13.09.10
A fórmula do Senado e o novo controle de constitucionalidade
RODRIGO PIRES FERREIRA LAGO
1. INTRODUÇÃO
A proclamação da República no fim do século XIX trouxe o controle de constitucionalidade para o Brasil. A inovação se deu com os republicanos, que importaram o instituto dos Estados Unidos como instrumento de proteção contra eventuais maiorias parlamentares monarquistas. Mas também alguns monarquistas anuíram ao controle para proteger a descentralização do poder, o estado federado.
A grande diferença entre o sistema brasileiro e o norte-americano era quanto à eficácia das decisões que declaravam a inconstitucionalidade. Por não haver no Brasil o stare decisis, as decisões que declaravam a inconstitucionalidade tinham eficácia apenas entre as partes litigantes. Para aperfeiçoar o sistema, a Constituição de 1934 previu dentre as competências do Senado Federal a suspensão dos efeitos de lei cuja inconstitucionalidade tenha sido declarada em definitivo pelo STF.
Com modificações pontuais ao longo da história, este instrumento de defesa judicial da Constituição foi bastante eficaz durante anos. Mas uma crise numérica passou a ameaçar a jurisdição constitucional. O Supremo Tribunal Federal começou a receber milhares de recursos extraordinários, incluindo os agravos de instrumentos contra decisões de não admissão do recurso excepcional. A crise já se anunciava bem antes, mas se tornou insuportável a partir da Constituição de 1988, com a consolidação do Estado Democrático de Direito, que ampliou o rol de direitos e garantias constitucionais. Nem mesmo a incorporação definitiva do controle abstrato de constitucionalidade foi capaz reduzir a crise.
Vislumbrou-se a iminente falência do Supremo Tribunal Federal, que já não respondia em tempo hábil as questões constitucionais postas a si, nem mesmo se desincumbia das demais competências outorgadas pela Constituição. O Tribunal se mostrava impotente para julgar as ações originárias, cíveis e criminais, e também já não decidia os casos em que funcionava como órgão revisor de ações constitucionais julgadas originariamente pelos tribunais superiores. Os números de processos recebidos no protocolo eram infinitamente superiores ao número de casos decididos.
Nesse cenário, o constituinte derivado realizou ampla modificação no Poder Judiciário com a denominada Reforma do Judiciário, através da Emenda Constitucional n° 45/04. Nesta reforma, trouxe a Constituição ao STF a possibilidade de editar súmulas com caráter vinculante e também de filtrar recursos extraordinários para julgar apenas casos com repercussão geral.
Essas mudanças ainda tardaram a produzir efeitos, pois dependiam de regulamentação infraconstitucional e também de alteração do regimento interno do Supremo Tribunal Federal. E ainda poderão produzir melhores resultados após a plena compreensão desses novos institutos pelos aplicadores do direito e também pelo legislador.
Nesse cenário, mostra-se a necessidade de revisão do papel do Senado Federal no controle difuso de constitucionalidade quanto à competência prevista no art. 52, X, da Constituição. Este trabalho enfrenta a participação do Senado Federal no processo de declaração de inconstitucionalidade pela via incidental.
2. A ORIGEM DO CONTROLE DIFUSO DE CONSTITUCIONALIDADE NO BRASIL
O controle de constitucionalidade surgiu no direito brasileiro ainda no período pré-Constituição de 1891. Foi introduzido juntamente com a organização da Justiça Federal por meio do “Decreto n° 848, de 11 de outubro de 1890, depois ampliado pelo Decreto n° 1420-A, de 21 de fevereiro de 1891, e, mais tarde, já sob o regime constitucional, completado por meio da Lei n° 221, de 20 de novembro de 1894” (STRECK, 2004, p. 423).
Com forte influência do direito norte-americano, previu-se como competência do Supremo Tribunal Federal o julgamento de recursos das sentenças definitivas “quando a validade de uma lei ou acto de qualquer Estado seja posta em questão como contrario á Constituição, aos tratados e ás leis federaes e a decisão tenha sido em favor da validade da lei ou acto” (Decreto n° 848, de 11 de outubro de 1890, art. 9°, p. ún., b).
A forma encontrada para garantir o controle de constitucionalidade foi a mesma utilizada pelo Chief Justice John Marshall, em 1803, na Suprema Corte dos Estados Unidos. Segundo a exposição de motivos do Decreto n° 848/1990, ao aplicar as leis deve o juiz o “verificar se elas são conformes ou não a Constituição, e neste último caso, cabe-lhe declarar que elas são nulas e sem efeito” (apud STRECK, 2004, p. 423).
