematicamente autoritários, a Corte acabou, no final, submetendo-se a Chefes de Executivo que concentravam todo o poder decisório e absorviam todos os ônus políticos das decisões.[22] Daí a importância singular, para a independência e liberdade decisória dos Tribunais, de manter-se sempre viva a possibilidade de alternância de poder em democracias.
O exemplo negativo da Suprema Corte norte-americana em seu ataque ao New Deal ensina o quanto cortes podem ser nocivas a si mesmas e à estabilidade institucional em regimes democráticos quando, defendendo largas teorias políticas ou econômicas sem base clara e precisa nos textos constitucionais,[23] decidem contra programas políticos que gozam de amplo respaldo parlamentar e popular. Independência judicial não pode ser exercida sem responsabilidade institucional. Insulamento político não pode implicar indiferença decisória. Do ponto de vista normativo, não se trata apenas de preservar o capital de legitimidade das cortes, mas também de recusar a supremacia judicial. Constituições democráticas são projetos em contínua construção, de modo que o desenvolvimento dos significados constitucionais estruturantes e fundantes, para ser legítimo, deve ser realizado, em concerto, pelos poderes constituídos, incluídas as cortes, os movimentos políticos e sociais.[24]
Ambos os exemplos, por fim, revelam como ações políticas sobre a composição de cortes influenciam, para o bem ou para o mal, o padrão de comportamento judicial. Vargas, sem sujeitar-se a qualquer controle parlamentar, utilizou o poder de indicação de ministros para formar um Supremo que, embora intelectualmente brilhante, limitou-se a atuar como “correia de transmissão”, meramente legitimando muitas das arbitrariedades de seu governo. Roosevelt, por sua vez, utilizou o mecanismo para nomear juízes que, apesar de divididos quanto à prática adjudicatória mais ou menos ativista, compartilhavam a filosofia política de proteção e promoção de direitos fundamentais. Como afirma McMahon, Brown e todo o ativismo liberal da Corte Warren encontraram raízes nas decisões tomadas por Roosevelt ao enfrentar a Suprema Corte pela sobrevivência do New Deal.[25] Roosevelt, nos anos 30 e 40, pavimentou a estrada para os movimentos dos direitos civis dos anos 50 e 60.
Mecanismos institucionais de formação das cortes fazem, portanto, diferença, e mesmo no longo prazo. A importância do debate foi percebida apenas recentemente no Brasil, e não poderia ser diferente ante o nosso histórico de governos autoritários – a relevância política e social do Supremo é recente. Hoje, todavia, como são escolhidos os ministros do Tribunal deve importar e muito. Tendo em conta o elevado número de ministros nomeados pelo mesmo partido – o PT – nos últimos doze anos, e o fato de a Presidente Dilma poder indicar até 6 novos ministros no próximo mandato deram ao tema visibilidade inédita. As nomeações de Dilma foram, até aqui, muito positivas, mas não há plenas garantias que continuarão a ser assim. Por isso, os critérios de indicação devem ser amplamente discutidos e questionados nos meios políticos e pela sociedade civil, devendo todo o processo ser o mais transparente e dialético possível. Não podemos, como sugeriu ironicamente Dworkin em relação às nomeações feitas pelos Presidentes norte-americanos, simplesmente “cruzar os dedos”.[26]
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Carlos Alexandre de Azevedo Campos é mestre e doutorando em Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Professor de Direito Constitucional e Tributário da Universidade Candido Mendes e da Faculdade de Direto da UNIFLU. Assessor de Ministro do STF.
Notas:
[1] Sobre esses acontecimentos, cf. RODRIGUES, Lêda Boechat. História do Supremo Tribunal Federal. Tomo IV – Vol. I. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 31-33.
[2] COSTA, Emilia Viotti da. O Supremo Tribunal Federal e a Construção da Cidadania. 2ª ed. São Paulo: Ieje, 2007, p. 81.
[3] SARMENTO, Daniel. Por um Constitucionalismo Inclusivo: História Constitucional Brasileira, Teoria da Constituição e Direitos Fundamentais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 37.
[4] Por todos, cf. BARBI, Celso Agrícola. Evolução do Controle da Constitucionalidade das Leis no Brasil. Revista de Direito Público Vol. 4, São Paulo: RT, 1968, p. 39 et seq.
[5] A representação interventiva foi estabelecida no artigo 12, § 2º, da Constituição de 1934, segundo o qual o Procurador-Geral da República deveria submeter, originariamente, ao Supremo o exame de constitucionalidade de lei federal que decretasse intervenção nos Estados em razão de suas constituições ou leis não respeitarem os princípios constitucionais, ditos sensíveis. A representação é tida como o embrião da ação direta de inconstitucionalidade no Brasil.
[6] Houve os que aplaudiram a medida em função da restrição sobre a “supremacia judicial”. Alfredo Buzaid, Da Ação Direta de Declaração de Inconstitucionalidade no Direito Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1958, p. 32, referiu-se a ela como tendo “a virtude de devolver ao Parlamento a competência para apreciar a conveniência de manter a lei declarada inconstitucional”, garantindo assim o “equilíbrio dos poderes” à medida que afastava a “supremacia do judiciário”. Lúcio Bittencourt, O Controle Jurisdicional da Constitucionalidade das Leis. Rio de Janeiro: Forense, 1949, p. 30, falou em pretensão da Constituição em “atenuar os inconvenientes da supremacia do Judiciário”.
[7] Foram sete nomeações durante o Governo Provisório e quatorze durante o Estado Novo.
