16.07.13
O dilema dos siameses: qual a decisão justa?
Recentemente, o Brasil conheceu a pernambucana Karine Medeiros, mãe de Davi e Saulo, gêmeos siameses unidos pelo fígado, nascidos no Recife/PE. O caso poderia ser só mais uma raridade da vida humana entregue aos cuidados da medicina, não fosse uma tese adotada, unanimemente, pela 6ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em agosto de 2010, que diz: é possível a realização, pelos médicos, de aborto de gêmeos siameses.
O caso que ensejou a posição acima tratava dos filhos de uma enfermeira de Mogi das Cruzes, unidos pelo tórax e abdômen, que compartilhavam o mesmo coração, bexiga, rins, fígado e cordão umbilical, tendo, eles, somente dois membros inferiores. Não havia chance de correção cirúrgica ou qualquer possibilidade de vida fora do útero. A decisão comparou a gravidez de gêmeos siameses, sem chance de sobreviver, ao estupro: “se o aborto humanitário [quando a mãe é vítima de estupro] tem como fundamento a preocupação com os sentimentos da mãe, porque não admitir esse cuidado no caso de feto com anomalia sem possibilidade de vida extrauterina, mantendo a gestante subjugada a tamanho dissabor?” – registrou.
Essa posição ilustra um fato sobre o qual o Supremo Tribunal Federal deverá se debruçar: o Judiciário, invocando o precedente sobre fetos anencéfalos, está autorizando o aborto de fetos portadores das mais variadas patologias, diferentes da anencefalia, tais como: síndrome de Patau (Rio Grande do Sul, 2003), síndrome holoprosencefálica (Rio Grande do Sul, 2009), osteogênese imperfeita (Minas Gerais, 2008), síndrome de Edwards (Rio de Janeiro, 2010, negando o pedido), holoprosencefalia (Rio de Janeiro, 2011) e outras. Esse quadro traz à tona uma pergunta: estamos diante do avanço da ciência médica, do emprego de raciocínios utilitaristas, ou resgatando princípios de sociedades eugênicas? Antes de responder, vamos retomar a questão dos siameses.
No Maranhão, nasceram, em janeiro desse ano, gêmeas siamesas unidas pelo coração e pelo fígado. A mãe pleiteou à Justiça a possibilidade de fazer o aborto. O pedido foi negado. Em 22 de dezembro de 2012, em Amparo do São Francisco, a 116 km de Aracaju/SE, nasceram siamesas, que acabaram falecendo 19 dias depois. Em 2009, nasceram Arthur e Heitor, ligados pelo tórax, abdômen, bacia e sistema urológico. Eles têm genitália única, um fígado e três pernas. A mãe, Eliana Ledo Rocha, se prepara para retornar ao Hospital Materno Infantil de Goiânia em agosto desse ano, para acompanhar a cirurgia de separação dos gêmeos.
Em 1999 nasceram Larissa e Lorrayne, unidas pelo abdômen e pela pelve. Elas compartilhavam rins, estômago, bexiga, intestino grosso, uretra, vagina e ânus. Um ano depois, a separação foi feita no Hospital Materno Infantil de Goiânia. A primeira a deixar o centro cirúrgico foi Larrissa. Ela ficou com intestino normal, bexiga, útero, ovário, ânus, vagina e uretra. Lorrayne ficou com a bexiga logo abaixo da pelve e teve o intestino exteriorizado por uma abertura no abdômen. Cada uma passou a ter uma perna. Larissa teve uma infância normal. Tornou-se uma adolescente vaidosa que freqüenta a escola regularmente. Lorrayne, que tinha paralisia cerebral, morreu sete anos após a cirurgia.
Após conhecermos esses casos, podemos nos questionar: Quanto aos gêmeos siameses, quais hipóteses constituem exceções justas para afastarmos o direito à vida? Qual o valor da vida e da morte? Como resolver esse dilema?
A respeito do aborto de siameses sem chance de vida fora do útero, o Parecer Consulta nº 12/2012 (Conselheira Terezinha de Jesus de Oliveira Carvalho), do Conselho Regional de Medicina do Pará, diz que “não há previsão legal para a interrupção da gravidez de gêmeos siameses, a menos que se enquadre em uma das três situações: risco de vida para a gestante, gestação resultante de estupro ou que o feto seja portador de anencefalia”. A única possibilidade seria “através de autorização judicial em casos de impossibilidade de sobrevivência dos fetos”.