Era exatamente a mesma solução encontrada no caso Marbury v. Madison da Suprema Corte dos EUA, que “afirmou seu poder de exercer o controle de constitucionalidade, negando aplicação a leis que, de acordo com sua interpretação, fossem inconstitucionais”. Como afirma Luís Roberto Barroso, já “havia precedentes identificáveis em períodos diversos”, mas “foi com Marbury v. Madison que ela ganhou o mundo e enfrentou resistências políticas e doutrinárias” (BARROSO, 2008, pp. 05-06). Também Manoel Carlos de Almeida Neto assenta que a “originalidade lógica de Marshall teve inspiração na doutrina, como as lições de Hamilton, no clássico The Federalist” e “nos precedentes jurisprudenciais” de tribunais estaduais (ALMEIDA NETO, 2004).
No Brasil, foi com a instituição da Justiça Federal, após a proclamação da República, e ainda no governo provisório de Manuel Deodoro da Fonseca, que se consignou expressamente que as leis só seriam aplicadas se fossem conformes com a Constituição. De nada valeria o texto constitucional se o Congresso Nacional pudesse editar normas que ignorassem as suas disposições.
A influência norte-americana na instituição do controle brasileiro de constitucionalidade é destacada por Gilmar Ferreira Mendes:
O regime republicano inaugura uma nova concepção. A influência do direito norte-americano sobre personalidades marcantes, como a de Rui Barbosa, parece ter sido decisiva para a consolidação do modelo difuso, consagrado já na chamada Constituição provisória de 1890 (art. 58, §1°, a e b). (MENDES; COELHO; BRANCO, 2010, p. 1194)
O controle de constitucionalidade seria exercido apenas no julgamento de casos concretos através do sistema difuso. E serviria à proteção do Estado, da sua forma de governo e do próprio sistema federativo. Mas o controle de constitucionalidade instituído pré-Constituição de 1891 sequer chegou a ser executado, porquanto a Constituição que lhe daria suporte, do Governo Provisório, não chegou a viger. Entretanto, a Constituição de 1891 previu expressamente em seu texto esse controle de constitucionalidade.
Anos depois, Rui Barbosa, um dos responsáveis pela importação do controle de constitucionalidade, destacou o avanço trazido com este instituto:
O que sob a Constituição de 1891 lucrou em poder a Justiça, não foi a atribuição de verificar a constitucionalidade nos atos do Poder Executivo: foi a de pronunciar a inconstitucionalidade nos atos do Congresso Nacional. (BARBOSA, In: LACERDA, 1997, p. 530)
O controle difuso de constitucionalidade passou a ser utilizado a combater qualquer lei que violasse o texto da Constituição. E foi aperfeiçoado ao longo dos anos, sendo largamente usado pelo cidadão como forma de proteger os seus direitos fundamentais não apenas contra ofensas constitucionais decorrentes de leis, como também praticadas pelos poderes constituídos e mesmo por particulares.
Qualquer causa poderia chegar ao STF, bastando que fosse invocado dispositivo da Constituição da República. E foi assim até a promulgação da Emenda Constitucional n° 45/04, ou até a implementação do regime da repercussão geral, que se deu após a Emenda Regimental n° 21/07 do Regimento Interno do STF.
3. A CONSTITUIÇÃO DE 1988 E A CRISE NUMÉRICA DO STF
Durante mais de um século de existência do controle difuso de constitucionalidade, o Brasil atravessou diversas crises institucionais, mudanças de sistemas de governo, golpes de Estado e períodos totalitários e ditatoriais. Na década de 1980, porém, o Brasil passou por uma transição: da ditadura para o atual regime democrático.
Nesse ambiente foi instalada a Assembléia Nacional Constituinte, que discutiu e aprovou o texto da Constituição da República, promulgada em 5 de outubro de 1988, até hoje vigente. Por opção do constituinte, o texto desse documento político foi bastante analítico.
Isso significa que a Constituição de 1988 não trouxe apenas “o que diz respeito aos limites e atribuições respectivas dos poderes políticos, e aos direitos políticos e individuais dos cidadãos”, que, segundo Inocêncio Coelho, era consagrado pela Constituição de 1824 como sendo o conteúdo materialmente constitucional (MENDES; COELHO; BRANCO, 2010, p. 91).
