5.07.13
Audiência pública é mais que um instrumento de legitimidade
A Constituição Federal de 1988 manteve o modelo misto de controle judicial de constitucionalidade, previsto desde a Constituição de 1934.
Trata-se de um modelo mais complexo e sofisticado, no qual a fiscalização da constitucionalidade dos atos emanados dos poderes públicos pode ensejar efeitos de natureza individual ou contra todos.
Em consonância com a Constituição Federal de 1988, o controle judicial abstrato de normas incide sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, a depender da ação utilizada — se ADI, ADC, ADO ou ADPF. O processo de fiscalização abstrata de constitucionalidade é marcadamente objetivo, não comportando partes, litisconsórcio ou assistência, em atenção ao princípio da acessibilidade limitada, embora tal afirmação não seja isenta de críticas. Diferentemente do controle incidental, no qual a discussão sobre a inconstitucionalidade figura como questão prejudicial, no controle por via de ação direta ou principal, o juízo de inconstitucionalidade é o próprio objeto da ação, portanto, a questão principal a ser enfrentada. Nesse caso, o tribunal deve manifestar-se diretamente sobre a (in)constitucionalidade da lei. Sua função, diz a doutrina majoritária, é atuar enquanto legislador negativo, retirando do ordenamento a norma que contraria a constituição. Com efeito, o controle por via de ação direta e abstrato não admite fase probatória, tendo em vista que a discussão envolve questões estritamente de Direito.
Com a edição da Lei 9.868/1999, foram inseridos alguns institutos antes estranhos à jurisdição constitucional brasileira. Entre esses institutos, têm inegável destaque o amicus curiae e a audiência pública para a manifestação de experts sobre temas técnicos que envolvem distintas áreas do conhecimento. Ambos os institutos têm o objetivo de conferir maior legitimidade democrática e técnica às decisões proferidas pela Suprema Corte no controle abstrato de constitucionalidade.
Extraído da experiência americana, o amicus curie permite que entidades representativas possam levar novos argumentos para o debate a ser travado na corte. Mesmo não consistindo sua participação, em princípio, em assunção de posição a favor ou contra a tese levantada pelo legitimado que provoca a jurisdição constitucional, é inegável que o instituto pode exercer a importante função de auxiliar a corte, seja evitando uma decisão equivocada, seja aprimorando uma posição sustentada por ela. Por sua vez, a audiência pública consiste na convocação de pessoas com experiência e autoridade na matéria levada a conhecimento da corte. O objetivo de sua utilização é tanto esclarecer questões técnicas, administrativas, políticas, econômicas e jurídicas, como promover uma jurisdição constitucional mais democrática — nesse sentido, cf. o que afirmou o ministro presidente Gilmar Ferreira Mendes no despacho de convocação da audiência pública para discutir o Sistema Único de Saúde-SUS, datado de 5 de março de 2009.
Já tivemos, na história do STF, exemplos marcantes.
Em 05 de março de 2005, foi sancionada a Lei 11.105 — Lei Nacional de Biossegurança. Esse diploma normativo liberou as pesquisas com células-tronco embrionárias. Todavia, o uso de embriões foi condicionado à atenção a certos limites, tais como: permissão tão somente para o uso de células-tronco de embriões excedentes dos processos de fertilização in vitro, limitando-se, apenas, àqueles casos que se mostrem inviáveis para reprodução ou se estiverem congelados há pelo menos três anos. O texto legal impede, ainda, a clonagem de embriões que, na teoria, possam gerar células e tecidos feitos sob medida para tratar um indivíduo.
Em maio de 2005, o então Procurador-Geral da República, Cláudio Lemos Fonteles, ajuizou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn 3.510-0), questionando a constitucionalidade do artigo 5 da Lei 11.105/05, ao argumento de que o referido artigo violaria a dignidade da pessoa humana e o direito fundamental à vida.
Em decisão proferida em 19 de dezembro de 2006, o ministro Carlos Ayres Britto, relator da ação, determinou, diante da complexidade da matéria, a convocação da primeira audiência pública na história do Supremo Tribunal Federal. Dela, participaram 22 cientistas, para debater, entre outros pontos polêmicos, a importante questão sobre quando se daria, de fato, o início da vida humana.
De acordo como a decisão do ministro relator, a adequação da convocação amparou-se na possibilidade de maior participação da sociedade civil, assim como no fortalecimento da legitimidade da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal. O Min. Carlos Ayres Britto fundamentou sua decisão no parágrafo 1º do artigo 9º da Lei 9.868/99, que possibilita ao relator, em casos de necessidade de esclarecimento de matéria ou circunstância de fato ou de notória insuficiência das informações existentes nos autos, requisitar informações adicionais, designar perito ou comissão de peritos para que emita parecer sobre a questão, ou fixar data para, em audiência pública, ouvir depoimentos de pessoas com experiência e autoridade na matéria.
Depreende-se, a partir do teor da decisão do ministro relator Carlos Ayres Britto, que a audiência pública, concebida como instrumento técnico, nos termos do parágrafo 1º do artigo 9º da Lei 9.868/99, para esclarecimento de matéria controvertida que se encontre além dos conhecimentos jurídicos dos ministros, tornou-se um instrumento de ampliação da legitimidade popular das decisões proferidas pela Suprema Corte. Por ocasião da manifestação dos experts, o ministro relator, deixando transparecer essa conotação, enfatizou que a audiência pública deslocou “quem está na platéia, habitualmente, para o palco das decisões coletivas”.
