21.02.16
Presunção de inocência
Por Oscar Vilhena Vieira
A partir de que momento uma pessoa pode ser punida por um delito que lhe é atribuído? Essa questão, respondida pelo Supremo Tribunal Federal na última quarta-feira (17), tem gerado uma enorme polêmica nos meios jurídicos.
Conforme os parâmetros mais elementares do Estado de Direito, estabelecidos pela Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão, em 1789, uma pessoa somente pode ser considerada culpada depois de devidamente julgada e condenada. Antes disso, ela deve ser considerada inocente e tratada como tal.
Com a evolução do Estado de Direito, as constituições democráticas contemporâneas, assim como os tratados internacionais de direitos humanos, passaram a assegurar que não basta uma condenação. A pessoa deve ter o direito de ver seu caso revisto por um tribunal. Assim, só poderá ser considerada culpada após condenação por uma segunda instância. Trata-se da garantia do duplo grau de jurisdição.
A Constituição de 1988, no entanto, foi além desse parâmetro, ao estabelecer que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença condenatória” (artigo 5º., LVII). Não falou nada sobre “duplo grau de jurisdição”. O termo utilizado foi “trânsito em julgado”. O que significa uma decisão da qual não caiba mais recurso.
Como a Constituição previu a existência dos recursos especial e extraordinário, voltados a atacar decisões de segunda instância, que violem a lei ou a Constituição, o término do processo não se dá em segunda instância, mas apenas depois do julgamento dos recursos pelos tribunais superiores.
Foi essa a conclusão do Supremo em 2010 (HC 84.078). O resultado paradoxal, ironizam alguns, é que passou a ser mais fácil prender alguém provisoriamente (antes do julgamento) do que alguém já condenado (desde que haja recursos pendentes no STJ e no Supremo). A consequência dramática é que hoje mais de 40% de nossos presos sequer foram julgados!
Com o objetivo de corrigir essa distorção, o ministro Cezar Peluso encaminhou ao Congresso Nacional, em 2011, uma proposta de emenda que transformaria os recursos especial e extraordinário em ações rescisórias. O habeas corpus ficaria, evidentemente, preservado. Com isso pretendia deixar a Justiça brasileira mais ágil e reduzir a impunidade.
O Congresso nada fez. Contra essa omissão é que o Supremo parece ter se insurgido nesta semana. Para a maioria dos ministros, como os recursos especial e extraordinário, por definição legal, não permitem que os tribunais superiores rediscutam questões de fato e tampouco autorizam que as decisões de segundo grau sejam suspensas, nada impede que sejam executadas, ainda que provisoriamente.
Afinal, é assim que ocorre em grande parte das democracias contemporâneas. Por que deveria ser diferente no Brasil?
Parece sensato. Ocorre, porém, que a Constituição brasileira é diferente das demais. É o “trânsito em julgado” e não o “duplo grau” que estabelece o momento a partir do qual se pode executar uma sentença. É o que está escrito.
Não há dúvida de que a “benevolência” constitucional gera morosidade e favorece a impunidade. Corrigir a Constituição, no entanto, não é função do Supremo.
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Oscar Vilhena Vieira é professor da Direito GV.
Artigo publicado originalmente na Folha de S.Paulo, edição 20.02.2016.
Foto: Connor Tarter/Flickr.
Embora ligeiro, o texto coloca bem a questão. O problema é que, pelo nosso sistema, quem diz — afinal — o que diz a Constituição é o próprio STF. Logo, nessa decisão, ele não está corrigindo a CF, apenas usando a técnica do “como se”, para dizer que as sentenças penais condenatórias de colegiados de 2º grau são desde logo executáveis, “como se” fossem definitivas. Um retorno à teoria das ficções do velho Kelsen, com achegas de Vaihinger, fornece preciosos subsídios para dar suporte a essa “virada” hermenêutica.
O que mais se impressiona (ou decepciona) nesta decisão do STF é a pouca profundidade dos argumentos ou dos fundamentos invocados pelo ministros. Uma vez que a conclusão do julgado vai de encontro ao que se pode extrair da literalidade do dispositivo constitucional, era de se esperar uma hermenêutica mais sólida do que os meros argumentos retóricos e de apelo popular.
Ora, dizer que há pouco êxito dos recursos extraordinários não convence, pois há análises estatísticas que mostram uma quantitativo não desprezível de recursos providos. Mas ainda que isto fosse verdade, penso que é justamente para preservar os casos minoritários de desfechos injustos e trágicos que existem as garantias. Até onde pode nos levar este raciocínio estatístico? Se formos analisar, o percentual de sentenças absolutórias dos juízes de 1o. grau são minoritários, será que isto justificaria, numa extensão do raciocínio, ampliar a restrição de liberdade no curso dos processos pois estes quase sempre vão resultar em condenação mesmo?