Além de não se limitar ao conteúdo materialmente constitucional, e porque saído de um regime ditatorial, a Constituição de 1988 ampliou significativamente o rol de direitos fundamentais e sociais. Logo, esse documento político foi apelidado de Carta Cidadã. E dentre os direitos fundamentais proclamados está o livre o acesso ao Poder Judiciário (CF, art. 5º, XXXV).
A Carta Cidadã passou a garantir a todos os seus direitos elementares. Cada um poderia opor contra o próprio Estado e mesmo contra os particulares esses direitos fundamentais. Para isso encontraria abertas as portas do Poder Judiciário. E as causas, antes fundadas no direito infraconstitucional, passaram a ter como base o próprio texto constitucional, sendo comum a tentativa de levá-las ao Supremo Tribunal Federal.
Logo se percebeu a necessidade de construção de uma jurisprudência defensiva a obstar a chegada de uma elevada quantidade de recursos ao Supremo Tribunal Federal. Foi exatamente com esse espírito que se criou óbices, como o prequestionamento, fruto de hermenêutica constitucional, mas que esconde um obstáculo a mais à subida de recursos ao STF.
Todavia, mesmo com tantos obstáculos, os recursos se avolumavam no protocolo do Tribunal e nos gabinetes. Vários instrumentos foram criados para tentar superar o problema, muitos pelo próprio Regimento Interno do STF. Um deles era a tomada de decisões monocráticas, que não tardou para ser positivado pelo legislador.
Depois, previu-se o represamento direto pela presidência do Tribunal, que deixou de submeter os recursos à distribuição quando manifestamente incabíveis. Mas nada era capaz de obstar o assombroso aumento do número de processos recebidos pelo STF a cada ano.
E o Tribunal cuidou de apurar as estatísticas, quando se tornou público um dado preocupante: nos anos que antecederam a implantação do regime da repercussão geral, o STF recebia mais de cem mil processos por ano, somente contados os recursos extraordinários e os agravos de instrumentos deles decorrentes. E não havia previsão para redução da demanda.
Criou-se então o regime da repercussão geral para permitir que o Tribunal julgue mais questões constitucionais, apesar de decidir em um número infinitamente menor de processos. Esse regime foi aplicado ao controle difuso de constitucionalidade, porém, ainda está em fase de aperfeiçoamento.
4. O REGIME DE REPERCUSSÃO GERAL
Foi a Emenda Constitucional n° 45, de 8 de dezembro de 2004, que tratou da Reforma do Judiciário¸ que criou o regime de repercussão geral no processamento dos recursos extraordinários. A Lei n° 11.418/2006, ao modificar o Código de Processo Civil, regulamentou em parte o regime de repercussão geral, delegando ao STF, por seu Regimento Interno, a definição das normas necessárias à execução definitiva do novo regime do recurso extraordinário.
A Emenda Regimental n° 21 do STF, de 30 de abril de 2007, publicada em 3 de maio de 2007, serviu de efetivo marco inicial para o regime de repercussão geral. Resolvendo questão de ordem, o Supremo Tribunal Federal decidiu que era a partir da data de vigência desta norma regimental que seria exigível aos recorrentes a formulação de preliminar de repercussão geral:
Assim sendo, a exigência da demonstração formal e fundamentada, no recurso extraordinário, da repercussão geral das questões constitucionais discutidas só incide quando a intimação do acórdão recorrido tenha ocorrido a partir de 03 de maio de 2007, data da publicação da Emenda Regimental n. 21, de 30 de abril de 2007. (STF – AI 664567 QO, Relator: Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Tribunal Pleno, julgado em 18/06/2007, DJe-096 06-09-2007, PP-00037)
Este regime de processamento consiste não apenas em um filtro a impedir a chegada de causas irrelevantes ao STF, mas especialmente em um processo de objetivação das causas concretas. Reconhecida a repercussão geral em um processo, todos os demais recursos pendentes ficam represados ao aguardo da solução constitucional dada pelo STF àquele caso paradigma. Mesmo os recursos que já estejam distribuídos e autuados no Supremo Tribunal Federal devem ser devolvidos à instância a quo, mediante decisões irrecorríveis dos relatores.
Em seguida ao julgamento do caso representativo da controvérsia constitucional, os presidentes dos tribunais de origem são investidos na competência de aplicar aos casos concretos a solução constitucional dada pelo STF no processo em que se reconheceu a repercussão geral.
