22.08.11
A impopular função do controle de constitucionalidade
RODRIGO PIRES FERREIRA LAGO
Sempre que uma lei muito reclamada pela sociedade tem a sua constitucionalidade questionada perante o Supremo Tribunal Federal, logo os constitucionalistas de última hora, muitas vezes leigos até em Direito, reclamam que o Tribunal deveria ouvir a voz das ruas. Ou seja, afirmam que o STF deve decidir conforme a vontade do povo. E ainda buscam fundamento constitucional para tamanha barbaridade: “Todo o poder emana do povo”, fazendo alusão à sentença contida logo no art. 1°, parágrafo único, da Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988.
O argumento é tentador, mas é preciso esclarecer que o mesmo dispositivo determina que esse poder deve ser exercido “nos termos desta Constituição”. Ou seja, a soberania popular encontra limites no texto da Constituição. E isso se afigura óbvio. Pois, do contrário, a Constituição seria totalmente flexível, sendo derrogados, ou reformados os seus dispositivos, conforme fossem sendo aprovadas leis contrárias ao seu texto.
Os julgamentos dos casos que envolviam a aplicação da Lei da Ficha Limpa, a Lei Complementar nº 135/10, às Eleições 2010, disse eu em muitas oportunidades, seriam um marco para a jurisdição constitucional. Se vencesse o argumento segundo o qual a iniciativa popular imunizava a lei sobre o controle de constitucionalidade, a jurisdição constitucional sairia enfraquecida. De outro lado, se saísse vitoriosa a argumentação de que pouco importava ser uma lei de iniciativa popular, porque à Constituição sempre devia respeito, estaria fortalecido o controle jurisdicional de constitucionalidade. Venceu a segunda opção, para o conforto do Direito Constitucional.
Nestes julgamentos, chegou-se a cogitar essa possível imunidade das leis de iniciativa popular. No julgamento do conhecido caso Roriz x Ficha Limpa, o ministro Joaquim Barbosa consignou em seu voto: “Uma das raras leis de iniciativa popular. Creio que essa marca distintiva da LC 135 por si só já deve constituir um norte interpretativo importante a guiar a análise do presente RE” (trecho do voto do ministro Joaquim Barbosa no RE 630.147, sessão de 23/09/2010, disponibilizado em audio pelo site da Radio Justiça, www.radiojustica.jus.br).
Todavia, prevaleceu acertadamente a tese segundo a qual pouco importava a origem do projeto de lei, ou mesmo a imensa pressão popular, ou da mídia. O que bastava ao STF era confrontar o texto da lei com o da Constituição. Bem asseverou o ministro Gilmar Mendes no mesmo julgamento: “Fosse a lei aprovada por unanimidade no Congresso Nacional, ainda assim estaria submetida à Constituição. A missão da Corte Constitucional é uma missão contramajoritária”. E concluiu: “Muitas vezes tem que se contrariar o que a opinião pública tem como a salvação, para às vezes salvar a própria opinião pública” (RE 630.147).
Mais simbólica foi a sentença lançada no voto do ministro Cezar Peluso, que presidia o julgamento:
um tribunal que atenda a pretensões legítimas da população ou de segmentos da população, de segmentos do povo, ao arrepio da Constituição, é um tribunal no qual nem o povo pode confiar” (RE 630.147).
Ora, a rigidez da Constituição não permite seja ela emendada por eventuais maiorias parlamentares simples. Exige-se um quorum mais elevado, e um rigoroso procedimento. E há na Constituição alguns pontos que não são passíveis de emenda, nem mesmo por unanimidade do Congresso Nacional. São as conhecidas cláusulas pétreas.
O controle de constitucionalidade pressupõe, como regra, o caráter contramajoritário de suas decisões. Quase todas as vezes em que chamado a exercê-lo, o STF é instado a declarar a nulidade de uma lei. E esta norma, em geral, foi aprovada pela maioria do Congresso Nacional, e sancionada pela Presidência da República. Assim, quase sempre, esta lei reflete a vontade da maioria da população, posto que vigente no Brasil uma democracia representativa.
