17.03.10
O BBB da Rede Globo, o princípio da dignidade da pessoa humana e o acesso à cultura
RODRIGO PIRES FERREIRA LAGO
e RODRIGO FRANCELINO
Um dos fundamentos da República Federativa do Brasil é a proteção ao princípio da dignidade da pessoa humana. Está lá no artigo 1°, III, da Constituição da República/88. É uma das bases do nosso Estado Democrático de Direito, ao lado de quatro outros importantes pilares, como a soberania popular, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político. Essa é a razão de ser de nosso Estado – para isso ele foi reconstituído. Este princípio, inclusive, já era contemplado em textos constitucionais pretéritos.
O Big Brother Brasil, da Rede Globo de Televisão, registra enormes índices de audiência, e em 2010 comemora a sua décima edição anual. Nele são transmitidas imagens ao vivo de uma mansão instalada nos estúdios da emissora de televisão carioca, onde pessoas disputam durante três meses um prêmio milionário. E o que tem a ver esse reality show, como é chamado esse tipo de atração, com o princípio da dignidade da pessoa humana? É isso que este texto pretende demonstrar.
Qualquer brasileiro pôde assistir outro dia, em horário nobre, dois compatriotas seus sendo humilhados ao vivo, em mais uma degradante brincadeira do programa. Trajando fantasias de pipoca (é isso mesmo!), eles pulavam em panelas gigantes num jardim, debaixo de uma forte chuva que inundava o Rio de Janeiro – local sede do estúdio global. A atividade era obrigatória, e se não fosse cumprida os levaria ao temível paredão. Nada havia de cultural, educativo, artístico ou informativo – nem mesmo se tratava de uma apresentação artística de palhaços, como em um circo. Não era um picadeiro. Era a humilhação pela humilhação. O horrendo espetáculo, de degradação de humanos, infelizmente, desperta curiosidade em brasileiros, muitos chegando a adquirir pacotes nos canais de televisão por assinatura apenas para assistir em tempo integral as atividades dentro da “casa mais vigiada do Brasil”, como o cenário é descrito em propagandas da própria Rede Globo de Televisão.
Pesquisando sobre a atração global na internet, e com auxílio de alguns amigos que se prestam a assisti-lá, verificamos que essa é apenas uma das muitas provas de semelhante sofrimento físico e psicológico imposto pela direção aos candidatos a milionários e famosos que já participaram do programa. Nesta mesma décima edição do programa já houve uma prova em que os participantes tinham que se manter de pé sobre rolos, e de tempos em tempos uma cascata d´água caía sobre as suas cabeças. Dizem que o participante vencedor resistiu durante quinze horas a tamanha tortura. Também consta relatos de que o vencedor de uma dessas provas, certa vez, desmaiou, após ficar mais de um dia no sol e na chuva, sem comer e sem beber – e sem também poder realizar as suas necessidades enquanto ser humano.
Apesar de todo esse quadro, jamais alguém questionou seriamente esse episódio degradante e inútil. Não se tem notícia de alguma contestação à forma de se conduzir o programa, menos ainda de como são tratadas as pessoas que dele participam. As pessoas se transformam em puros objetos, e os humanos viraram coisas. Na concepção do homem comum, aqueles participantes representam nada menos que imagens exibidas na televisão. Não são mais seres humanos. Não possuem mais dignidade. Ressalvadas as críticas normais, ninguém alega que isso em nada acresce à cultura popular, ou à educação de nosso povo. Nem se tenta impedir a continuação desses espetáculos – só este da Rede Globo já está na décima edição. Outras emissoras transmitem programas similares.
Imaginamos facilmente a submissão de seres humanos à práticas como essas. Seria possível, porém, que isso ocorresse com animais? Alguém permitiria que animais fossem obrigados a se submeter a essas provas denominadas de resistência? A sociedade permitiria, por exemplo, que um boi ficasse engaiolado durante mais de um dia, sem bebida e comida, e impedido de realizar as necessidades fisiológicas, para o puro deleite do público? Logo se instalaria às portas do PROJAC uma representação do Greenpeace ou protestos de alguma associação protetora dos animais, a fazer protestos e manifestações. A repercussão negativa seria tão grande que a própria Rede Globo trataria de interromper a atração e libertaria os animais dessas cruéis tarefas. Nem mesmo seria necessária alguma providência judicial. Antes que desmereçam a atuação destas instituições, deve-se elogiá-las, pelo mérito nas defesas dos animais irracionais. Talvez as associações constituídas em defesa de humanos precisasse aprender com elas os mesmos métodos.