Não há dúvidas quanto ao melhor aproveitamento do tempo pelos ministros do STF desde a implantação do novo regime aos recursos extraordinários. A partir da nova sistemática, o número de processos julgados diretamente pelos ministros tende a diminuir. Entretanto, muito mais questões constitucionais serão resolvidas, e em prazo mais exíguo. O resultado dessa estatística é que os ministros terão mais tempo para se dedicar aos grandes debates. As pautas do Supremo Tribunal Federal terão menos processos e mais conteúdo.
Entretanto, o sistema é complexo demais e ainda tardará a ser perfeitamente compreendido pelos aplicadores dos direito: juízes, membros do Ministério Público e advogados. A própria academia tardará a compreender perfeitamente o novo regime. Ainda são poucas as obras dedicadas exclusivamente ao tema e os tradicionais manuais de direito constitucional não destinam muito espaço aos pontos mais controvertidos.
5. A SÚMULA VINCULANTE
A Emenda Constitucional n° 45/2004 introduziu o art. 103-A ao texto da Constituição, permitindo que o Supremo Tribunal Federal aprove súmulas de sua jurisprudência com efeitos vinculantes. A vinculação atingiria não apenas os outros órgãos do Poder Judiciário, mas também a Administração Pública.
Nesta parte, o novo texto constitucional foi regulamentado pela Lei n° 11.417/2006. A primeira súmula vinculante, porém, só foi publicada em 6 de junho de 2007, quando efetivamente o instituto passou a ser utilizado.
Especificamente no que toca ao controle difuso de constitucionalidade, vê-se que o Supremo Tribunal Federal já vem usando este instrumento para, dentre outros objetivos, dispensar a necessidade de suspensão de eficácia de leis pelo Senado Federal (CR/88, art. 52, X). É o que ocorreu, exemplificativamente, com a Súmula Vinculante n° 8:
Súmula Vinculante n° 8 – São inconstitucionais o parágrafo único do art. 5º do Decreto-Lei nº 1.569/1977 e os arts. 45 e 46 da Lei nº 8.212/1991, que tratam de prescrição e decadência de crédito tributário.
O Supremo Tribunal Federal encontrou na súmula vinculante uma alternativa para superar a omissão do Senado Federal em não aprovar resoluções que suspendam dispositivos legais declarados inconstitucionais por decisão definitiva no controle difuso de constitucionalidade. Essa engenhosa saída, porém, apresenta alguns problemas.
O primeiro é que, ao usar a súmula vinculante para superar a omissão do Senado Federal, o Supremo Tribunal Federal pode estar esvaziando a competência do Parlamento. Caso se entenda que a fórmula do Senado Federal é o mecanismo constitucional para conferir eficácia geral às decisões definitivas no controle difuso de constitucionalidade, admitir que o próprio Supremo Tribunal Federal pratique este ato se estará esvaziando a competência do Senado Federal. Poder-se-ia compreender essa atitude como verdadeira fraude à Constituição.
De outro lado, caso se afirme, como será demonstrado, que a competência do Senado disposta no art. 52, X, da Constituição é apenas de dar publicidade à decisão do STF, que per si já teria eficácia erga omnes, ter-se-ia como desnecessária a edição de súmula vinculante.
Outro problema que surge é que quando uma lei tem os seus efeitos suspensos pelo Senado Federal não se admite que resolução posterior venha a revogar anterior, ou mesmo restringir os seus efeitos, como já decidiu o STF (MS 16512, Relator: Min. OSWALDO TRIGUEIRO, Tribunal Pleno, julgado em 25/05/1966, DJ 31-08-1966, p. 2913). Assim, o debate sobre a constitucionalidade do conteúdo daquela norma só poderá ser reaberto se o Poder Legislativo editar nova norma de idêntico texto.
Todavia, tal não ocorrerá com a súmula vinculante. É que o texto constitucional admite a possibilidade de cancelamento de verbete sumular, segundo o art. 103-A, §2° da Constituição. Ou seja, seria possível repristinar uma norma que tenha sido declarada definitivamente inconstitucional pelo STF no âmbito do controle difuso, e que deixou operar os seus efeitos para todos em razão da aprovação de uma súmula vinculante que afirme a sua inconstitucionalidade.
Essas ponderações conduzem à evolução no pensamento quanto à formula do Senado Federal e o verdadeiro papel da Câmara Alta no processo de declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo no controle difuso.
