19.09.11
O Caso Arruda e a posição do STF referente à ação interventiva
ADERRUAN RODRIGUES TAVARES
1 – INTRODUÇÃO
O presente trabalho não pretende fazer um buscado sobre os pressupostos materiais e formais da intervenção, nem mesmo os seus efeitos, mas, a partir de um caso prático, tentar visualizar a posição do Supremo Tribunal Federal diante das ações interventivas.
Para tanto será tido como exemplo para a presente análise, o caso do pedido de Intervenção Federal n° 5.179-DF do STF, sobre possíveis crimes cometidos pelo então Governador do Distrito Federal, no ano de 2009. Tal exemplo será denominado como o “Caso Arruda”.
Embora, seja analisado apenas um caso concreto, a posição revelada do Supremo Tribunal Federal é a mesma em diversos processos ao longo desses anos sob a égide da Constituição Federal de 1988.
2 – BREVÍSSIMO RELATO DO CASO ARRUDA
O “Caso Arruda” veio à tona após a deflagração da operação da Polícia Federal, em que se investigava supostos crimes, tais como fraude a procedimentos licitatórios, formação de quadrilha e desvio de verbas públicas, cometidos pelos então Governador e Vice-Governador do Distrito Federal, e por parlamentares da Câmara Legislativa do Distrito Federal, que integravam a base aliada ao governo.
Para o Procurador-Geral da República, autor da ação (IF n° 5.179-DF), os poderes Executivo e Legislativo distritais estariam envolvidos em um forte esquema de corrupção, desmoralizando as instituições públicas e comprometendo a atuação política do Distrito Federal, além de ofender à forma republicana, ao sistema representativo e ao regime democrático. Para tanto, o Procurador-Geral da República se apoiou em fatos noticiados na imprensa nacional, que, para seu talante, são notórios e vergonhosos.
Sustentou, ademais, na ocasião, que o fato de o então Governador e o Vice- Governador do Distrito Federal não exercerem mais os seus mandatos, não traria cura ao problema sentido no Distrito Federal, vez que parlamentares envolvidos no suposto esquema ainda estariam atuando na Câmara Legislativa, encolhendo por eleição indireta, inclusive, o governador interino.
Relembra-se que o ex-Governador José Roberto Arruda foi preso por determinação do Superior Tribunal de Justiça por causa dos fatos que serviram de substrato para o ajuizamento da ação interventiva, proposta pelo Procurador-Geral da República.
Por suas vezes, a OAB/DF, a Câmara Legislativa e o Governo Distrito Federal alegaram, em síntese, que medidas concretas foram tomadas a fim de estabilizar as relações de poder dentro do território distrital. Para eles, o fato de Governador ter perdido seu cargo, de Vice-Governador ter renunciado e de alguns parlamentares serem cassados dariam azo à perda do objeto da ação interventiva.
3 – SOBRE A INTERVENÇÃO
Delineada no art. 34 da Constituição Federal, a intervenção nos Estados-membros, no Distrito Federal e nos Municípios é algo de pouquíssima visualização prática, mas, sem dúvidas, é de uma importância ímpar.
Para JOSÉ AFONSO DA SILVA, a intervenção é o inverso dos parâmetros de autonomia dos entes federativos, vez que esta é afastada por um período do ente que tenha sido atingido pela intervenção. Nos termos da Constituição, a intervenção se trata de uma medida excepcional, podendo ocorrer nas hipóteses taxativamente constitucionalmente estabelecidas, tendo em vista que a nossa Constituição assegura a autonomia dessas entidades.[1]
Partindo da premissa de excepcionalidade da intervenção em nosso Estado, essa só é permitida como “mecanismo de garantir a aplicação de princípios constitucionais a assegurar a solidez do sistema federativo diante da ocorrência de circunstâncias concretas que, se não combatidas, poriam em risco sua estrutura”. Para KYIOSHI HARADA, a intervenção só se mostra viável quando um governante comete irregularidade de proporções danosas, que possam desconfigurar o próprio Estado, senda a intervenção a “medida saneadora, visando restaurar a regularidade da atuação político-administrativa do Estado-Membro”.[2]
ENRIQUE RICARDO LEWANDOVSKI entende cabível a intervenção quando um Estado-membro, o Distrito Federal ou um Município, “em sua prática política concreta”, seja conivente com um sistema de privilégios, “promovendo a iniqüidade social, ainda que atue aparentemente sob a égide do regime democrático”. Para o referido autor, a intervenção nesse sentido é a medida corretiva “de uma patologia institucional que pode colocar em risco a unidade dos entes federados.”[3]
4 – A MANUTENÇÃO DA POSIÇÃO HISTÓRICA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NA INTERVENÇÃO FEDERAL Nº 5179/DF
A questão da intervenção federal é tratada com muitas reservas e cuidados pelo Supremo Tribunal Federal. Diante do Caso Arruda, a Corte Suprema reafirmou seu entendimento diante do assunto e manteve sua posição histórica, optando pela não intervenção.