Mas por que essa defesa não ocorre em relação aos homens? Afinal, a Constituição emprestou duplo reforço à sua dignidade, salvaguardando a da pessoa e a do humano, quando afirma ser fundamento da República Federativa do Brasil, e base do Estado Democrático de Direito, o princípio da dignidade da pessoa humana. A resposta vem rápida e fácil: enquanto os animais não pensam, e não podem opor resistências às crueldades, aos seres humanos bastaria a recusa. Se os próprios indivíduos, enquanto homens, aparentemente livres, permitem que outros ofendam a sua dignidade, por que terceiros os defenderiam?
Esquecendo a inércia do povo em geral, voltemos ao mérito. As emissoras de televisão, em suas programações, deveriam ter como princípios a “preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas” e a “promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive sua divulgação”. Muito mais que isso, devem ter “respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família”. Pelo menos é o que consta do texto da Constituição da República/88, em seu artigo 221, I, II e IV.
Será que esse tipo de exibição, e com pessoas humanas, como disse o Constituinte, em vexatória situação, segue respeitando os “valores éticos e sociais da pessoa e da família”? Fosse uma norma e se poderia dizer: o Big Brother Brasil é inconstitucional, por afrontar o disposto no artigo 221, IV, diretamente, e indiretamente, por omissão, os incisos I e II. Nem seria necessário o recurso cada vez mais comum ao direito fundamental da “dignidade da pessoa humana” – um verdadeiro leque aberto a um sem número de formulações que transforma qualquer coisa em inconstitucional.
Note-se que, para casos como esse, de grave violação à dignidade do ser humano, a Constituição admite até mesmo que uma lei federal estabeleça “meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem” destes programas que contrariam “o disposto no artigo 221”, conforme autoriza o artigo 220. Seria uma exceção ao direito a não censura? É provável que sim. Como se defender, nos termos da lei, senão proibindo a exibição deste tipo de programa?
Seria o caso, portanto, e em nome da ordem pública e da dignidade da pessoa humana, que o programa fosse proibido, haja vista que o indivíduo deve ser sujeito de Direito, e não objeto de Direito para ficar pulando como se fosse um pipoca, ou se esfregando como uma esponja em um prato gigante como se fosse uma coisa. É dever do Estado e da sociedade assegurar e restabelecer a dignidade de uma pessoa ainda que esta esteja voluntariamente se recusando a tanto. Com essa solução, nem se precisaria tratar do sensível tema da censura, pois bastaria impedir a submissão de seres humanos a atos indignos como esses, e não apenas impedir a sua transmissão pela televisão.
Além disso, haveria outra solução, que seria uma espécie de desapropriação. O cidadão pode perder o seu terreno, ou a sua pequena propriedade, se não a estiver usando para atender à finalidade social à que se destina. É o que autoriza o texto constitucional, em seu artigo 5°, XXIII e XXIV. Não seria possível aplicar esse dispositivo ao horário destinado a este tipo de programa? Que tal se o horário na grade de televisão, que pertence à emissora concessionária de serviço público de radiodifusão, fosse desapropriado pelo Estado, que dele se utilizaria para transmitir programas com fins educativos e culturais?
Não se trata, certamente, de proposta concreta. Mas que sirva para uma melhor reflexão. Esses espetáculos não seriam transmitidos, menos ainda em horário nobre, se não houvesse público. Em respeito à Constituição, e na omissão inconstitucional da União Federal, que cada brasileiro mude o canal de sua televisão quando dessas apresentações ofensivas à dignidade e decoro humano.
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RODRIGO PIRES FERREIRA LAGO é advogado, Conselheiro Seccional da OAB/MA, Presidente da Comissão de Estudos Constitucionais da OAB/MA, e fundador do site Os Constitucionalistas (www.osconstitucionalistas.com.br). Siga o autor no Twitter @rodlago e no Facebook.
Dr. Rodrigo,
Li, atentamente sua produção jurídica.
Compartilho a aflição, pois além da ponderação sobre a dignidade da pessoa humana há, ainda, um processo (de certo modo) silencioso que estimula um acentuado acriticismo.
Parabéns!
Bom dia Rodrigo Lago.
Excelente texto. Tenho certeza que em muitos, assim como em mim, há tempos existia uma vontade de bradar, reclamar, chamar a atenção para a futilidade dessa tendência – infelizmente, do mesmo modo que nos acostumamos com tais programas, nos acostumamos a achar que não adianta fazer nada.
Falta(va) reflexão, falta(va) atitude.
Obrigado.