6. O NOVO PAPEL DO SENADO FEDERAL NO CONTROLE DIFUSO DE CONSTITUCIONALIDADE
O regime da repercussão geral e a possibilidade de edição de súmula vinculante são recentes. O controle difuso de constitucionalidade já tem uma história de mais de dois séculos, a partir de Os Federalistas no final do século XVIII, e de Marbury x Madson, no início do século XIX. No Brasil, já se conta mais de um século desde a proclamação da República e a sua importação do direito norte-americano.
Essa nova roupagem assumida pelo controle difuso de constitucionalidade demonstra a necessidade de aperfeiçoá-lo, seja na sua normatização, seja na sua prática. E o ponto de partida para esse aperfeiçoamento passa pela rediscussão sobre o papel do Senado Federal neste processo, a chamada fórmula do Senado Federal.
No controle difuso de constitucionalidade do sistema jurídico do Common Law norte-americano era dispensável outro ato a emprestar eficácia erga omnes às declarações de inconstitucionalidade. Isso decorre do stare decisis, pelo qual as decisões tomadas em casos concretos passam a reger situações futuras, como uma espécie de efeito vinculante.
Mas no Brasil sempre vigeu o livre convencimento do juiz, que não é vinculado aos precedentes. Sempre foi assim, inclusive quando se tratasse de jurisprudência do STF. Para aperfeiçoar o sistema de controle no Brasil, criou-se com a Constituição de 1934 a fórmula do Senado Federal, permitindo que a Câmara Alta suspendesse os efeitos de lei declarada inconstitucional pelo STF, o fazendo através de resolução legislativa.
Observa-se que a fórmula do Senado Federal foi criada em 1934 quando não havia um processo de controle abstrato de constitucionalidade. Este procedimento foi primeiramente introduzido pelo uso das representações interventivas, que acabaram servindo como instrumento de controle geral de constitucionalidade. Depois, a Constituição de 1988 criou a ação direta de inconstitucionalidade, a ação declaratória de constitucionalidade e a arguição de descumprimento de preceito fundamental. Todas essas ações são dotadas de eficácia erga omnes, dispensando a necessidade de intervenção do Senado Federal após o exercício da jurisdição constitucional.
Mais recentemente, com a promulgação da Emenda Constitucional n° 45/2004, também o processo de controle difuso de constitucionalidade tornou-se em parte objetivo, uma vez que a decisão tomada em um caso concreto se estende a diversos outros em curso, ou mesmo poderá o STF editar verbetes de súmula de jurisprudência com efeitos vinculantes.
Essa alteração no processo de controle de constitucionalidade, especialmente a havida no controle difuso, acendeu um debate sobre a utilidade da fórmula do Senado Federal. A doutrina de Gilmar Ferreira Mendes sustenta ter havido mutação constitucional:
Parece legítimo entender que a fórmula relativa à suspensão de execução da lei pelo Senado Federal há de ter simples efeito de publicidade. Dessa forma, se o Supremo Tribunal Federal, em sede de controle incidental, chegar à conclusão, de modo definitivo, de que a lei é inconstitucional, essa decisão terá efeitos gerais, fazendo-se a comunicação ao Senado Federal para que publique a decisão no Diário do Congresso. Tal como assente, não é (mais) a decisão do Senado que confere eficácia geral ao julgamento do Supremo. (MENDES; COELHO; BRANCO, 2010, p. 1252)
A questão está sendo debatida no Plenário do Supremo Tribunal Federal. Encontra-se interrompido, com pedido de vista ao Ministro Ricardo Lewandowski, o julgamento da Reclamação n° 4335. Nesta reclamação constitucional discute se houve descumprimento de decisão do STF proferida no Habeas Corpus n° 82.859, quando foi declarada incidentalmente a inconstitucionalidade do art. 2°, §1° da Lei n° 8.072/1990, que veda a progressão de regime para os crimes hediondos.
O ponto central da discussão é que a declaração de inconstitucionalidade ocorreu em um caso concreto em que não era parte o reclamante. Se for admitida a procedência da reclamação ter-se-á que o controle difuso de constitucionalidade produz eficácia erga omnes e efeitos vinculantes, mesmo não se tratando de recurso extraordinário com repercussão geral, ou não tendo o STF convolado o entendimento em um verbete de súmula vinculante.
Votaram pela admissão da reclamação o Ministro Gilmar Mendes, relator, e o Ministro Eros Grau. Não admitiu a reclamação o Ministro Joaquim Barbosa, tendo o Ministro Sepúlveda Pertence conhecido da ação, julgando-a improcedente. Pediu vista o Ministro Ricardo Lewandowski.