[8] Decisões como a do fechamento da Aliança Nacional Libertadora (ANL) em 1935: STF – Pleno, MS 111, Rel. Min. Arthur Ribeiro, j. 21/08/1935; “caso João Mangabeira”: STF – Pleno, HC 26.178, Rel. Min. Carvalho Mourão, j. 20/07/1936; o “caso Olga Benário”: STF – Pleno, HC 26.155, Rel. Min. Bento de Faria, j. 17/06/1936 reforçam essa ideia. Cf. RODRIGUES, Lêda Boechat. História do Supremo Tribunal Federal. Tomo IV – Vol. I. Op. cit., p. 65-69.
[9] Schechter Poultry Corp. v. United States, 295 U. S. 495 (1935); Louisville Joint Stock Land Bank v. Radford 295 U.S. 555 (1935); Humphrey’s Executor v. United States 295 U.S. 602 (1935).
[10] Em 1935, a Suprema Corte possuía uma sólida base conservadora, composta por quatro juízes conhecidos como os “Four Horsemen”: Willis Van Devanter, James McReynolds, George Sutherland e Pierce Butler. No extremo oposto, havia uma minoria liberal composta por três dos mais notáveis juízes da história da Suprema Corte: Louis Brandeis, Harlan Fisk Stone e Benjamin Cardozo. O Chief Justice Charles Evans Hugues, outro notável juiz, e Owen Roberts eram considerados moderados, mas, na maior parte das vezes, o primeiro se juntava à ala liberal e o segundo formava a maioria conservadora.
[11] 297 U.S. 1 (1936); 298 U.S. 238 (1936); 298 U.S. 513 (1936); 298 U.S. 587 (1936).
[12] 198 U.S. 45 (1905).
[13] 75 U.S. 603 (1870).
[14] Knox v. Lee, 79 U.S. 457 (1871).
[15] BURNS, James MacGrecor. Packing The Court. The Rise of Judicial Power and the Coming Crisis of the Supreme Court. New York: Penguin Press, 2009, p. 97.
[16] SHAPIRO, Martin; TRESOLINI, Rocco J. American Constitutional Law. 4ª ed. New York: Macmillian Publishing, 1975, p. 309-311.
[17] West Coast Hotel Co. v. Parrish, 300 U.S. 379 (1937); cf. também 300 U.S. 440 (1937), 300 U.S. 515 (1937), 301 U.S. 1 (1937), 301 U.S. 49 (1937), 301 U.S. 58 (1937), 301 U.S. 103 (1937), 301 U.S. 142 (1937), 301 U.S. 548 (1937), 301 U.S. 619 (1937).
[18] SUNSTEIN, Cass. The Second Bill of Rights. FDR’s Unfinished Revolution and Why We Need It More Than Ever. New York: Basic Books, 2004, p. 54.
[19] Sobre a afirmação/revolução do New Deal como um “momento constitucional”, cf. ACKERMAN, Bruce. We the People. Foundations. Cambridge: Harvard University Press, 1991, p. 47 et seq.
[20] DAHL, Robert. Decision-Making in a Democracy: The Supreme Court as a National Policy-Maker. Journal of Public Law Vol. 6 (2), 1957, p. 279-295.
[21] No fim dos anos sessenta, teve início, com Nixon e, depois, consolidada por Reagan, a reação do Partido Republicano ao chamado “ativismo judicial liberal” da Corte Warren, a qual foi conhecida como “Contrarrevolução Republicana”. Esses presidentes, assim como os Bushs, nomearam juízes conservadores para superar as decisões da Corte Warren. Não tiveram sucesso com a Corte Burger, mas alcançaram grandes vitórias com a Corte Rehnquist e, atualmente, com a Corte Roberts. Sobre esses embates históricos na Suprema Corte, cf. CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo. Dimensões do Ativismo Judicial do STF. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 60-97.
[22] Em contrapartida, o momento atual de ampla liberdade decisória do Supremo responde ao cenário contemporâneo de estabilidade institucional e de fragmentação do poder político e partidário. O avanço do ativismo judicial responde também ao empowerment formal e informal do Tribunal pelos poderes políticos que tanto formulam emendas constitucionais e leis voltadas a ampliar a jurisdição e os instrumentos de decisão da Corte, como “delegam” decisões sobre questões muito controvertidas, envolvidas em desacordos razoáveis e de alto custo político.
[23] Esta foi a acusação feita por Oliver Holmes em seu lendário voto vencido em Lochner. Segundo o grande jurista, a maioria decidiu baseada em “uma teoria econômica que não é acolhida por uma grande parte do país”, afirmando que “uma Constituição não é pretendida a incorporar uma teoria econômica particular, (…) [mas] é feita por pessoas de pontos de vista fundamentalmente divergentes”, o que deslegitima a Corte e legitima as maiorias políticas de cada tempo para decidir qual teoria econômica deve prevalecer em cada momento histórico. (198 U.S. 45, 75 [1905]).
[24] BALKIN, Jack M. Living Originalism. Cambridge: Harvard University Press, 2011, p. 231-232.
[25] McMAHON, K. J. Reconsidering Roosevelt on Race: How the Presidents Paved the Road to Brown. Chicago: Chicago University Press, 2004, p. 179.
[26] DWORKIN, Ronald. Justice for Hedgehogs. Cambridge: Harvard University Press, 2011, p. 399. Devo a lembrança dessa citação de Dworkin ao amigo Alonso Freire.