14.09.13
Questão de direito
O processo da ação penal 470 (mensalão) é complexo e controvertido, dada a quantidade e qualidade das pessoas envolvidas. Sua forte carga política produz visões emotivas e até apaixonadas, incompatíveis com um juízo de valor objetivo. Difícil saber se as condenações foram justas, quando não se tem acesso aos autos do processo.
Por isso, só entro nesse cipoal agora porque se trata apenas de questão de Direito, quanto a saber se cabem ou não embargos infringentes. Um pouco de história pode ajudar solucionar a dúvida.
A Constituição de 1969 dava competência ao Supremo Tribunal Federal para regular, em seu regimento interno, o processo e julgamento dos feitos de sua competência originária, o que ele fez no seu título IX, incluindo os embargos infringentes, quando existirem, no mínimo, quatro votos divergentes (art. 333, parágrafo único).
A Constituição de 1988 não repetiu essa competência, daí a dúvida se assim mesmo ela recepcionou aqueles dispositivos do regimento. O próprio Supremo admitiu essa recepção, pois continuou a aplicar aqueles dispositivos regimentais.
A fundamentação é simples. A Constituição dá ao Supremo a competência originária para processar e julgar infrações penais de certos agentes políticos (art. 102, I, b e c). Quem dá os fins dá os meios, tal a teoria dos poderes implícitos. Os meios à disposição eram as regras do regimento interno, até que viesse uma lei disciplinando a matéria.
Aí é que entra a lei nº 8.038/1990, que disciplinou os processos de competência originária do Supremo, entre os quais o da ação penal originária. Daí a controvérsia sobre se essa lei revogou ou não a previsão regimental dos embargos infringentes. Expressamente não revogou, porque lei revoga lei, não normas infra legais, como as de um regimento. A questão se resolve pela relação de compatibilidade.
Há quem entenda que não há compatibilidade porque não cabe ao regimento disciplinar matéria processual, quando não previsto expressamente na Constituição. É certo. Mas aquela lei não regulou inteiramente o processo da ação penal originária. Só o fez até a instrução, finda a qual o Tribunal procederá ao julgamento, “na forma determinada pelo regimento interno” (artigo 12). Logo, se entre essas “formas” está a previsão dos embargos infringentes, não há como entendê-los extintos, porque, por essa remissão, eles se tornaram reconhecidos e assumidos pela própria lei.
Além do mais, a embasar esse entendimento existe o princípio da ampla defesa com os meios e recursos a ela inerentes (art. 5º, LV).
A aceitação dos embargos infringentes pode gerar mudança do resultado do julgamento de algum dos crimes, especialmente tendo em vista a presença de dois novos ministros. Não parece possível a absolvição total, porque os embargos se atêm às divergências que são parciais. Poderá haver diminuição de pena. Contudo, o fato de ministros admitirem os embargos não significa necessariamente que os julgarão procedentes com alteração do mérito das condenações.
Enfim, a questão ainda não está resolvida, porque falta o voto de Celso de Mello, grande ministro, sério e competente. Sua história tende à aceitação dos embargos, pois sempre defendeu as garantias dos acusados. Seu voto, qualquer que seja, terá grande repercussão política. Ele sabe disso, mas não teme.
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José Afonso da Silva, 88, constitucionalista, é professor aposentado da Faculdade de Direito da USP. Foi secretário da Segurança Pública (governo Mário Covas). É autor de “Curso de Direito Constitucional Positivo” e “Aplicabilidade das Normas Constitucionais”.
Artigo publicado originalmente na Folha de S. Paulo, edição 14/9/2013.
Foto: Nelson Jr./SCO/STF.
Tergiversa o grande professor, e ele sabe disso. A lei nº 8.038 é uma lei específica, que se sobrepõe à genérica, no caso o Regimento Interno do STF. E a tergiversação do ilustre professor verifica-se justamente nesse aspecto – se a Constituição de 1988 recepcionou o aludido Regimento, o recepcionou como norma jurídica, portanto, lei.
Como lei, dela foi revogado o dispositivo referente aos Embargos Infringentes, posto que não previstos naquela.
Como de costume o Prof. José Afonso foi preciso e claro. Ótimo.
O Prof. José Afonso é um grande constitucionalista, mas, neste caso ele errou! Todos nós aprendemos sobre a hierarquia das leis. Então o Regimento do STF não pode sobrepor-se a uma lei, isto é fato.
Eu, como simples mortal, acho que a pizza estar esquentando. A JUSTIÇA BRASILEIRA é uma mixórdia. Sempre atuou a serviço do capital e, agora, escancarou sem pudor, sem ombridade, sem ética.