São relevantes os fundamentos para se ter presente a mutação constitucional, considerando a participação do Senado Federal após a declaração de inconstitucionalidade no controle difuso como mera função de dar publicidade às decisões do STF.
O debate não é novo. No início, discutia-se se no controle concentrado de constitucionalidade também era necessária a intervenção do Senado Federal para emprestar eficácia erga omnes. E somente tempos depois do largo uso da representação interventiva como ação de controle de constitucionalidade reconheceu-se ser prescindível a resolução do Senado Federal para emprestar eficácia erga omnes. Mesmo no texto originário da Constituição de 1988 não constava que o controle abstrato de constitucionalidade tinha eficácia erga omnes, mas era fora de cogitação convocar o Senado Federal para integrar a jurisdição constitucional.
A eficácia erga omnes só foi positivada pela Emenda Constitucional n° 3/1993, e apenas para o processo de controle abstrato de constitucionalidade. Todavia, nesse caso, a eficácia geral serve tanto para as decisões que reconhecem a inconstitucionalidade, como também para aquelas que reconhecem a constitucionalidade de uma norma.
Há alguns problemas em pretender o mesmo tratamento jurídico a ambos os procedimentos de controle de constitucionalidade.
O primeiro é exatamente o de que não é razoável vincular todos os órgãos do Poder Judiciário quando em um processo subjetivo fosse reconhecida a constitucionalidade de uma lei. E é assim exatamente porque pode ter havido deficiência na impugnação da norma, considerado o parâmetro de controle de que se valeu o autor da impugnação, seja ele recorrente, recorrido ou mesmo autor ou réu de uma das ações de competência originárias do STF. Assim, só se pode cogitar de conferir eficácia geral às decisões que declarem a inconstitucionalidade.
Outro problema verificado diz com a necessidade de se conferir à norma o status de presunção de legitimidade, garantindo ao Estado meios para defender a sua constitucionalidade. No processo subjetivo, especialmente quando não se trata de recurso extraordinário submetido ao regime da repercussão geral, a defesa da constitucionalidade da lei pode ser deficiente. E assim sendo, a eventual declaração de inconstitucionalidade da norma, em que pese a reserva de plenário (CR/88, art. 97), pode não ser fruto de aprofundado debate.
Caso seja admitida a tese da mutação constitucional, e as decisões proferidas no controle difuso tenham eficácia erga omnes, ter-se-á de pronto o afastamento da lei declarada inconstitucional do mundo jurídico. O debate acerca de sua compatibilidade com o texto constitucional estará encerrado e somente uma nova lei a ser editada pelo Poder Legislativo poderá reabrir a jurisprudência constitucional.
Certamente é esse um dos motivos ao chamamento do Senado Federal no processo de declaração de inconstitucionalidade de normas na via incidental, ou seja, no curso de um processo subjetivo. E por esses motivos, dever-se-ia que reconhecer a discricionariedade no ato de baixar a resolução legislativa para suspender a eficácia da lei inconstitucional, competência conferida no art. 52, X, da Constituição de 1988. É que enquanto não for baixada a resolução legislativa o debate constitucional estará aberto, e todos que pretenderem se valer do entendimento firmado pelo STF serão obrigados a ajuizar novas medidas judiciais, reabrindo a discussão sem a necessidade de edição de uma lei nova de igual conteúdo.
Em que pese esse argumento, de que não tendo havido mutação constitucional seria discricionário o poder do Senado Federal neste processo, Manoel Gonçalves Ferreira Filho proclama ser compulsória a suspensão de eficácia do ato normativo declarado inconstitucional:
Nas hipóteses de controle difuso, a decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal é por este comunicada ao Senado Federal. Cabe, então, a esta Câmara suspender a execução do ato, o que significa suspender-lhe a eficácia.
Note-se que essa suspensão não é posta ao critério do Senado, mas lhe é imposta como obrigatória. Quer dizer, o Senado, à vista da decisão do Supremo Tribunal Federal, tem de efetuar a suspensão da execução do ato inconstitucional. Do contrário, o Senado teria o poder de convalidar ato inconstitucional, mantendo-o eficaz, o que repugna ao nosso sistema jurídico (FERREIRA FILHO, 2009, p. 43)
De logo se vê que, além de complexo, o presente tema comporta conclusões em diversos sentidos. Tem-se, portanto, que é necessário enfrentá-lo argumentativamente.
