Por Rodrigo Haidar
7.06.13

“Não há um surto de ativismo judicial”

 

Na cabeceira da mesa da sala de reuniões em seu escritório no Lago Sul, região nobre de Brasília, o ainda advogado Luís Roberto Barroso recebe seguidas mensagens em seu iPhone. Uma delas é a confirmação de que a presidente da República, Dilma Rousseff, assinou sua nomeação para o cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal, publicada nesta sexta-feira (7/6) no Diário Oficial.

Com a liturgia da nomeação cumprida, o ministro ficou mais à vontade para dar a entrevista à revista Consultor Jurídico, a primeira após a confirmação de seu nome para o posto antes ocupado por Ayres Britto. Mas alertou: “Por ter sido escolhido para um cargo público relevante, eu devo à imprensa e à sociedade brasileira uma satisfação. Acho que o momento de exposição é este, entre a nomeação e a posse. Depois, a posição de um ministro é diferente da de um advogado ou de um professor. Portanto, vou ter uma fase de recolhimento”.

Como na sabatina, Barroso não deixou de responder a nenhuma pergunta, mas também não deu pistas de como se comportará diante de casos que possa vir a julgar. Sobre a Ação Penal 470, o processo do mensalão, voltou a dizer que o Supremo foi mais rigoroso “do que a sua média histórica”. Contudo, frisou que sua análise, feita em artigo escrito para a ConJur, é a do professor que não teve sequer acesso aos autos. “Na condição de ministro nomeado, eu não gostaria de fazer nenhum outro juízo ou comentário sobre a ação. E, provavelmente, não farei nenhum juízo sobre o caso fora dos autos”, disse.

Na conversa, o ministro afirmou que não existe “um surto de ativismo judicial” em curso no país. Segundo ele, a quantidade de leis declaradas inconstitucionais pelo Supremo é ínfima e, mesmo em casos emblemáticos, o tribunal tem como característica a deferência ao Congresso Nacional. “Por exemplo, no julgamento sobre a possibilidade de se fazer pesquisas com células-tronco embrionárias, o Supremo manteve a lei que foi editada pelo Congresso. Não há um padrão rotineiro de ingerência indevida”.

Barroso criticou o sistema penal brasileiro, que disse ser “duro com pobres, mas manso com ricos”. Afirmou que o Ministério Público pode e deve conduzir investigações criminais, mas excepcionalmente e dentro de regras que precisam ser criadas para minimizar “o risco do vingador mascarado”. Definiu em que hipóteses o Supremo tem de exercer seu papel contramajoritário e analisou a transição da corte composta pelos ministros da velha guarda, que “sequer tinham simpatia pela nova ordem ou pela Constituição de 1988”, para o novo tribunal, que passou a implementar os direitos fundamentais com a chegada de ministros como Sepúlveda Pertence e Celso de Mello.

Ao verificar que assumirá um gabinete com oito mil processos, o ministro revelou que, como advogado, e com uma equipe que trabalhava com ele há mais de dez anos, dava, no máximo, quatro pareceres por mês. “Era feliz e não sabia”, brincou. Também defendeu filtros mais radicais para acesso ao Supremo e aos tribunais superiores. “O tribunal constitucional que julga 80 mil processos não tem condições de desempenhar adequadamente seu papel”, disse.

Na entrevista à ConJur, o ministro Barroso fez questão de frisar que suas opiniões ainda são a do professor Barroso. “Não estou falando de cátedra, tampouco sei mais do que os ministros já estão lá. Pelo contrário. Muito provavelmente, as soluções são mais difíceis do que parecem quando o problema é visto de fora. Não gostaria de soar, nem ingênuo, nem muito menos pretensioso. Desde que fui indicado pela presidente, não produzi opiniões novas. Tudo que tenho falado são ideias sobre as quais eu já escrevi ou que eu já tinha.”

O professor e advogado, que fazia análises constantes sobre a jurisdição constitucional, dará lugar a um juiz mais contido: “É uma circunstância que vou ter de incorporar à minha vida. O professor era livre para dizer o que quisesse. Agora, tenho uma função de Estado, que me impõe certas reservas. É um subproduto natural do cargo que eu aceitei”.

