10.07.12
Supremo, transparência e jabuticaba
Em 2009, o município de São Paulo provocou o Supremo Tribunal Federal através de um pedido de suspensão de segurança, manejado contra liminares concedidas pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Um sindicato de professores impetrou mandados de segurança para evitar a publicação da folha de pagamento de servidores municipais, o que seria feito com fundamento na Lei Municipal n° 14.720/08 e no Decreto Municipal n° 50.070/08. O obstáculo alegado para tentar impedir a publicidade destas informações era que, no juízo de ponderação entre o princípio da publicidade e a preservação da intimidade e da vida privada dos servidores, prevaleceria a última.
Não foi esse o entendimento do então presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Gilmar Mendes, que acolheu o pedido do município de São Paulo, concedendo a suspensão de segurança. Pela decisão, foi permitida a publicação na rede mundial de computadores da folha de pagamento paulistana. Na decisão monocrática, o ministro pontuou que havia uma liberdade de conformação constitucional quanto à forma como a Administração Pública concretiza o princípio da publicidade. Assim, não violaria a constitucional a divulgação do conteúdo de folha de pagamento de servidores, mesmo contendo os nomes destes (SS 3902, Relator Min. GILMAR MENDES, decisão monocrática, julgado em 08/07/2009, DJe-146 – 05/08/2009 – p. 955).
Em recurso ao Plenário, interposto pelo Sindicato, o Supremo Tribunal Federal manteve a decisão do ministro Gilmar Mendes, fazendo consignar o ministro Ayres Britto na ementa do julgamento que não cabia “falar de intimidade ou de vida privada, pois os dados objeto da divulgação em causa dizem respeito a agentes públicos enquanto agentes públicos mesmos”. Foi dito mais, na ementa, que a “prevalência do princípio da publicidade administrativa outra coisa não é senão um dos mais altaneiros modos de concretizar a República enquanto forma de governo” (STF – SS 3902 AgR-segundo, Relator Min. AYRES BRITTO, Tribunal Pleno, julgado em 09/06/2011, DJe-189 – 03-10-2011, p. 55).
Em 18 de novembro de 2011, foi sancionada e publicada a Lei n° 12.527/11, sendo conhecida como Lei de Acesso à Informação, e que entraria em vigor seis meses depois. Por ocasião do começo de vigência desta lei, e no início do mandato do ministro Ayres Britto na Presidência do STF, o Tribunal se reuniu em sessão administrativa, deliberando à unanimidade por “divulgar na internet a remuneração paga a cada um dos ministros (ativos e aposentados) bem como de seus servidores, ativos e inativos, além de pensionistas”, como informou matéria veiculada no site oficial, em 22 de maio de 2012. Seria garantida a transparência no controle dos gastos públicos.
Dando cumprimento à deliberação dos ministros, foi anunciado oficialmente, no dia 3/7/2012, que estavam “disponíveis, no portal do Supremo Tribunal Federal (STF) na internet, as informações referentes aos subsídios dos ministros ativos e aposentados e também aos vencimentos dos servidores da Corte” (leia matéria aqui). O Tribunal nada mais fazia que concretizar a interpretação constitucional por si afirmada na Suspensão de Segurança n° 3902, primeiramente por decisão monocrática do ministro Gilmar Mendes, em 2009, e posteriormente por decisão colegiada, quando da confirmação desta em julgamento de agravo regimental. Somou-se a isso a circunstância de se ter uma lei ordinária federal tornando ainda mais efetivo o princípio da publicidade.
Mas, três dias depois de anunciar a divulgação na rede mundial da sua folha de pagamento, nesta incluídos os próprios ministros da Corte, foi divulgada nota afirmando:
Após ser comunicado formalmente da decisão determinando que fossem retiradas do ar informações sobre ‘os rendimentos dos Servidores Públicos Federais, no âmbito dos três Poderes da República, de forma individualizada’, o Supremo Tribunal Federal (STF) suspendeu, nesta sexta-feira (6), a divulgação da folha de pagamento de pessoal na sua página oficial da internet.
A divulgação dos rendimentos no site do STF entrou no ar no último dia 3. No mesmo dia, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) decidiu que os tribunais do país devem publicar em suas páginas informações sobre a remuneração de magistrados e servidores, indicando o nome, o cargo que ocupam e os valores recebidos no mês, nos moldes do sistema adotado pelo STF.
Assim que recebeu a comunicação da decisão do Juiz Federal da 22ª Vara da Seção Judiciária do Distrito Federal no final da tarde desta sexta-feira (6), o STF deu imediato cumprimento à ordem judicial e tirou do ar a página com a divulgação da folha de pagamento dos servidores e ministros da Casa.
É indiscutível que a Administração Pública do Supremo Tribunal Federal deva obediência às determinações judiciais, não sendo crível fosse uma decisão judicial desrespeitada pelas instâncias administrativas. E se afirma isso, não obstante a decisão judicial em questão não traduza a interpretação constitucional conferida pelo STF à matéria, em outro caso concreto, e em sede administrativa, pois concluíra a ponderação de valores de forma absolutamente antagônica à esta. Mas é uma decisão judicial, que deve ser cumprida.