Com o devido respeito, discordo do exposto. Como mesmo enfatizado no texto, a Constituição determina que haverá preferência a programas educativos, etc… Não impõe vedação a outros tipos de programas.
O simples fato de ser vexatório e humilhante não significa que o programa ofenda a dignidade da pessoa humana. Quem nunca brincou de evrdade ou consequência ou do jogo que quem perde paga uma prenda? As prendas não são, em geral, vexatórias e humilhantes?
No entanto, ninguém defende a proibição dessas brincadeiras.
As pessoas que estão no programa sabem antes de entrar que serão submetidas a provas vexatórias e humilhantes, mas ainda assim se dispõem a entrar.
Não acho que haja ofensa ao princípio da dignidade humana, são todos os participantes maiores e capazes, não estão lá obrigados a permanecer e ainda recebem um valor mensal para estarem naquela situação.
Abraços,
Pedro Henrique
Também discordo do texto. Quem se submete a fazer parte do programa sabe bem o que vai ter pela frente. Ninguém é forçado a fazer parte do BBB.
ABAIXO À CENSURA!!! A DITADURA ACABOU!! E MUITA GENTE LUTOU E MORREU POR ISSO!
Mais de 20 anos depois do fim da ditadura, é até compreensível que a fraca memória brasileira tente sustentar (jurídica e constitucionalmente) a volta da censura. Só para lembrar: Art. 220, § 2º, CF. Dica: conjugar com os arts. 5º, IV, e 60, § 4º, IV.
“Je désapprouve ce que vous dites, mais je défendrai à la mort votre droit à le dire” – Voltaire. O nome disso é pluralismo e respeito ao pensar diferente.
Imaginem só se alguém tivesse o poder de censurar esse blog, argumentando que ele fere algum princípio…
E digo mais: uma empresa de televisão não é obrigada a veicular conteúdo determinado. É uma entidade privada. Você assiste se quiser, você participa se quiser.
E o que fazer com a liberdade contratual? A liberdade não é uma garantia constitucional?
Data venia, a eficácia horizontal dos direitos fundamentais tem limites. Não quero que o Judiciário ou o Legislativo (seja ele ordinário – nos 2 sentidos – ou constituinte) me digam como eu devo me divertir.
A propósito, detesto o Big Brother, o Bial e a alienação mental que isso provoca. Mas concordo com Voltaire.
Prezado Dr. Rodrigo,
Apenas gostaria de frisar que o direito à dignidade humana é direito indisponível, razão pela qual os participantes do programa não possuem a faculdade de transacionar a seu respeito. Com efeito, o fato de buscarem um prêmio não justifica a submissão de sua imagem a momentos de extrema humilhação. Justamente esta busca pelo milhão e meio os torna ainda mais hipossuficientes, o que, em tese, obrigaria a interferência do Estado Juiz para lhes devolver, mesmo que a contra-gosto, a dignidade. Por outro lado, e trata-se de opinião pessoal, acho que o programa não sofre as críticas que merece por um simples fato: a população se identifica com a humilhação, pois vive dioturnamente em condições indignas ao ser-humano. Talvez, antes mesmo de criticar um programa de TV, devamos olhar para aquele trabalhador que todos os dias cruza nossos caminhos nadando na enchente, comendo restos de comida e vivendo em uma casa sem qualquer saneamento básico. Outro ponto que deve ser considerado, apenas para elevar o grau de controvérsia, é o fato de que é difícil diferenciar um estado vexatório de uma mera piada ou brincadeira. As punições do programa são impostas mas risíveis, e trata-se de um jogo e não de uma situação real. Os participantes são na verdade atores e o fato é que ali tudo é uma fantasia, um circo. Aliás, todos os participantes são unanimes em afirmar que as pessoas ali são personagens criados para ganhar um jogo. Apesar de todas estas palavras e considerações sem conclusão, considero que o texto do colega atinge o objetivo com todo o exito: nos faz pensar.
Podia proibir blogueiros de postar comentários de apoio à censura também. Que tal?
Caros leitores,
Vemos que o assunto desperta muita polêmica. No twitter, aqui nos comentários, e por email, várias foram as manifestações, concordando ou discordando das idéias impressas no texto. O objetivo já foi atingido: despertar a reflexão sobre a qualidade da programação da televisão. Nenhum daqueles que leram o texto assistirão mais as “provas de resistência” dos “heróis” do Pedro Bial sem que se recorde das críticas aqui externadas. Ainda que a lembrança seja para discordar do aqui escrito – aí está a beleza da democracia.