Percebe-se que as razões que embasaram a realização da audiência pública pelo Supremo Tribunal Federal são estranhas àquelas exigidas pelo parágrafo 1º do artigo 9º da Lei 9.868/99. Da análise dos votos disponibilizados no sitio do Supremo Tribunal Federal, extrai-se que nem todos os ministros levaram em consideração as manifestações técnicas dos cientistas convocados. É bem verdade que a maioria dos julgadores embasou seus votos direta ou indiretamente nas discussões travadas durante a audiência pública. Porém, não se pode ignorar que muitos argumentos importantes não foram levados em consideração. Quanto a isso, pensamos que a desatenção ou mesmo o intencional descarte possam ser as suas principais razões. Na primeiro caso (desatenção), pode-se atribuir como causa natural ter sido esta a primeira experiência do tribunal com audiências públicas. E isso é compreensível. Porém, no segundo caso (intencional descarte), a omissão nos votos dos argumentos levantados durante a audiência pública parece envolver algo mais grave, pois tal opção — o descarte — impõe a cada ministro um ônus argumentativo adicional.
Consideramos a decisão proferida na ADI 3.510-0 um excelente material de estudo, tanto pelo ineditismo da audiência, como pelo seu próprio desfecho. Nas palavras do ministro Celso de Mello, “esse julgamento foi o mais importante da história do Supremo Tribunal Federal”, ante a importância do tema e inovação da jurisdição constitucional.
Em que pese a riqueza dos votos proferidos e a erudição dos argumentos levantados ao longo das sustentações orais dos amicus curiae, o que nos chama a atenção aqui é a consideração por parte do Tribunal de que o expediente da audiência pública teria apenas o propósito de conferir uma legitimidade a sua decisão.
Algo semelhante está ocorrendo, no presente momento, no Supremo Tribunal Federal, em relação a outra ação direta de inconstitucionalidade. Em pronunciamento proferido em 26 de março de 2013, o ministro relator Luiz Fux convocou audiência pública a ser realizada na ADI 4.650, relativa ao financiamento de campanhas. Segundo afirmou o ministro relator Luiz Fux (cf. notícia veiculada no site do STF), a audiência pública confere “legitimidade democrática” à decisão a ser proferida pelo STF. Afirmou ainda o ministro, segundo a mesma nota, que “para que o povo tenha confiança na decisão que vamos proferir é preciso que nós também ouçamos as vozes sociais, quando essas decisões não perpassam apenas por um critério meramente jurídico”, e que é importante que o STF “preste contas à sociedade e que a decisão seja o quanto possível representativa da expectativa popular”.
Veja-se que a prática iniciada por ocasião do julgamento da ADI 3.510 se sedimentou no Supremo Tribunal Federal. As audiências públicas, embora destinadas a esclarecer questões técnicas, administrativas, políticas, econômicas e jurídicas, tornaram-se, de acordo com orientação hoje preponderante no Tribunal, instrumento de legitimidade, menos por força dos argumentos colhidos em tais audiências (muitas vezes desprezados, quando do julgamento da ação pelo Tribunal), e mais por propiciar a participação de pessoas e entidades que, de algum modo, representariam a sociedade (ou os destinatários da decisão a ser proferida pelo STF) na criação da solução jurídica no processo de controle de constitucionalidade.
Consideramos, todavia, que as audiências públicas têm funções ainda mais importantes. Primeiramente, elas reduzem o isolamento do Tribunal, promovendo sua aproximação com a sociedade civil e com a comunidade científica. Segundo, e tendo em vista inegáveis limitações no que tange às capacidades institucionais da corte, as audiências reduzem as chances de decisões equivocadas e mitigam o déficit de expertise dos ministros em questões de profundo conhecimento técnico, já que, como agentes humanos, possuem eles limitações de conhecimento e também de tempo, com prazos e questões formais envolvidas em suas atividades.
O reconhecimento da importância dessas funções se acentua muito em especial quando as questões discutidas envolvem temas extremamente técnicos e moralmente complexos, cujas soluções exigem o emprego de conhecimentos específicos e estanhos ao Direito.
Com efeito, melhor seria se o Supremo Tribunal Federal conferisse às audiências públicas não apenas a função legitimadora de suas decisões, mas, sobretudo, a função de auxílio técnico-científico, diante de suas reduzidas capacidades institucionais e das limitações de tempo e conhecimento naturalmente impostas os Ministros enquanto agentes humanos. É assim que as consideramos. Por isso, acreditamos que todos argumentos levantados durante as exposições e debates oportunizados devem ser observados e enfrentados, sob pena de esvaziamento de sua função primordial.
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JOSÉ MIGUEL GARCIA MEDINA é advogado, presidente da Comissão Nacional de Acesso à Justiça do Conselho Federal da OAB, professor associado da Universidade Estadual de Maringá (UEM) e professor titular da Universidade Paranaense. Doutor e mestre em Direito Processual Civil pela PUC-SP
ALEXANDRE FREIRE é doutorando em Direito Processual Civil pela PUC-SP, mestre em Direito Constitucional pela UFPR, pesquisador do Núcleo de Processo Civil da PUC-SP, professor da pós-graduação em Direito Processual Civil da PUC-RJ, professor da Pós-graduação em Direito Processual Civil da USP (FDRP), professor da Escola Paulista de Direito-EPD, professor convidado da Associação dos Advogados do Estado de São Paulo-AASP, professor da Escola Superior de Advocacia da OAB-SP, membro do IBDP.
ALONSO FREIRE é professor da UNICEUMA e UFMA. Mestre em Direito Constitucional pela UFMG.
Artigo publicado originalmente na Consultor Jurídico, edição 4/7/2013, sob o título “Audiência pública tornou-se instrumento de legitimidade”.
Foto: Audiência pública sobre financiamento de campanhas eleitorais (Nelson Jr./SCO/STF).