Luís Roberto Barroso viu se consolidar a possibilidade de se tornar ministro do Supremo no dia 15 de maio, quando recebeu um telefonema do ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, que lhe perguntou se poderia ir ao Planalto conversar com a presidente. Estava no Rio de Janeiro, para prestigiar o constitucionalista Paulo Bonavides, que recebia o título de doutor honoris causa da Universidade Federal do Rio. Não conseguiria voltar a tempo.

Voltou no dia seguinte a Brasília, depois de cancelar a participação em um congresso jurídico em Natal — “e sem poder dizer os motivos, coisa que nunca fiz” — e se encontrou com a presidente na sexta-feira, dia 17 de maio. Conversou por uma hora com Dilma, em companhia de Cardozo. “Tivemos uma conversa totalmente republicana, muito agradável. Ela perguntou a minha opinião sobre questões nacionais, como separação de Poderes, questões federativas, minhas teses de defesa sobre royalties. Foi uma conversa sobre questões de Estado. Nenhuma pergunta sobre processo. Nada que dissesse respeito à minha futura função jurisdicional”, atesta. Sobre os royalties, o ministro já adiantou que, por ter dado parecer sobre a matéria, está impedido de julgá-la.

Na semana seguinte, dia 23 de maio, Cardozo voltou a lhe telefonar. No Planalto, conversaram por mais 15 minutos. E, ao final da conversa, foi informado de que seria indicado ministro do Supremo. Poucas horas depois, o Planalto divulgaria uma nota oficial informando a escolha.

Leia a entrevista.

ConJur — É razoável que as decisões do Supremo sejam submetidas ao crivo do Congresso Nacional, como prevê a Proposta de Emenda Constitucional 33, do deputado Nazareno Fonteles (PT-PI)?

Luís Roberto Barroso — Essa é uma matéria ainda em discussão no Congresso e que pode gerar questionamento de natureza constitucional. De modo que eu não gostaria de opinar sobre ela do ponto de vista técnico-jurídico. Do ponto de vista político-institucional, considero que o Supremo tem servido bem ao país. E não veria razão para se tentar restringir a sua atuação.

ConJur — A proposta parece ser uma resposta ao ativismo judicial. É uma resposta desproporcional?

Barroso — Não acho que o Brasil viva um problema que se possa denominar de ativismo judicial, se a essa expressão se quer emprestar um conteúdo negativo. É possível que uma ou outra decisão tenha provocado uma fricção maior entre o Supremo e o Congresso. Mas foram decisões excepcionais. No geral, ao contrário do que às vezes se pensa, o Supremo costuma ser deferente para com a atuação do Congresso. A quantidade de leis federais declaradas inconstitucionais é ínfima e, em casos mais emblemáticos, o Supremo manteve a decisão política do Congresso ou do Executivo. Isso se depreende de diversos casos.

ConJur — Quais?

Barroso — Por exemplo, no julgamento sobre a possibilidade de se fazerem pesquisas com células-tronco embrionárias, o Supremo manteve a lei que foi editada pelo Congresso. No caso das ações afirmativas e a discussão do Prouni, o tribunal também manteve a decisão política tomada pelo Congresso Nacional. No caso da demarcação das terras indígenas da Raposa Serra do Sol, o Supremo manteve a decisão política do Poder Executivo. Não há um padrão rotineiro de ingerência indevida.

ConJur — Mas há casos emblemáticos recentes em sentido contrário?

Barroso — Alguns casos estavam na fronteira, como o da tramitação do veto na questão dos royalties do petróleo e o da portabilidade do tempo de propaganda no caso de mudança de partidos. Ainda assim, o plenário do Supremo derrubou a liminar no processo relativo aos royalties. O segundo caso ainda está pendente, mas com risco real de cair. Isso mostra que não há um surto de ativismo judicial. O que há é o atendimento de certas demandas sociais que o Congresso não pôde, ou não quis ou não conseguiu atender. Como no caso das uniões estáveis homoafetiva ou de interrupção de gestação de fetos anencefálicos. Porque as situações da vida acontecem e o Judiciário tem de atuar. E quando não há lei, não há decisão política do Congresso, o Judiciário tem de expandir sua atuação, dando a ela uma dimensão quase normativa. Isso aconteceu também com a questão da greve no serviço público e outras situações relevantes da vida que não foram regulamentadas pelo Poder Legislativo.