É necessário, porém, fazer um breve registro. Jamais foi proposto, seriamente, qualquer censura ao direito de manifestar informação – tanto que neste espaço todos os comentários foram publicados,e sem qualquer moderação. Se não censuramos críticas ao nosso próprio blog, porque proporíamos, seriamente, que fizessem censura no espaço alheio?
A idéia central do texto é despertar a reflexão, com uma pitada de humor jurídico, conjecturando a incompatibilidade do programa com o texto constitucional – jamais construir fundamentos para possível medida judicial censória. Basta ler ao final do texto: “Não se trata, certamente, de proposta concreta. Mas que sirva para uma melhor reflexão”. A “censura” que propomos não é pela via judicial (graças a Deus vedada pelo ordenamento), mas a feita através do controle remoto da TV: “Em respeito à Constituição, e na omissão inconstitucional da União Federal, que cada brasileiro mude o canal de sua televisão quando dessas apresentações ofensivas à dignidade e decoro humano”.
Ficamos assim, senhores críticos: abaixo à censura! Mas ainda precisamos gritar esse chavão!? Ah, parece que tem um jornal que ainda está sujeito à censura. Fiquemos apenas com o controle remoto nas mãos, e que cada um de nós mude o canal quando assistirmos esses tristes espetáculos.
Rodrigo Lago e Rodrigo Francelino
Os autores do texto
Profº Rodrigo Francelino, Eu acho esse BBB uma tremenda porcaria,mesmo que os participantes estejam cientes do que vão ver pela frente eu acho que isso fere mesmo a dignidade humana e não acrescenta em nada a um ser humano. Ótimo artigo!
Olhe eu acho que considerar aquelas provas como humilhantes, como tortura é uma verdadeira frescura de gente que acabou de se formar em Direito e que sair por aí regulando tudo… Vá as ruas, meu querido, lá está a verdadeira humilhação nossa de cada, ter que pegar ônibus lotado todo dia pra trabalhar, aguentar filas enormes, não ter acesso à saude etc.
quem arsistir a redeglobo seu dona lidia seu chico francisca francisco ele é seu fã
a questão é; cada pequeno detalhe que vivenciamos vai imprimindo nossa personalidade e moldando nossa leitura do mundo – não são só adultos e capazes que assistem esse programa idiota, tosco e mentalmente retardado = há crianças e adolescentes que vão “copiando” tuda essa frivolidade e se esvaziando de senso crítico.
Além do que parece que a censura acabou mas a grande imprensa antes de cumprir seu papel de educadora, esclarecedora e formadora de opinião responsável – deseduca, deforma e imprime opinião vazia sobre tudo — principalmente esta é a llinguagem política da rede globo – que cresceu de braços dados com a ditadura que não tinha outro objetivo a não ser legitimar a corrupção política e moral do país.
exelente texto e base para várias reflexões.
Trata-se de uma questão que, além de propiciar um debate jurídico e/ou político, varia conforme o ser humano considerado como indivíduo isoladamente. A opinião de cada um reflete, ao meu ver, a soma de todos os fatores educacionais e de experiência de vida de sua própria vida. Assim, não há como taxar o reality como “acultural” ou taxá-lo como mero programa de entretenimento, sem antes refletirmos se os comentários e críticas são externados isentos de qualquer carga moral/emocional/educacional ou se é o que realmente achamos como se deve “comportar” a Nação (dignidade das pessoas vs. censura). Ao falarmos dos problemas triviais do Brasil e coteja-los como verdadeiras humilhações é tratar a pessoa humana de forma desigual, explico: Tal qual o “ônibus lotado”, a “natação nas inundações das vias públicas” etc., o programa pode ser sim considerado, tanto quanto os outros problemas sociais, como humilhação. Não há como desvincular os dois. Estaríamos falando de grau de importância social os dois temas? Acredito que não há diferenças, apenas ponto de vista, o que realmente importa para nós. Exemplo: Um milionário pode ser, e querer ser, alheio aos problemas do cidadão “nadador de via pública”, e também achar que o programa é uma porcaria sem cultura e utilidade; mas pode ocorrer do “nadador” nadar o mais rápido possível para chegar em casa e assistir ao BBB sem perder a votação. Minha opinião, por enquanto, é a de que todos os comentários são eivados com a máxima legitimidade possível, contudo, há de se ter em mente que somente quem tem “poder” de rejeitar ou aceitar tal programa somos nós mesmos. E, sendo assim, estamos aceitando de forma expressa e impugnando (sutilmente e covardemente) tacitamente. Aproveito a oportunidade para parabenizar os autores pela ótima exposição do tema e pela coragem de mexer com um assunto tão delicado e ignorado por muitas pessoas.