No caso aqui analisado, o Procurador Geral da República, diante das gravidades dos fatos que vinham se sucedendo no Distrito Federal, defendeu a intervenção federal com fulcro na alínea “a” do inciso VII do art. 34 da CF:
Art. 34. A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para:
(…)
VII – assegurar a observância dos seguintes princípios constitucionais:
a) forma republicana, sistema representativo e regime democrático;
Observe-se que a ação interventiva na hipótese aventada pelo Procurador Geral da República é possível quando o governante ou um grupo do Estado-membro ou Distrito Federal, por meio de suas forças políticas e institucionais internas, atue no sentido de se perpetuar no poder, tisnando a participação popular e o sistema alternado do exercício de poder.
Nessa esteira, a tentativa de perpetuação no poder poderá ser percebida por diversas formas, uma delas é o próprio conluio entre as funções estatais, para que seja feita a vontade de um governante ou de um grupo, sem atender aos procedimentos de exercício de poder pré-definido. No caso do Distrito Federal, esse conluio contou com a provável participação do Poder Executivo, Poder Legislativo e do Ministério Público.
Contudo, a intervenção é extremamente danosa do ponto de vista institucional, como visto acima, sendo, pois, uma medida excepcional. Dessa forma, somente a gravidade dos fatos não implica na automática intervenção federativa.
Com efeito, para o relator da ação, Ministro CESAR PELUSO, a intervenção federal (ou mesmo estadual) é uma medida extremamente excepcional, como se pode ler do próprio caput do art. 34 da Constituição de 1988: “A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para: (…)”.
Com isso, mesmo o Distrito Federal passando por uma das maiores tragédias políticas de sua história não poderia sofrer a intervenção federal, vez que instituições distritais atuaram concretamente na resolução dos problemas. O Governador perdeu o mandato por infidelidade partidária. O Vice-Governador renunciou ao cargo. A Câmara Legislativa cassou o mandato de alguns parlamentares distritais e elegeu indiretamente o novo Governador. Para o STF, esses foram os principais fatos que impediram a intervenção no Distrito Federal:
MINISTRO CESAR PELUSO: “A excepcionalidade da medida juridico-política impõe, todavia, por intuitiva cautela, verificar se as circunstâncias concretas que ensejaram a propositura da representação interventiva foram – ainda quando teoricamente graves – eficientemente combatidas por outros Poderes e por instituições que também sustentam o Estado Democrático de Direito, ou se, perdurando, ainda exigem decretação da medida extrema como condição de estabilidade do Estado Federal.”
(…) “O momento político-administrativo do Distrito Federal já não autoriza a decretação de intervenção federal, a qual se mostra, agora, inexoravelmente inadmissível perante a dissolução do quadro que se preordenaria a remediar.”
Assim, para o STF, o objetivo final da intervenção é salvaguardar a estrutura federativa, definida pela Constituição, contra qualquer ato passível de destruição das bases federativas, visando, pois, a preservação da autonomia da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.
A legitimidade da intervenção encontra guarida no arbítrio dos governantes, opondo-se à autonomia do ente, que é exercida pelo conjunto das instituições públicas, o que faz da intervenção uma medida cabível para a regularidade estatal contra o abuso de poder e a ilegalidade.