ConJur — No caso da greve no serviço público, o Supremo decidiu que, enquanto não vier a regra específica, vale a norma que se aplica às greves de trabalhadores da iniciativa privada. Antes, o tribunal se limitava a declarar a mora do Congresso nesses casos. O novo caráter que o STF deu ao Mandado de Injunção não é uma forma de o Judiciário legislar?

Barroso — O Mandado de Injunção foi concebido pelo constituinte para isso mesmo: permitir a atuação normativa do Judiciário quando houvesse omissão do Legislativo ou do Executivo. O Supremo deu ao Mandado de Injunção a sua destinação constitucional. O que se fez antes, durante o período em que o eminente e querido ministro Moreira Alves liderava a corte, foi impedir que o Mandado de Injunção produzisse o resultado para o qual ele foi criado. A mudança da jurisprudência do Supremo a partir do caso do direito de greve no serviço público foi uma retomada da vontade original do constituinte. Vontade que tinha sido coibida por uma jurisprudência que, por má vontade com a Constituição de 1988, limitava o seu alcance.

ConJur — Isso aconteceu em outros casos. Após a promulgação da Constituição de 1988, os ministros passaram algum tempo julgando os processos com os olhos na Constituição anterior, não?

Barroso — Sim. Utilizando uma expressão do meu querido mestre José Carlos Barbosa Moreira, é o que eu chamei, em artigos doutrinários, de interpretação retrospectiva. Em que se interpreta o novo texto olhando para trás e tentando manter, tanto quanto possível, o status quo. O constituinte de 1988 tomou uma decisão importante de manter o Supremo Tribunal Federal com a composição que ele tinha no momento em que a Constituição foi promulgada. A consequência prática disso foi que, nos primeiros anos de vigência, a Constituição de 1988 foi interpretada por ministros que não deviam a sua investidura à nova ordem constitucional. Eram ministros, muitos deles de muito preparo intelectual, mas que sequer tinham simpatia pela nova ordem ou pela Constituição. Assim, a interpretação que eles deram, de certa forma, impediu que as potencialidades do texto de 1988 se realizassem em um primeiro momento. Na medida em que essa geração de juízes se aposenta e o Supremo se renova, é que se passa a ter um tribunal mais afinado com os novos tempos e com o novo Direito Constitucional.

ConJur — O senhor vê um marco dessa mudança? Por exemplo, a posse de ministros como Sepúlveda Pertence ou Celso de Mello foi o início da transformação?

Barroso — Essa mudança progressiva do Supremo tem alguns marcos relevantes. Dentre eles, a nomeação do ministro Sepúlveda Pertence e, em seguida, do ministro Celso de Mello. Eu incluiria ainda a nomeação do ministro Gilmar Mendes e a aposentadoria do ministro Moreira Alves. Esses são os marcos que considero relevantes.

ConJur — O senhor não concorda, então, que vivemos hoje uma Supremocracia?

Barroso — De modo algum. E nem seria bom que vivêssemos. Ninguém deve imaginar que a política ordinária e as transformações sociais que o Brasil precisa possam ser feitas predominantemente pelo Supremo Tribunal Federal ou pela Justiça. O Poder Judiciário até pode ser um coadjuvante importante no avanço social, sobretudo pelo acolhimento de algumas teses progressistas. Mas progresso mesmo, do ponto de vista humano ou político, depende da política. Por curioso que pareça, o Judiciário é uma instância “patológica” da vida.

ConJur — Por quê?

Barroso — Porque as questões chegam ao Judiciário quando há litígio. Idealmente as situações devem se resolver sem que haja litígio. Ninguém pode imaginar que a litigiosidade seja um caminho para chegar a qualquer lugar. É claro que alguns avanços foram alcançados com decisões judiciais, nas mais diversas áreas sociais. A decisão sobre a união homoafetiva e a interrupção de gestação de fetos anencéfalos são bons exemplos. Mas são decisões específicas. O Judiciário teve grande ascensão institucional, serve bem ao país, mas não dispensa a política. A vida não é feita só de técnica, mas também de escolhas, de caminhos diferentes. Isso não cabe ao Judiciário fazer.