O fato de se constatar que agiu corretamente a Administração Pública do STF ao atender o comando expresso de uma determinação judicial não afasta a percepção de que se trata de uma situação anômala. Não obstante seja possível, em tese, que essa circunstância fática ocorra em outros sistemas judiciais, só poderia ocorrer no Brasil um caso concreto em que um juiz federal de primeiro grau de jurisdição, no piso da estrutura judiciária, tenha contraordenado, ainda que indiretamente, uma deliberação tomada pela unanimidade dos ministros do Supremo Tribunal Federal, no topo da estrutura judiciária, e responsável precípuo pela guarda da Constituição.
Eis mais uma jabuticaba, que só se encontra no Brasil.
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RODRIGO PIRES FERREIRA LAGO é advogado, conselheiro seccional e presidente da Comissão de Estudos Constitucionais da OAB/MA. É membro do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), fundador e articulista do Os Constitucionalistas. Siga o autor no Twitter e no Facebook.
Foto: Carlos Humberto/SCO/STF.
Rodrigo, boa sacada essa da “jabuticaba”. Mas acho que o viés da originalidade tupiniquim é outro. Nos países de onde buscamos inspiração, as Cortes não se sentam para decidir administrativamente uma questão como essa. É mesmo matéria para um juiz federal decidir. Nosso “autogoverno” dos poderes é que leva a questões como essa. Não se trata bem de hierarquia, mas sim a instâncias de competência administrativa que, no Brasil, são outorgadas ao Judiciário.
De qualquer forma, é mesmo uma jabuticaba… rsrsrs
Bom texto!
RESPOSTA: Eis a originalidade do sistema nacional. Temos os ministros decidindo na via adminsitrativa. E estas decisões administrativas, exceto pela via do mandado de segurança, são impugnadas judicialmente (porque não se pode negar o acesso ao Judiciário) perante o juízo de primeira instância. Como você bem observou, eis aí a jabuticaba.
Como é uma jabuticaba, se o próprio autor admite a chance de que aconteça em outros países? Aliás, quem garante que não aconteceu? O artigo nem menciona se foi feita, ou não, uma pesquisa a respeito!
RESPOSTA: Rafael, obrigado pela leitura e pela crítica. Nada garante que não aconteceu em outros países, mas acompanho o Direito Constitucional comparado e nunca ouvi algo semelhante, de um juiz federal desautorizar uma deliberação plenária, unânime, da Corte Constitucional. Ah, acredito que ficou claro que o texto não é um artigo científico, bastando ver que não há referências, menos ainda são seguidas as regras da ABNT. Se uma situação semelhante tiver ocorrido em outra Corte Constitucional, por favor, apresente o caso, que entrego o argumento, e revogo a jabuticaba.
Bom texto, mas discordo com a conclusão.
Não vejo como correta a decisão do STF, ou da “Administração Pública do STF”, isso, indiretamente, enfraquece a força da Constituição: uma decisão unânime e definitiva do STF sendo descumprida por um magistrado de primeiro grau?.
Há alguma espécie de erro aqui, alguma…
Por favor: alguém chame o Gilmar com a sua tese da “obediência das decisões definitivas do STF…
RESPOSTA: Dentro do nosso sistema, não há nada propriamente errado. A decisão do STF na SS valeria apenas para São Paulo, e sobre o aspecto da legislação estadual. Quanto a segunda decisão, foi tomada na esfera administrativa, não se podendo negar o acesso ao Judiciário. E no caso, não há previsão de foro em razão da matéria também afetar uma decisão administrativa do STF. Mas, por prudência, deveria o juiz ter decidido, ao menos no juízo liminar, conforme a orientação jurisprudencial do STF. Deixava a sua livre convicção agir no momento da sentença, sem a concessão de antecipação de tutela, de modo a evitar a produção imediata de efeitos de uma decisão contrária a interpretação constitucional do STF.
Pelo que entendi, o debate não versa sobre a atuação do STF em sua função atípica de administrar.. Esse é um ponto do caso, mas não o principal.
O que se questiona, primordialmente, é o fato de o STF já ter dado decisão expressa no sentido da viabilidade da divulgação dos salários. A deliberação recente dos ministros a favor da divulgação reforça (mas, claro, não é jurisprudência) que muito provavelmente o STF vai reformar as decisões da JF do DF e do TRF1 (aliás, hoje foi protocolado no STF o recurso da AGU).
Volta-se ao debate da transcendência dos motivos determinantes, sendo a polêmica acentuada com o aspecto político da questão.
Corrijam-se se interpretei errado o post do autor.