Caso o STF ouvisse as ruas, ou a voz do povo, como dizem alguns, o controle judicial de constitucionalidade correria grande risco de perder a sua legitimidade. Foi o povo, mediante seus representantes na Assembléia Nacional Constituinte, quem outorgou ao STF a função de precípuo guardião da Constituição. E essa missão é cumprida por meio dos mecanismos de controle judicial de constitucionalidade (CR88, art. 102).
É sempre importante citar Rui Barbosa, um dos responsáveis pela implantação no Brasil do controle judicial de constitucionalidade das leis, inspirado no modelo americano do judicial review: “O que sob a Constituição de 1891 lucrou em poder a Justiça, não foi a atribuição de verificar a constitucionalidade nos atos do Poder Executivo: foi a de pronunciar a inconstitucionalidade nos atos do Congresso Nacional” (BARBOSA, Rui. Discurso de posse no lugar de sócio do Instituto dos Advogados. In: LACERDA, Virgínia Cortes de (seleção, organização e notas). Rui Barbosa – escritos e discursos seletos. Rio de Janeiro: Nova Aguiar, 1997, p. 530).
Também não é jurídico o argumento de que os ministros do STF não têm legitimidade para decidir sobre determinados assuntos, posto que não foram eleitos pelo povo, e deveriam respeitar as deliberações do Congresso Nacional. Por certo, os ministros do Supremo Tribunal Federal não são eleitos, mas a legitimidade dos seus poderes decorre do próprio texto constitucional, aprovado pela Assembléia Nacional Constituinte, formada por representantes eleitos pelo povo.
A Constituição de 1988 fez uma opção política por manter, e até ampliar, os mecanismos de controle judicial de constitucionalidade das leis. E essa opção política foi tomada pelos representantes do povo. Só uma nova Constituição poderá destituir o STF dessa missão. Assim, cabe ao STF proteger a Constituição, ainda que o faça contra a vontade de eventuais maiorias. E também por isso se diz que o Tribunal é o guardião das minorias.
Ressalte-se que nem sempre a voz da maioria é o resultado de um processo democrático. Ex-presidente do Tribunal Constitucional Italiano, Gustavo Zagrebelsky realça bem a diferença entre o processo de democracia formal e o processo de democracia crítica. Diz ele que Jesus foi condenado à cruz pela vontade popular, em um ato considerado formalmente democrático. Mas, sustenta fundamentadamente, o ato não resistiria a uma democracia crítica. Disse ele em certa passagem: “Quer-se invocar a força da multidão? Saiba-se, então, que é necessário aceitar também que a ordem jurídica seja suplantada pelas vias de fato” (A crucificação e a democracia. Tradução Monica de Sanctis Viana – São Paulo: Saraiva, 2011, p. 128). O curso da história Cristã poderia ter sido diferente caso houvesse um Tribunal Constitucional, uma Constituição minimamente rígida, e a positivação de direitos e garantias fundamentais.
Por mais impopular que seja, que se preserve e se respeite a função do Supremo Tribunal Federal de declarar a nulidade da vontade popular expressada nas leis aprovadas pelo Congresso Nacional, quando contrárias à Constituição. Ainda se vive em um Estado Constitucional Democrático de Direito!
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RODRIGO PIRES FERREIRA LAGO é advogado, Conselheiro Seccional da OAB/MA, Presidente da Comissão de Estudos Constitucionais da OAB/MA, e fundador do blog Os Constitucionalistas. Siga o autor no Twitter @rodlago e no Facebook.
* Fonte: O Imparcial, edição de 08/08/2011, caderno Justiça e Direito, com modificações.