ConJur — O Supremo decide hoje do percentual de alíquotas de tributos à implementação de políticas públicas. Até a reforma política vem sendo feita vagarosamente pelo STF. Não é o Supremo quem governa o país, na prática?

Barroso — Não. O protagonista no país é o Poder Executivo, como sempre foi. A tradição de hegemonia presidencial no Brasil, que vem desde o início da República, não foi subvertida. De fato, depois da Constituição de 1988, houve uma notável expansão do Poder Judiciário, por muitas razões. Em primeiro lugar, porque se trata de um fenômeno mundial em todas as democracias. O Judiciário, progressivamente, foi deixando de ser um departamento técnico especializado e passando a ser um poder político. As democracias, depois da Segunda Guerra, chegaram à conclusão de que um Judiciário forte e independente é importante para garantir as regras do jogo democrático e o respeito aos direitos fundamentais. Essa foi uma onda mundial. Em segundo lugar, também há certa onda mundial de frustação com o processo político majoritário, com a representação política.

ConJur — Esse não é um fenômeno brasileiro?

Barroso — Não. No mundo inteiro a democracia representativa está em xeque e é amplamente criticada. Esse relativo desprestígio da função legislativa no mundo levou a certa expansão do Judiciário. Em terceiro lugar, por muitas razões, há situações em que o Legislativo não legisla porque não consegue produzir consensos. Sobretudo em questões moralmente divididas, como, de novo, a união homoafetiva. A expansão do Judiciário se insere nesse conjunto de circunstâncias. No caso brasileiro, há dois fatores particulares que potencializam essa expansão.

ConJur — Quais?

Barroso — Primeiro, a constitucionalização abrangente. O constituinte trouxe para a Constituição questões que em muitos países são deixadas para a política majoritária. Trazer uma matéria para a Constituição significa tirá-la da política e trazê-la para o Direito. Na medida em que há normas sobre índios, meio ambiente, previdência, sistema tributário, sistema de saúde e tudo o mais, permite-se que pretensões sejam veiculadas com base nessas normas. E a isso se soma o sistema brasileiro de controle de constitucionalidade, que permite que qualquer juiz de Direito, em qualquer caso concreto, funcione como um juiz constitucional declarando a inconstitucionalidade incidental da norma. Ao lado disso, o sistema permite também que sejam propostas ações diretas perante o Supremo Tribunal Federal sobre qualquer tema. E a Constituição ainda permitiu um elenco de legitimados que chega às dezenas, senão às centenas. Embora só haja nove incisos no artigo 103, que estabelece quem pode propor as ações, um dos dispositivos legitimou confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional. Isso abriu a porta pra dezenas de entidades.

ConJur — Ou seja, qualquer questão pode chegar diretamente ao Supremo.

Barroso — Sim. É preciso que seja uma questão muito irrelevante para que nenhum partido político ou entidade de classe queira levar ao Supremo. Tudo pode ser judicializado, e perante o Supremo. Então, ao lado das circunstâncias mundiais, temos essas circunstâncias que nos trouxeram até aqui. E a isso se soma o momento brasileiro um pouco mais difícil vivido pelo Poder Legislativo.

ConJur — A sensação de impunidade que hoje toma conta da sociedade pode ser creditada ao fato de o Judiciário não dar conta da demanda que lhe é submetida?

Barroso — A sensação de impunidade da sociedade brasileira, que é real, deve conviver com o fato de que o Brasil tem a terceira ou quarta maior população carcerária do mundo. Há a sensação de impunidade, mas existe também um nível elevadíssimo de encarceramento. O grande problema que existe no sistema punitivo brasileiro, em geral, é a sua seletividade. É um sistema duro com os pobres, mas manso com os ricos. Manso com quem tem bons advogados, mas duro com quem não tem. Célere para quem está na parte de baixo da pirâmide e interminável para quem está na parte de cima. É um sistema de classes. A Justiça penal brasileira é ainda estratificada em classes. Gosto de dizer que sou solidário com os pobres, mas não tenho raiva de ser rico. Ninguém deve ser preso, punido ou perseguido pelo simples fato de ser rico. Nem sumariamente absolvido.