Todavia, como visto, a gravidade dos fatos, per si, não leva à ação interventiva. Para a nossa Suprema Corte é necessária, além da gravidade dos atos, a permanência desses atos e inércia das instituições executivas, legislativas e judiciárias do ente afrontado diante dos citados atos. Nesse diapasão, a medida interventiva, caso não observados esses requisitos, poderá obter resultados mais desastrosos dos que os que já existiam no momento da intervenção.
MINISTRO CESAR PELUSO: E, nesse contexto, não há como refutar o argumento de que eventual intervenção federal, decretada ao arrepio da Constituição ou de modo desarrazoado, pode, sob pretexto de restabelecer o equilíbrio da federação, produzir efeitos desestabilizadores do próprio Estado Federal e, até, sua desnaturação.
(…)
Assim, não basta a alegação da ocorrência de circunstâncias graves, capazes de, em tese, por em risco a higidez dos princípios constitucionais, à decretação da representação interventiva, pois a procedência desta tem de estar condicionada á omissão ou à ineficácia permanente de medidas político-jurídicas para saná-las, de modo a persistir, à época do julgamento, a situação histórica primitiva, só reparável por de intervenção, sob pena de esta já não guardar razão de ser.
O Ministro CARLOS AYRES BRITTO, no referido caso, foi o único a concordar com os termos do Procurador Geral da República. Para o Ministro, deveria ter sido o observado a prevalência do princípio republicano em face do princípio federativo.[4] AYRES BRITTO entendeu, em síntese, que com a corrupção vista no Distrito Federal, instalou-se uma verdadeira cultura anti-republicana, o que daria legitimidade para a intervenção.
Pois bem. Diante de todo esse contexto, a ação interventiva aparece como um remédio processual que tem conseguido o êxito de justamente não permitir a intervenção.
O Certo é que quando é proposta a intervenção, as instituições públicas internas do ente federativo começam a tomar medidas para sanar o problema, evitando-se, assim, a intervenção, o que colocaria em descrédito público as diversas instituições públicas integrantes do ente. Ou seja, a ameaça de intervenção é tão incomodante que desperta a iniciativa dos poderes internos para a manutenção da autonomia do ente federativo.
Com efeito, no caso do Distrito Federal, outra coisa não ocorreu. Com a propositura da ação interventiva por parte do Procurador Geral da República, diversos órgãos distritais começaram a correr contra o tempo para passar à população e ao próprio STF que uma intervenção não era necessária. Houve levante e atuação da OAB/DF, do Tribunal de Contas do Distrito Federal, da Câmara Legislativa, do Tribunal Regional Eleitoral no Distrito Federal, etc. Houve, diga-se, uma comoção política por parte tanto dos parlamentares distritais, quanto dos parlamentares federais eleitos pelo povo candango, que periodicamente vinham em público para manifestar o descontentamento com uma possível intervenção.
A propósito, o Ministro GILMAR MENDES, durante o julgamento da IF 5179, asseverou que:
MINISTRO GILMAR MENDES: A representação interventiva era até chamada, lembro-me de que o Professor Themístocles Cavalcanti, nosso antigo Colega, chama de a representação para evitar a intervenção. Foi pensada inicialmente como um instrumento de judicialização para, tanto quanto possível, evitar a intervenção. E, neste caso, estamos a ver que a iniciativa do Procurador-Geral deflagrou iniciativas, permitiu que houvesse iniciativas institucionais normais que superassem o quadro.
Ademais, segundo KYIOSHI HARADA, a ação interventiva, a partir da metade da década de oitenta, vem sendo intentada como instrumento de forçar o cumprimento dos precatórios judiciais expedidos, mormente, em processos expropriatórios, de onde vem a maioria dos débitos de condenação judicial das Fazendas Públicas[5].
5 – BREVES CONCLUSÕES
Assim, diante de tudo que foi exposto, pode-se perceber que a posição do STF em relação à intervenção é a da preservação da autonomia do ente federativo, no sentido de quanto menor a intervenção por parte de outro ente federativo e maior a atuação das instituições internas para a resolução do caso, melhor será para a federação brasileira.