Nossos magistrados, cada vez mais, nos decepcionam, nos envergonham e nos agridem. O problema do Brasil deixou de ser político. O maior entrave do país são: a Justiça viciada e as Leis obsoletas e não cumpridas.
Os comentaristas Paulo de tarso e José roozevelt, aparentemente, comentaram sem ler o artigo, uma vez que o artigo não fala da recepção ou não do regimento interno, e sim do fato de a própria lei prever o julgamento “na forma determinada no regimento interno”. Logo…
Está clara, observada a tramitação da lei 8.038, que a intenção do legislador foi de manter os embargos infringentes. A extinção destes estava prevista no Projeto de Lei originário e foi recusada pelo parlamento.
Logo, mesmo frente aos princípios expostos de sobreposição da lei específica sobre a genérica, é clara a manutenção dos embargos no ordenamento jurídico, visto que a lei 8.038 se recusou a extinguí-los.
Pergunto-lhes: se a Lei 8.038/90 derrogou o regimento interno em toda a capitulação dos recursos em Ações Penais, significa dizer que os embargos de declaração e o agravo regimental também estariam imprevistos na legislação?
Muito pobre o artigo. Não considerou a interpretação sistemática, que deve ser aplicada, e já o foi em relação à revisão criminal e embargos infringentes em ADI…
Admiro o jurista José Afonso da Silva, mas sua análise nesse caso é simplória. Os argumentos em favor dos embargos infringentes não resistem a uma análise mais apurada, embora pense que não é isso que decidirá o julgamento, e sim aspectos puramente políticos, tanto de um lado quanto de outro.
A CF em seu art. 22, I, estabelece que a competência para legislar sobre processo é do Legislativo; em consequência, o Regimento Interno de qualquer tribunal, a partir de então, somente pode se ater a questões procedimentais.
É certo que a CF/88 recepcionou o RISTF como lei ordinária. Entretanto, existindo uma Lei elaborada posteriormente à ordem jurídica estabelecida pelo poder constituinte originário, em atendimento ao disposto no art. 22, I, resta claro que qualquer disposição relativa a Processo, constante do RISTF (e também do RISTJ), cai por terra por revogação tácita. O ordenamento jurídico deve ser interpretado como um todo, e não por partes. Não se pode admitir que tanto o RISTF quanto a Lei disponham sobre Processo, principalmente quando considerado que a própria CF/88 determinou que tal incumbência é de responsabilidade única do Poder Legislativo. Veja-se, nesse sentido, que o art. 12 da Lei 8.038/90, ao se referir que o julgamento se dará na “forma prevista no Regimento Interno”, obviamente está a se referir a procedimento, e não a Processo.
E não se diga que, assim, se desrespeita o direito à defesa e o devido processo legal, bem como o “princípio” (sic) do duplo grau de jurisdição. Isto porque, de um lado, todos os atos criminosos foram praticados posteriormente à Lei que revogou parte do Regimento (aplicando-se-lhes, portanto, a lei vigente às respectivas datas) e, de outro, se trata de julgamento na mais alta corte do País, em razão de foro privilegiado (o que obviamente dispensa o duplo grau).
De mais a mais, é importante lembrar toda a teleologia inerente aos próprios embargos infringentes: tal expediente processual somente possui lógica e utilidade quando, partindo de uma decisão não unânime de algum colegiado, passa-se a julgar o processo perante um órgão maior (o Plenário, por exemplo), de composição distinta daquele que julgou por primeiro. Tal circunstância, como se sabe, não possui mais aplicação atualmente no STF (ao contrário da época em que editado o seu Regimento Interno), o que explicita mais um o absurdo jurídico que de interpretação errônea resultará.
Lúcida análise. Quem se refere a hierarquia entre as normas ignora os mais avançados estudos tendentes ao diálogo das fontes sempre em favor debilis. O Regimento coexiste com a Lei. Negar vigência aos Embargos Infringentes quando o STF atua como única instância é um evidente cerceamento do direito de defesa, que poderia ser objeto de ação perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos.
[…] Há quem entenda que não há compatibilidade porque não cabe ao regimento disciplinar matéria processual, quando não previsto expressamente na Constituição. É certo. Mas aquela lei não regulou inteiramente o processo da ação penal originária. Só o fez até a instrução, finda a qual o Tribunal procederá ao julgamento, “na forma determinada pelo regimento interno” (artigo 12). Logo, se entre essas “formas” está a previsão dos embargos infringentes, não há como entendê-los extintos, porque, por essa remissão, eles se tornaram reconhecidos e assumidos pela própria lei. (grifo nosso) (in http://www.osconstitucionalistas.com.br/questao-de-direito) […]