ConJur — Como mudar isso?

Barroso — Precisamos de um Direito Penal mais eficiente. O que significa um Direito moderado, mais efetivo, e menos discriminatório em função de origem social. O sistema punitivo brasileiro vive um momento ruim do ponto de vista filosófico e normativo. Do ponto de vista filosófico é preciso fazer uma discussão sobre quanto de Direito Penal, para quem o Direito Penal. A sociedade não entende porque existem pessoas já condenadas que não estão presas e gente que nem foi denunciada que está encarcerada há tempos. O sistema não é capaz de fazer uma interlocução transparente com a sociedade. A sociedade não entende esse sistema. E não entende, em parte, porque ele é ininteligível. De uma maneira geral, o Direito Penal está desarrumado. Há grandes advogados, excelentes membros do Ministério Público. Ou seja, não é demérito para ninguém. Na vida, às vezes você olha para o lado, para uma situação que há muito tempo perdura, e descobre que ela precisa ser repensada.

ConJur — O que, exatamente, não funciona?

Barroso — O sistema punitivo tem quatro estações, digamos assim. A Polícia, que conduz o inquérito policial; o Ministério Público, que com base no inquérito policial oferece a denúncia; o juiz, que julgará a denúncia formulada; e o sistema penitenciário, onde a pena será executada. O Ministério Público e o Judiciário, em geral, vivem um bom momento. São instituições que foram aparelhadas e contam com pessoas qualificadas para desempenhar seu papel. Mas a porta de entrada do sistema, que é a Polícia, e a porta de saída, que é o sistema carcerário, não funcionam adequadamente. A Polícia, historicamente no Brasil, foi tratada como uma instituição de atividade menor. Como algo menos importante. É preciso dar dignidade à Polícia, equipá-la, treiná-la, pagar bem aos policiais. A Polícia que bate é aquela que não sabe fazer melhor. A Polícia que vive da quebra de sigilo é a que não tem outros meios para investigar. É necessário elevar o status da Polícia.

ConJur — E o sistema carcerário?

Barroso — No Brasil, ele não atende a quase nenhum dos papéis para os quais a pena foi instituída. Certamente não cumpre o papel de ressocialização. E aí nós temos outra causa de impunidade. O sistema penitenciário é tão degradante que os juízes procuram filigranas jurídicas para não mandar as pessoas para a cadeia. Porque se mandar alguém para o sistema carcerário para cumprir uma pena de um ano, dois anos, o juiz sabe que essa pessoa não vai sofrer apenas a pena de privação de liberdade, mas também uma pena de violência sexual, de violência física, de degradação da saúde. E sairá pior do que entrou. Então, muitas vezes o juiz faz essa conta na cabeça e não condena. Ou encontra formas de não mandar a pessoa para a prisão. Por essa razão, entre outras, eu tenho sugerido que o país deveria, de forma ousada, criar um sistema amplo de prisão domiciliar monitorada, diante da escassez de recursos para dar dignidade ao sistema carcerário. Os condenados não violentos cumpririam pena de prisão domiciliar. Mas prisão domiciliar de verdade. Se o condenado quebrar o regime, vai para o sistema. Cria-se uma opção à degradação dos presídios.

ConJur — É uma ótima ideia, mas na vida real não se consegue fiscalizar sequer o regime semiaberto. Como pode dar certo?

Barroso — É mais fácil criar um sistema de monitoramento do que construir presídios em escala suficiente para atender à demanda. No Brasil, as pessoas gostam de construir: prédios, pontes, viadutos, usinas hidrelétricas. Mas quando é necessário humanizar, fazer as coisas funcionarem, isso é tratado com desimportância. Portanto, basta criar um sistema eficiente de monitoramento eletrônico e treinar gente qualificada para desempenhar a função.

ConJur — O senhor concorda com a máxima do juiz Oliver Holmes, da Suprema Corte americana, de que o Direito é aquilo que o Supremo diz que é?
Barroso — Não. Essa é uma visão formalista da vida. É claro que é possível dizer que é o Supremo quem dá a última palavra na interpretação do Direito. Porém, o Supremo não é um tribunal desconectado do mundo, das instituições, da opinião pública, da realidade social. O Direito que o Supremo diz não está puramente na norma que ele interpreta. É um Direito também extraído da vida e da realidade social nas quais o tribunal se insere. O Supremo é um tribunal que, de certa forma, expressa os valores e o sentimento da sociedade. Se passar a produzir decisões completamente desconectadas do sentimento social, perde credibilidade. E a consequência natural, em médio prazo, é que as suas decisões não sejam mais respeitadas.