E milita em favor da mutação constitucional conclamada por Gilmar Ferreira Mendes o fato de não se conceber esteja o Senado Federal a integrar a jurisdição constitucional. Também não se pode conceber que o controle de constitucionalidade tenha três fases: o preventivo/político, exercido pelo Poder Legislativo e pelo Poder Executivo no momento da sanção ou veto; o jurisdicional, no âmbito de processo subjetivo; e novamente o político, repressivo desta vez.
Além desta autêntica impropriedade, que existe apenas no direito brasileiro, a permanecer como está ter-se-á o incentivo de ajuizamento de demandas judiciais, que a rigor seriam desnecessárias. Com os novos instrumentos de publicidade, especialmente a TV Justiça, que transmite as sessões plenárias do Tribunal, e o portal do STF na internet, é natural que as decisões tomadas nos processos subjetivos sejam amplamente divulgadas.
E a necessidade de ajuizamento de ações apenas para obter o benefício de declaração de inconstitucionalidade de uma lei já reconhecida pelo STF ofende o próprio espírito da Constituição. E não apenas este, como a literalidade de seu texto. Isso porque a declaração de inconstitucionalidade de uma lei, que deveria representar a solução de uma questão constitucional posta, torna ainda mais moroso o Poder Judiciário, violando o art. 5°, XXXV e LXXVIII, da Constituição de 1988.
É que todos estes processos seguirão rito procedimental inevitavelmente moroso e custoso. Isso em razão da necessidade de ampla defesa e de obediência ao devido processo legal. Assim, tardarão a ser resolvidos porque será necessário autuar cada um deles, citar a parte contraposta, ouvir em parecer o Ministério Público, publicar os atos na imprensa oficial e ainda aguardar o trânsito em julgado. Tudo isso tem um custo financeiro elevado e também impede que o esforço da máquina judicial se concentre em outras demandas que já tenham o seu destino resolvido pela jurisprudência constitucional.
De fato é necessário que se revise urgentemente o papel do Senado Federal no controle difuso de constitucionalidade, seja reconhecendo a mutação constitucional, seja reformando o texto constitucional.
Entretanto, em quaisquer das hipóteses é necessário garantir à norma questionada o mínimo de instrumentos para a sua defesa. Com isso, a decisão definitiva do STF no controle difuso seria objeto de ampla dialética, ouvindo-se não apenas as partes litigantes, para quem a solução constitucional seja prejudicial ou preliminar ao exame o litígio, como também os órgãos responsáveis pela edição da norma.
Tendo isso em conta, o texto do anteprojeto do Novo Código de Processo Civil, elaborado por juristas e instaurador do processo legislativo no Senado Federal (PLS n° 166/2010), previu mecanismos de defesa da norma nos incidentes de inconstitucionalidade:
Projeto de Lei do Código de Processo Civil – Senado Federal 2010 – PLS n° 166/2010 do Senado Federal
Art. 868. Remetida cópia do acórdão a todos os juízes, o Presidente do Tribunal designará a sessão de julgamento.
§ 1º O Ministério Público e as pessoas jurídicas de direito público responsáveis pela edição do ato questionado, se assim o requererem, poderão manifestar-se no incidente de inconstitucionalidade, observados os prazos e as condições fixados no Regimento Interno do Tribunal.
§ 2º Os titulares do direito de propositura referidos no art. 103 da Constituição da República poderão manifestar-se, por escrito, sobre a questão constitucional objeto de apreciação, no prazo fixado pelo regimento interno, sendo-lhes assegurado o direito de apresentar memoriais ou de pedir a juntada de documentos.
§ 3º O relator, considerando a relevância da matéria e a representatividade dos postulantes, poderá admitir, por despacho irrecorrível, a manifestação de outros órgãos ou entidades.
(Disponível em: <http://www.senado.gov.br/senado/novocpc/pdf/Anteprojeto.pdf>. Acessado em: 23 de agosto de 2010)
A solução sugerida no anteprojeto, além de permitir a defesa da constitucionalidade do ato normativo pelos órgãos responsáveis pela sua edição, permite expressamente o ingresso de amicus curiae. Ocorrerá no ponto a mesma necessidade de abertura do debate que assenta Damares Medina em comentário acerca do regime de repercussão geral: “[n]essa fase de decisão acerca da repercussão geral o que está em jogo não é o direito controvertido das partes antagonizadas na lide, mas, sim, a transcendência da questão a moldar todos os outros casos que versarem sobre o mesmo tema” (MEDINA, 2010, p. 103).