Concordo inteiramente, Rodrigo. Abrir mão de princípios constitucionais, como é o da anterioridade eleitoral, somente para expurgar do pleito alguns poucos políticos que tem a “ficha suja”, põe em risco todos os outros princípios nela consagrados. Que segurança jurídica teríamos se o STF julgasse, não com apoio na Constituição, mas ao sabor dos movimentos populares? Consolidar um direito constitucionalmente é um tarefa que leva anos, não se pode deixar que a massa, em sua maioria leiga, faça cair por terra a evolução jurídica que este país vem alcançando.
[…] “Cabe ao STF proteger a Constituição, ainda que o faça contra a vontade de eventuais maiorias” -> migre.me/5xgpi […]
Primeiro, parabéns pelo texto muito bem escrito: sintético, coeso, idéias bem expostas e sem apelações lógico-textuais.
Como ficou mais do que claro, é bem certo que se o STF ultrapassar a permissão constitucional em favor de um apelo social, ele está se esvaindo da função para o qual foi legitimamente separado.
Entretanto, para levantar a discussão, sob uma ótica mais pragmática: qual o valor em se manter a incolumidade constitucional, se a primária função do direito não estaria sendo atingida, qual seja, servir de regulador às necessidades sociais?
Um abraço!
Edmilson Almeida
RESPOSTA: Obrigado Edmilson! A resposta à sua pergunta está na Teoria da Constituição. É necessário entender a necessidade de uma Constituição, como base fundante do ordanemento jurídico. Em um Estado Democrático Constitucional de Direito, como o nosso, essa Constituição é feita com ampla participação poipular, e nela são assentados os limites do Poder. É uma espécie de contrato que fazemos com o Estado, ao cedermos parcela significativa de nossas liberdades para vivermos em sociedade e sob um governo. Assim, se este documento político e histórico não for protegido contra as maiorias parlamentares de ocasião, o contrato que o povo fez no instante constituinte estará ameaçado, e o poder será ilimitado. O povo cede a sua liberdade absoluta exatamente para que o Estado garanta efetivamente o exercício de suas liberdades. O mesmo ocorre com a Constituição: o povo cede em favor do rigor de uma Constituição para que a própria Constituição lhe garanta um mínimo de segurança jurídica. Este é o alicerce do Estado Democrático Constitucional de Direito.
Existe uma bibliografia boa sobre o tema? por favor, me indique alguns livros!
RESPOSTA: Olá Bruna, existe boa bibliografia sobre o controle de constitucionalidade, inclusive destacando o seu caráter contramajoritário, como destacado neste texto. Sugere-se as seguintes obras nacionais:
a) O controle de constitucionalidade no direito brasileiro , do professor Luís Roberto Barroso, ed. Saraiva;
b) Controle concentrado de constitucionalidade, de Gilmar Ferreira Mendes e Ives Gandra Martins (última edição é de 2009, mas neste aspecto é excelente a obra);
c) Controle de constitucionalidade e democracia, de Conrado Hubner Mendes; e
d) Controle de constitucionalidade moderno, de Saul Tourinho Leal.
Obrigado pela leitura,
Rodrigo Lago
Pois é, mas é engraçado como os senhores ministros praticamente reescreveram a Constituição no que diz respeito ao conceito de família para reconhecer inclusive o direito de adoção aos homossexuais. Quer me parecer que aqui o STF atendeu, talvez, a legítima pretensão de pequena parcela da população ao arrepio da própria Constituição e da opinião da maioria da população. Como ficamos então? Me parece então que o controle da constitucionalidade pode não ser tão antipático assim, mas sim segue convencimentos e caldos disseminados culturalmente pela mídia e grupos muito ativos dentro da sociedade. Portanto, segundo percebo, infelizmente, sem qualquer segurança jurídica fulcrada na Constituição!
Senhores, por favor, pesquisem bem os seguintes conceitos: PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS; DIGNIDADE HUMANA; PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS ESTRUTURANTES; POLÍTICA JURÍDICA; HERMENEUTICA CONSTITUCIONAL (Paulo Bonavides) pois antes de opinar, é preciso estudar com responsabilidade. Já dizia PAulo Freire: “O conhecimento muda as pessoas e as pessoas mudam o mundo!”