ConJur — É possível construir decisões que levem em conta os princípios fundamentais, as leis e as aspirações populares?

Barroso — Certamente. O que acontece é que às vezes o clamor público é incompatível com um valor constitucionalmente protegido. Nesses casos, o Supremo deve ter uma postura contramajoritária. É bom quando a decisão do juiz coincide com o sentimento social. Mas o Supremo não está lá para funcionar apenas como mais uma instância representativa. Um dos papéis do Supremo é dizer às maiorias o que elas não podem fazer. O clamor público, às vezes, quer linchamento, quer atropelar o devido processo legal. E o papel do Supremo é estancar esse desejo, dizendo que uma democracia não vive só das regras da maioria, mas vive do respeito às regras do jogo.

ConJur — O senhor assumirá um gabinete com oito mil processos. É possível decidir com qualidade diante desse volume?

Barroso — A minha principal atividade até hoje era a de elaborar pareceres. Para questões que estavam judicializadas em algum tribunal e para entidades, pessoas ou empresas que queriam orientar a sua conduta. Com uma equipe que trabalha comigo, ninguém há menos de dez anos, eu produzia uns quatro pareceres por mês. Ao ver esses números, a primeira sensação que eu tenho é a de que eu era feliz e não sabia. Embora haja nesses oito mil processos muitas repetições, um sistema que obriga um ministro do Supremo a apreciar esse volume de processos tem um vício de origem que precisa ser sanado.

ConJur — Qual é esse vício?

Barroso — Um sistema de filtros de acesso que não é capaz de selecionar o que é verdadeiramente importante.

ConJur — Na sabatina, o senhor disse que o Supremo deve julgar menos. Quais temas não deveriam chegar apo STF?

Barroso — Eu não delimito temas porque o que é importante para um às vezes não é para o outro. Posso dar o exemplo do meu cunhado que mora em uma área rural perto do Rio de Janeiro. Ele ofereceu ao jardineiro um terno. Perguntou: “Pedro, você quer esse terno?”. E Pedro respondeu: “O terno eu não quero, não senhor. Mas o cabide eu aceito”. Porque algumas pessoas usam terno. Outras, não usam terno, mas precisam de cabide. Assim, eu não gostaria de hierarquizar por temas do Direito. Há questões de locação, por exemplo, que podem parecer desimportantes, mas que significam a vida ou o sustento de uma pessoa. O que eu digo é que em cada safra de recursos que deveriam ser aferidos semestral ou anualmente, existem os mais importantes.

ConJur — Quais são os mais importantes?

Barroso — Deve-se aplicar um critério qualitativo e quantitativo. Se o Supremo tem condições de julgar adequadamente mil processos por semestre ou por ano, os mais importantes são aqueles mil. Os mil que, naquela safra, tratam das questões mais importantes porque sua solução alcança mais pessoas e a questão é relevante do ponto de técnico e social. Todo tribunal tem que ter como premissa de sua atuação a sua própria sobrevivência e a capacidade física dos ministros de julgar. É preciso encontrar essa fórmula. O autoritarismo no Brasil trouxe, como uma de suas consequências, um sentimento de culpa permanente em relação a tudo que não seja completamente libertário ou acessível. E é compreensível que isso tenha acontecido. Mas já temos 25 anos de democracia. Já estamos maduros o suficiente para que, com uma interlocução adequada com a sociedade, se estabeleça que em todo mundo o acesso à Justiça se realiza em dois graus de jurisdição: o primeiro e o segundo. O acesso a um tribunal superior não é direito subjetivo individual. Deve estar subordinado à importância da questão para a sociedade como um todo. Logo, não é uma questão de opção filosófica. É uma questão de inexistência de solução alternativa. O tribunal constitucional que julga 80 mil processos não tem condições de desempenhar adequadamente seu papel de tribunal constitucional.