Caso a revisão do papel do Senado Federal no controle difuso de constitucionalidade seja feito pelo Congresso Nacional, será necessário invocar o poder de reforma do texto constitucional. Mas também se deverá, no campo infraconstitucional, criar instrumentos de defesa do texto normativo impugnado, especialmente pelos órgãos responsáveis pela sua edição.
De outro lado, caso se admita a tese da mutação constitucional, proclamada por Gilmar Ferreira Mendes em sede doutrinária e em voto proferido na Reclamação n° 4335, mostra-se necessário que se faça a colmatação da legislação processual para garantir à norma impugnada os meios para a sua defesa. E isso poderá ser feito para afirmar a necessidade de se ouvir os órgãos responsáveis pela edição da norma, como ocorre no controle concentrado, aplicado de forma analógica.
Essa integração normativa, se reconhecida a mutação do texto constitucional, não será novidade na jurisprudência do STF. Quando o Tribunal decidiu que os mandatos eletivos proporcionais pertenciam aos partidos políticos, o Supremo Tribunal Federal integrou o texto constitucional para outorgar à Justiça Eleitoral a competência para o julgamento dos casos de infidelidade partidária, e ainda determinou que o procedimento fosse disciplinado por resolução, enquanto não editada norma pelo Congresso Nacional (Mandados de Segurança n° 22.602, 22.603 e 22.604).
Também se teve presente a integração normativa no julgamento do Mandado de Injunção n° 670, ao se proclamar que o direito de greve dos servidores públicos prescindiria da edição de norma. É que, neste caso, ao se garantir o exercício do direito mesmo com a omissão do legislador, mostrou-se necessário afirmar os órgãos judiciários competentes para o julgamento dos litígios envolvendo essas greves. Além disso, foi necessário ditar o procedimento a ser seguido.
Assim, reconhecida a mutação constitucional, e verificando a necessidade de maior proteção dos atos normativos impugnados nos processos de controle difuso de constitucionalidade, tem-se que após admitir a instauração do incidente de inconstitucionalidade devem ser ouvidos os órgãos responsáveis pela edição da norma.
Essa providência, porém, só se mostrará necessária antes da tomada de decisão definitiva sobre a controvérsia constitucional. Com isto, não parece ser razoável adotar o mesmo procedimento nas instâncias inferiores, mas apenas quando a causa estiver no Supremo Tribunal Federal, a quem compete decidir de forma definitiva sobre a constitucionalidade das leis.
O mesmo modelo, todavia, seria reproduzido no âmbito da jurisdição constitucional estadual. Ou seja, os Tribunais de Justiça, quando instaurarem incidente de controle de constitucionalidade tendo por parâmetro a constituição estadual respectiva, também terão que ouvir os órgãos responsáveis pela edição do ato normativo impugnado. E também assim seria dispensável a participação da Assembléia Legislativa no controle difuso de constitucionalidade, senão para dar ainda mais publicidade à decisão.
7. CONCLUSÃO
As recentes modificações no processo de controle de constitucionalidade das leis no Brasil reabrem a discussão acerca da função do Senado Federal neste processo. A primeira questão a ser superada é a de que só teria eficácia geral a decisão do STF de declaração de inconstitucionalidade de alguma lei se o Senado Federal aprovar uma resolução nesse sentido.
O repensar desta fórmula do Senado Federal passa por duas possibilidades: (a) reforma do texto constitucional para alterar ou derrogar o inciso X do art. 52 e (b) releitura do conteúdo deste dispositivo para assentar a mutação constitucional sofrida, reconhecendo na resolução do Senado apenas uma forma de dar maior publicidade às decisões do STF, que já seriam dotadas de eficácia erga omnes no controle difuso.
Em qualquer caso, é necessário que o STF adote procedimento a garantir a defesa do texto normativo impugnado pelos órgãos responsáveis por sua edição, nos moldes como ocorre no processo de controle abstrato de constitucionalidade. Enquanto não houver lei que assim preveja, pode o STF disciplinar esse procedimento em seu regimento interno.
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RODRIGO PIRES FERREIRA LAGO é advogado, Conselheiro Seccional da OAB/MA, Presidente da Comissão de Estudos Constitucionais da OAB/MA, e fundador do site Os Constitucionalistas (www.osconstitucionalistas.com.br). Siga o autor no Twitter @rodlago e no Facebook.
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