Analisando a intervenção federal sob um enfoque mais econômico do processo interventivo, ENRIQUE RICARDO LEWANDOVSKI conclui que a intervenção nos termos da Constituição caiu em desuso. Para o hoje Ministro do Supremo Tribunal Federal, isso decorre da presença do instituto da intervenção nas diversas Constituições brasileiras, como também da crescente centralização do federalismo nas mãos da União, o que faz com que os Estados-membros, o Distrito Federal e os Municípios fiquem cada vez mais dependentes da União, em relação a empréstimos, investimentos, auxílios financeiros e outros favores de natureza material. Assim, a intervenção passou a ser, no entendimento do autor, um instrumento de pressão política ultrapassado, tendo em vista que a União terá meios econômicos mais eficazes para a resolução de diversos problemas.[6]
Com efeito, para o Supremo Tribunal Federal a intervenção, como visto acima, só é possível quando verificados três requisitos: a) situação enquadrada nas hipóteses constantes dos arts. 34 e 35 da Constituição; b) permanência das gravidades da situação logo acima referenciada; e c) inércia das instituições internas do ente processado no sentido da resolução da situação de quebra da ordem federativa.
Nesse sentido, a ação interventiva se presta a dar impulso à instituições internas para que estes somem forças políticas para que seja impedida a intervenção. A ação interventiva, conclui-se, é um instrumento apto para se evitar a intervenção.
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REFERÊNCIAS
LEWANDOWSKI, Enrique Ricardo. Pressupostos materiais e formais da intervenção federal no Brasil. São Paulo: Revistas dos Tribunais , 1994.
SILVA, Jose Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 18º ed., São Paulo: Malheiros, 2000.
HARADA, Kyioshi. Intervenção federal nos estados para pôr termo a grave comprometimento da ordem pública. In: Revista do Instituto dos Advogados de São Paulo, Nova Série, ano 5, n. 10, julho-dezembro/2002, Revistas dos Tribunais.
[1] SILVA, Jose Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 18º ed., São Paulo: Malheiros, 2000, p. 487
[2] HARADA, Kyioshi. Intervenção federal nos estados para pôr termo a grave comprometimento da ordem pública. In: Revista do Instituto dos Advogados de São Paulo, Nova Série, ano 5, n. 10, julho-dezembro/2002, Revistas dos Tribunais, pp. 95-96
[3] LEWANDOWSKI, Enrique Ricardo. Pressupostos materiais e formais da intervenção federal no Brasil. São Paulo: Revistas dos Tribunais , 1994, pp. 112.
[4] “Eu lembro que o nosso Estado brasileiro não se chama Federação Republicana. Chama-se República Federativa, porque, se fosse Federação Republicana, a ênfase seria no Estado Federal, mas, como é República Federativa, a ênfase é na forma de governo.” Min. CARLOS AYRES BRITTO (Trecho de voto da IF nº 5179/DF)
[5] HARADA, Kyioshi, op, cit, p. 95
[6] LEWANDOWSKI, Enrique Ricardo, op, cit, p. 143.
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ADERRUAN RODRIGUES TAVARES, assessor de juiz auxiliar da Presidência do Conselho Nacional de Justiça; bacharel em Direito pelo UDF; pós-graduando em Direito Constitucional pelo IDP; membro do Conselho Administrativo Editorial da Revista Direito Público e membro do Conselho Editorial da Revista Caderno Virtual. Email: aderruan87@gmail.com – Twitter: @aderruan
Texto extremamente elucidativo! Parabéns! Em especial, este final é preciso: “A ação interventiva, conclui-se, é um instrumento apto para se evitar a intervenção.”
Entretanto, ficou uma implicação: caberia algum tipo de responsabilidade às instituições internas pelo perigo da demora em agir no sentido de sanar os problemas e evitar uma intervenção?
Abraço.
Arruda tem um processo porque não fez licitação para o jogo do Brasil com Portugal, porque ainda colocam o nome dele no meio no caso da Jaqueline, ele nada tem haver com os problemas politicos dela!!