ConJur — Na sabatina, o senhor também ressaltou que o Supremo já reconheceu a repercussão geral em tantos processos que levaria 15 anos para julgá-los. E disse que são necessários novos filtros, mais radicais. Quais?

Barroso — Os filtros adotados pelas duas principais cortes constitucionais do mundo, a americana e a alemã, são relativamente radicais. O tribunal seleciona, a partir de um critério pré-estabelecido, um número determinado de questões que serão julgadas. Nos Estados Unidos, é a denominada “regra de quatro”. Dos nove juízes, quatro votos são necessários para selecionar os casos que vão ascender à Suprema Corte e que serão decididos por ela. Menos de cem processos são julgados pela Suprema Corte americana anualmente. É de matar de inveja qualquer ministro do Supremo Tribunal Federal. Na Alemanha esse número é significativamente maior, mas ainda razoável. A jurisdição constitucional não se exerce aos milhares. Mas, sim, às dezenas ou, no máximo, às poucas centenas.

ConJur — Abstraindo o processo do mensalão: É razoável que um tribunal constitucional, de qualquer país, pare por seis meses para julgar um só processo, seja qual for o tema?

Barroso — Não tenho simpatia pelo foro por prerrogativa de função na extensão que ele é adotado no Brasil. Ainda que não tivesse uma falta de simpatia filosófica, como tenho, acho que ele produz uma disfunção na atuação do tribunal.

ConJur — Por quê?

Barroso — Porque uma corte constitucional não está aparelhada adequadamente para conduzir um processo que exige instrução, prova pericial, interrogatório ou até inspeção pessoal de determinado local. Um tribunal constitucional deve decidir questões de direito, e não questões de fato como as que estão envolvidas em qualquer processo criminal. É ruim para o país esse sistema de foro por prerrogativa de função. Seria adequado para o presidente da República e mais poucas autoridades. Dito isto, eu acho, no entanto, que é preciso ter um mecanismo republicano e que, ao mesmo tempo, ofereça algum tipo de salvaguarda para quem desempenha a função pública. A função pública no Brasil vive um momento muito difícil. Tanto os cargos executivos quanto a própria função parlamentar. Existe uma grande criminalização da atividade pública em geral e da atividade política, em particular. Tenho um amigo que foi reitor de universidade. Um cidadão modesto, de classe média simples. Fez tudo corretamente. Deixou a gestão e responde a mais de uma dezena de ações de improbidade e ações populares. Mudou um departamento da Rua X para a Avenida Y, e é processado por isso. Ou seja, a função pública ficou muito exposta. A autoridade pública tem de ser proba, mas deve ter algum tipo de proteção institucional. Senão, logo, ninguém mais qualificado vai querer exercer função pública.

ConJur — Deveria haver algum tipo de punição efetiva para ações temerárias?

Barroso — O desenho do Ministério Público na Constituição de 1988 e sua ascensão no quadro institucional foram positivos. Meu pai foi do Ministério Público toda a vida, de modo que todos os meus sentimentos em relação à instituição são bons. Porém, é inegável que há muitas situações de abuso. Muitas vezes, o procurador ou o promotor não se dão conta de que a instauração de um inquérito ou a apresentação de uma denúncia sem causa provável provocam na vida de uma pessoa um transtorno, um sofrimento grande. Portanto, é preciso que as pessoas que têm esse poder o utilizem de maneira criteriosa e, tanto quanto possível, parcimoniosa. Mas é um problema difícil de equacionar. Por um lado, historicamente, ocorrem muitos problemas na administração pública. Por outro lado, um pouco motivado por isso, o Ministério Público, às vezes, exacerba o seu poder de fiscalização. Eu diria que nessa área, como em muitas outras no Brasil, que é uma democracia jovem, nós ainda buscamos um ponto de equilíbrio. Nós não queremos nem a proteção deficiente, nem arroubos punitivos. É necessário encontrar o meio termo.

ConJur — Aí entra a discussão sobre o poder de investigação penal do MP. Não há regras claras para isso?

