3.10.15
O ministro Fux e o “germe da inconstitucionalidade”
Por Diego Werneck Arguelhes
Um slogan ronda as sessões do Supremo nas últimas semanas: o “germe da inconstitucionalidade”. Tanto na decisão do financiamento de campanha, quanto na decisão de ontem sobre acesso de partidos ao fundo partidário, o ministro Fux asseverou que, por força de decisões de inconstitucionalidade do Supremo, novas leis similares conteriam o “germe” da mesma inconstitucionalidade. Em princípio, o “germe” seria apenas um lembrete de que decisões passadas podem servir como precedentes capazes de orientar decisões futuras. Mas há mais por trás dessa metáfora.
Na fala de Fux na sessão de quinta, o “germe” impediria ações dos próprios parlamentares sobre o mesmo tema. A decisão de agora plantaria em leis futuras a semente – ou talvez o micróbio – da inconstitucionalidade. Já teriam seu destino selado, e ao Congresso só caberia a resignação. Nas palavras de Fux, uma nova tentativa congressual de legislar sobre a mesma questão representaria um “atentado à dignidade da jurisdição do Supremo Tribunal Federal”.
Entretanto, não existem leis automaticamente inconstitucionais. Mesmo que haja precedentes claros sobre um dado tema, as leis novas – que alegadamente conteriam o “germe” – precisarão ser questionadas de novo. O Supremo terá que tomar novas decisões. O problema é que o “germe da inconstitucionalidade” está no olho do intérprete, e não no texto da lei. Entendimentos poderão ser alterados, especialmente em um órgão colegiado. No caso, Fux está apenas dando a sua versão de como a decisão de hoje deveria ser interpretada em casos futuros. Questão de direito, de interpretação de precedentes, e não de fato. Prever a posição de seus colegas em casos futuros é arriscado.
Outros ministros podem discordar, inclusive, de que a lei futura seja de fato semelhante à lei atacada pelo Supremo. No processo decisório individualizado e fragmentado do tribunal, é bastante comum que ministros façam leituras muito diferentes do que seria a posição do tribunal em um caso passado. Menos comum, mas também possível, é que mudem explícita e até radicalmente de posição. Na sessão de quinta, por exemplo, o ministro Dias Toffoli sinalizou ter mudado de entendimento sobre a questão do financiamento de campanha por empresas.
Nova legislação e novos casos sobre problemas que alguns ou todos os ministros já considerariam decididos, aliás, pode ser importante mecanismo de mudança do direito constitucional. São ocasiões de transformação da jurisprudência do tribunal — motivada pela passagem do tempo, por mudança dos fatos, de composição do tribunal ou de visão dos ministros.
Não há, aqui, portanto, nenhuma afronta necessária à autoridade ou à dignidade do tribunal. Há apenas interações normais entre instituições em um regime de separação de poderes.
Que papel cumpre, então, o slogan do “germe da inconstitucionalidade”? Nem tudo que os ministros falam possui conteúdo jurídico decisório em sentido estrito. Aqui, o ministro Fux está falando para fora da decisão, tentando fazer uma profecia autorrealizável. Ele quer convencer os parlamentares – à sombra da ameaça de uma decisão judicial futura — de que não devem adotar certos comportamentos.
Seja como lembrete dos precedentes, seja ameaça de votos futuros, o “germe” tem caráter de mensagem. É uma declaração individual de intenções — não o reconhecimento de uma implicação jurídica da decisão. No fundo, por trás do “germe” está uma tentativa de decidir, de uma vez só, o caso de hoje e os casos de amanhã. Trata-se, na verdade, de uma estratégia de relações públicas de um ministro do Supremo para com o Congresso – e para com seus próprios colegas. Mas essa estratégia individual remete a uma questão institucional mais ampla: pode uma decisão do Supremo hoje encerrar qualquer debate político futuro sobre o mesmo tema? Nossa prática política tem sinalizado que não.
______________
DIEGO WERNECK ARGUELHES é professor da FGV Direito Rio.
Publicado originalmente no JOTA, edição de 2.10.2015.
Foto: Nelson Jr./SCO/STF.