Outra posição oficial da comunidade médica vem da Consulta nº 88.032/01 (Relator: Conselheiro Marco Segre), do Conselho Regional de Medicina de São Paulo, que afirma ser vedado ao médico apenas realizar atos tipificados como crimes, “como produzir a morte dos dois gêmeos”. O médico deve intervir “até mesmo não preservando a vida de um dos xifópagos, quando estiver cientificamente patente que a manutenção da vida de um trará irremediavelmente a morte do outro”. Segundo o documento: “deixa-se de preservar a vida do gêmeo para o qual já não se vêem possibilidades de sobrevivência, na tentativa de que esta atuação não leve, também o outro, ao desfecho fatal”. A conclusão é: “Em caso de risco de vida pela manutenção da união dos irmãos, o estado de necessidade pode ser invocado, como respaldo legal para a realização da cirurgia, desde que demonstrados, tecnicamente, pelo médico, o perigo e a iminência do risco de vida, de um ou dos dois irmãos”.
Quanto ao parecer sobre a necessidade de autorização judicial para a realização de aborto em mães de gêmeos siameses sem chance de vida extrauterina, o que se vê é a ampliação, pelo Judiciário, do raciocínio empregado pelo Supremo Tribunal Federal ao decidir pela possibilidade de realização do procedimento quando se tratar de fetos sem cérebros. Essa ampliação precisa passar pela exposição pública para que a sociedade saiba que, no Brasil, estão sendo criadas novas exceções ao direito à vida.
Quanto à segunda manifestação, a situação é mais complexa. É possível argumentar que não se pode delegar a alguém o direito de escolher quem irá morrer para que outra pessoa sobreviva. Como estamos falando de crianças irmãs gêmeas, isso assume contornos dramáticos. O certo é não matar inocentes. Independente de onde parta a decisão – se dos pais, dos médicos ou do Judiciário -, dizer que a garotinha A deve morrer para que B possa viver, soa calculista. Aprendemos que ninguém deve matar, por mais meritório que seja esse ato. Contrariar isso pode descambar para situações sem compaixão. Se for possível proceder dessa forma, também seria possível defender que, se eu vejo um carro descontrolado indo em direção a uma parada de ônibus repleta de trabalhadores, posso atirar contra o carro um doente terminal, visando impedir que o carro mate aquelas pessoas. Pelo cálculo, matei um para salvar vários outros. Pensar assim é cruel, porque desconsidera o valor que a vida do doente possui intrinsecamente.
Todavia, pode-se sustentar que é possível escolher entre salvar um bebê ou deixar ambos morrerem. É claro que é melhor salvar pelo menos um deles. A realização da operação não mataria A. Ela seria simplesmente separada da irmã e, depois, morreria, não por ser esta a intenção, mas porque o seu próprio corpo não poderia manter a sua vida. Além disso, ela contaria com todo o suporte da ciência médica para minimizar suas dores e tentar evitar a sua morte. Pelo Código Penal, é permitido, diante da possibilidade de morte da mãe, em razão do risco involuntário que o nascimento do filho lhe traz, privar a vida deste para garantir a sobrevivência daquela. Se a legislação autoriza privar a vida do feto, para salvar a vida da mãe, porque não seria possível privar a vida de um irmão, para salvar a do outro? Esse seria um argumento.
Tudo o que a pernambucana Karine Medeiros, mãe de Davi e Saulo, os gêmeos siameses nascidos no Recife/PE, pediu, em seus apelos na TV, foi a ajuda das pessoas com doações de fraudas e alimento. Isso só é possível porque as crianças estão vivas. E elas só estão vivas porque não havia dúvida quanto à viabilidade delas após o parto. Caso contrário, a história poderia ser outra. Esses são pontos de discussão sustentados num e noutro sentido. O fato é que a bioética, certamente, deve retornar ao Plenário do Supremo Tribunal Federal em discussões cada vez mais desafiadoras. Todos nós estamos vigilantes.
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Saul Tourinho Leal é advogado e professor de Direito Constitucional.
Foto: Calmtwood.
Assunto extremamente complexo. Em princípio acho que não cabe ao judiciário tal “decisão”. O conceito de vida não tem definição nem na comunidade médica,competente para tal, e o Judiciário quer mesmo definir tal conceito? Complicadissimo…