RESPOSTA: Caio, data venia, não há no caso a transcendência dos motivos determinantes, porque a questão julgada anteriormente era uma suspensão de segurança. Além do juízo sobre a questão de fundo não ser exauriente, não há efeito vinculante algum a se permitir a transcedência destes efeitos para situações diversas. Fosse uma ADC contra uma lei paulista (estadual), poder-se-ia cogitar da transcedência para leis semelhantes de outros estados ou mesmo leis nacionais, mas o julgamento foi em SS. Entretanto, é possível invocar o famoso Caso Mira Estrela e a redução do número de vereadores, com a declaração definitiva e erga omnes, por via indireta, de inconstitucionalidade de quase todas as leis orgânicas municipais através de uma única ação civil pública, voltada contra uma lei orgânica específica. Enfim, melhor não lembrarmos de Mira Estrela.
Só que a SS não possui efeito vinculante. A medida refletiu um entendimento do stf numa dada composção e num caso concreto. Por enquanto, não há ligação sistemática do juiz federal e de qq decisão das cortes superiores. Pode o JF agiu corretamente em sua decisão, pois, para existir a tal divulgação só faltou um elemento: a lei, ora a lei, diletos advogados !!! Tudo mais é oba oba e cortina de fumaça num estado brasileiro, ainda opaco na média, mas que com a LAI avança bastante !!!! Comecemos, então, pelos gastos da Casa Civil da Presidente, com seu CPG estranhamento sigiloso… Portanto, há muito que avançar… Democracia, é isso, dá o maior trabalho, mas nem sempre está de acordo com o que achamos que deveria ser…
RESPOSTA: Marco, a falta de efeito vinculante para as decisões em SS foi o que sustentei no comentário ao Caio. Quanto ao mais, não acho prudente um juiz decidir contra a juriprudência e o posicionamento do STf, especialmente quando a questão é resolvida de forma unânime, mesmo que não tenha efeito juridicamente vinculante. De toda sorte, o juiz não errou, do ponto de vista jurídico, aplicando livremente o seu convencimento.
Rectiu: o efeito vinculante não se estende a qq decisão do STF, entenda-se !!!!
RECTIUS: tô errando muito, pô !!!!
Marco Antonio,
Sim, não existe efeito vinculante, tanto que citei a famigerada polêmica com a teoria da transcendência, do Gilmar. Até porque, se houvesse, o STF já teria julgado em um minuto uma Reclamação e acabado com a polêmica.
De qualquer modo, discordo quando diz que a decisão na SS reflete uma visão “numa dada composição e num caso concreto”. Parece-me que esta decisão paradigma (com fundamentos idênticos) é muito recente, insuficiente de ser superada (e, afinal, lembre-se, como um dado, que ela foi corroborada pela decisão administrativa dos Ministros favorável a divulgação dos salários na Corte).
Não se entenda que estou aqui defendendo o efeito vinculante, tal como proposto pelo Gilmar Mendes, mas creio que devemos pensar em uma prestação jurisdicional mais racional, e valorizar a jurisprudência dos tribunais superiores é útil nessa empreitada, principalmente em situações politicamente delicadas, como é o caso ora tratado.
E também creio não ser essa controvérsia originária de uma “jabuticaba”, a discussão sobre os limites do controle difuso é global e em países com os mais variados modelos de controle de constitucionalidade.
Ora, o caso aqui exposto não aborda nada diferente disso. A decisão, em sede administrativa, não foi tomada só pelo Supremo, foi também pelo Executivo Federal, e não há nenhum óbice, a princípio, ao controle da juridicidade desses atos por um juiz de 1o grau.
No máximo, pode-se dizer que é uma situação anômala (como disse o articulista), mas se não fosse assim, teríamos duas situações ainda mais anômalas: 1) um Judiciário que não exerce a função atípica de administrar; ou, 2) atribuir força de decisão judicial aos atos administrativos do Judiciário na sua função como administrador.
Sds,
Caio.
A questão não é de força vinculante de deliberações administrativas. É apenas admitir que uma decisão jurisdicional de 1º grau venha atingir ou não uma decisão administrativa do STF. É só isso. Um Juiz Federal pode determinar a política “interna corporis” do STF? É, e não venhamos dizer que não se trata de política “interna corporis” isso, porque é.
Parece-me, d.m.v, que o magistrado não está juridicamente errado, mas tenho dificuldades de digerir a ingerência da decisão singular no STF, mormente quando tomada (pelo STF) à unanimidade.
Nesse ponto não há certo ou errado; há esquisitiçe elevada à décima potência.
O incidente exemplifica bem a falta de coesão no Judiciário e no cenário jurídico em geral. Não deixa de ser uma evidência, como diz o L. Streck, do estado de natureza interpretativo em que o Brasil está metido. Em sede liminar, como o autor já ressaltou nos comentários, seria a bem da unidade e segurança que se espera da jurisdição o magistrado ter decidido conforme o entendimento já manifestado pela Corte Superior em um precedente e pelo próprio povo, detentor do poder político, nas Casas Legislativas. É mais uma questão de bom senso, uma valoração política e sistemática das coisas, vá lá. Não me parece razoável que um entendimento perfunctório de um juiz de primeiro grau, apressadamente, antes do contraditório e tudo mais, derrogue a decisão e senso de centenas de parlamentares, do Chefe do Executivo e dos próprios ministros do STF, i. e., das cabeças Três Poderes.