Barroso — Abordei esse tema na sabatina e já havia escrito, há muitos anos, um parecer para o Conselho de Defesa da Pessoa Humana, da Secretaria de Direitos Humanos do governo federal. O parecer foi escrito no seguinte contexto: boa parte das denúncias de violação de direitos humanos que lá chegavam decorriam de violência policial. Por isso, havia certo sentimento de que se a investigação fosse conduzida pelo MP, evitar-se-iam os problemas que ocorriam quando a investigação conduzida pela Polícia. Escrevi o estudo tentando demonstrar que se o Ministério Público passar a desempenhar o mesmo papel da Polícia, ele vai estar sujeito aos mesmos problemas e vicissitudes. O país teria duas instituições fazendo a mesma coisa, sem que uma pudesse fiscalizar adequadamente a outra. Por outro lado, há situações em que a Polícia não quer, não consegue ou não pode conduzir adequadamente a investigação.

ConJur — Quais os limites?

Barroso — Minha posição em relação a isso é que o sistema constitucional brasileiro atribui à Polícia o papel de principal condutora do inquérito. Mas não veda a atuação do Ministério Público. Por isso, o MP pode, e em certos casos deve, mas sempre por exceção, conduzir a investigação. E quando ela fosse conduzida pelo Ministério Público, deveria se pautar por regras específicas criadas para esta atribuição, que não está regulamentada. É possível prever algumas hipóteses materiais em que isso seja possível. Talvez criar uma salvaguarda de natureza formal, que é dizer, fora das situações enunciadas, a investigação pelo Ministério Público depende, por exemplo, de autorização do Colégio de Procuradores. Aí se minimiza o risco do vingador mascarado.

ConJur — O senhor disse aos senadores que o processo do mensalão foi um “ponto fora da curva” no Supremo. O que isso significa?

Barroso — Eu escrevi sobre a Ação Penal 470, para a ConJur, em dezembro de 2012, na resenha que faço há muitos anos sobre a atuação do STF naquele ano. Ali, portanto, por esse ter sido o principal julgamento de 2012, comentei a decisão. Escrevi como um professor, um observador externo, que sequer havia tido acesso aos autos. Na sabatina, diante das perguntas que me foram feitas a respeito do processo, eu repeti os mesmo juízos que havia formulado naquele artigo, para ser coerente e honesto comigo mesmo e com o público em geral. Mas, na condição de ministro nomeado, eu não gostaria de fazer nenhum outro juízo ou comentário sobre a Ação Penal 470 sem antes estudá-la. E, provavelmente, não farei nenhum juízo sobre o caso fora dos autos. O meu comentário, na ocasião, é que o Supremo havia sido mais duro no julgamento da AP 470 do que a sua média histórica.

ConJur — O senhor também disse que o Regimento Interno do STF tem força de lei. O Regimento prevê expressamente o cabimento de Embargos Infringentes. Isso significa que o senhor entende que os embargos são cabíveis?

Barroso — Não me manifestei sobre isso. O que eu fiz durante a sabatina foi enunciar os dois pontos de vista existentes. Achei que era meu dever demonstrar aos senadores que eu tinha conhecimento de qual era a discussão posta, mas não dei opinião a respeito. O que eu disse foi que o Regimento Interno do Supremo prevê os Embargos Infringentes. Esse Regimento foi elaborado antes da Constituição de 1988, ao tempo em que o Regimento tinha força normativa primária. Ou seja, equiparava-se a uma lei. Com a promulgação da Constituição de 1988, esta possibilidade de o Supremo “legislar” deixou de existir. Mas o que já vigia, continuou vigendo e não foi revogado expressamente. Esse é um ponto de vista. O outro é o de que a lei específica que tratou dos processos nos tribunais superiores não previu Embargos Infringentes. A questão é saber se deve prevalecer o regimento interno ou a lei nova. Não adiantei meu ponto de vista.

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Rodrigo Haidar é editor da revista eletrônica Consultor Jurídico em Brasília.

Entrevista publicada originalmente na revista ConJur, edição 7/6/2013.

Foto: Luís Roberto Barroso assiste sessão plenária do STF, 6/6/2013 (Nelson Jr./SCO/STF).



Um comentário

  1. […] – que aproveito, aqui, para cumprimentar e desejar êxito na nova jornada. Segundo ele (clique aqui para ler), não existe “um surto de ativismo judicial” em curso no país. Para Barroso, a […]