ConJur, Anuário da Justiça Brasil 2012
11.05.12

O Brasil não sabe fazer lei

 

Oito em cada dez leis estaduais ou federais do país submetidas ao crivo do Supremo Tribunal Federal são julgadas inconstitucionais. É o que revela o levantamento do Anuário da Justiça Brasil 2012, feito com base na análise das ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs) e das arguições de descumprimento de preceito fundamental (ADPFs) julgadas pelo STF no ano de 2011.

O índice de inconstitucionalidade chega ao patamar de 90% quando são analisadas separadamente as leis produzidas pelas assembleias legislativas dos estados e sancionadas pelos governadores. Das 68 leis estaduais ou dispositivos constitucionais dos estados brasileiros analisados pelos ministros, 61 feriram de alguma forma a Constituição.

Na esfera federal, o quadro é melhor. O STF julgou 11 ações contra regras aprovadas pelo Congresso Nacional e sancionadas pela Presidência da República. Cinco delas foram consideradas inconstitucionais. As outras seis foram elaboradas com a observação dos preceitos constitucionais. No ranking geral de 2011, o índice de inconstitucionalidade das leis brasileiras foi de 83%.

Os dados revelam que nada mudou no que diz respeito à qualidade da produção legislativa nos últimos seis anos. O percentual das normas inconstitucionais até cresceu. A primeira edição do Anuário da Justiça, publicada em 2007, revelava que 75% das leis julgadas pelo Supremo são derrubadas por ferir a Constituição Federal de 1988.

Para chegar ao resultado de 2011, foram pesquisadas as 146 ADIs e nove ADPFs analisadas pelo Supremo no ano passado. Foram computadas apenas as decisões finais, nas quais se discutiu efetivamente o mérito da lei – 76 ADIs e três ADPFs. As 27 ações que tiveram apenas decisões liminares e outras 49 que foram rejeitadas por motivos processuais não entraram no cômputo da inconstitucionalidade. Nenhuma ação declaratória de constitucionalidade foi julgada durante o ano. Os números levam em conta também as ações julgadas procedentes em parte, nos caos em que as leis tiveram apenas trechos ou expressões derrubadas pelo Supremo.

Das 49 ações rejeitadas sem a análise de mérito da causa, 31 restaram prejudicadas. Ou seja, perderam o objeto porque, entre o ajuizamento da ação e o seu julgamento, a lei atacada havia sido modificada ou revogada. Parte delas integra o rol das chamadas inconstitucionalidades úteis, quando Legislativo e Executivo aprovam uma lei fadada a cair para usufruir de seus efeitos jurídicos enquanto ela vigorar. E antes de o Judiciário agir, voltam atrás e a retiram do arcabouço legal.

Dos 20 estados que tiveram leis questionadas no Supremo, cinco respondem por mais da metade dos julgamentos de ADIs em 2011: Rio de Janeiro, Distrito Federal, São Paulo, Paraná e Santa Catarina. Juntos, tiveram 38 leis analisadas, das quais 35 foram julgadas inconstitucionais pelos ministros. O campeão da inconstitucionalidade é o Rio de Janeiro. Nenhuma das 13 leis fluminenses julgadas no ano passado passou pela prova da Constituição Federal.

Em segundo lugar, vêm Distrito Federal e São Paulo. Cada um teve seis leis julgadas inconstitucionais. Apenas uma das sete normas do DF analisadas pelo Supremo foi considerada constitucional. No caso de São Paulo, as seis leis julgadas foram retiradas do ordenamento jurídico pelo STF. A partir dos números, a conclusão simples a que se chega é: os estados legislam mal. Mas a questão é mais complexa do que isso. Para o advogado constitucionalista Luís Roberto Barroso, há ao menos três razões que explicam o fato de a maior parte das leis estaduais submetidas a julgamento pelo Supremo não encontrar guarida na Constituição.

A primeira delas é que a Constituição de 1988 deixou muito pouco espaço de autonomia legislativa para os estados. Assim, grande parte dos temas sobre os quais se legisla regionalmente acaba esbarrando em competência federal. Daí a inconstitucionalidade. Foi o caso do julgamento da ADI 3.279, em que o Supremo declarou inconstitucional emenda à Constituição catarinense que definiu como crime de responsabilidade o fato de secretários estaduais se recusarem a prestar informações à Assembléia Legislativa ou às suas comissões. A norma foi contestada pela Procuradoria-Geral da República justamente com o argumento de que violou competência a competência exclusiva da União para legislar sobre Direito Penal. O argumento foi acolhido à unanimidade pelo STF.

A segunda razão, segundo Barroso, é a hegemonia do Poder Executivo em relação à iniciativa do processo legislativo sobre variados temas. “Essa hegemonia faz com que boa parte das leis padeça do vício formal porque resultaram de projetos que nasceram na Assembléia Legislativa, quando deveriam ter se originado a partir de mensagem do Executivo”, diz. A explicação também encontra ressonância nos caos julgados pelo Supremo. Em uma só sessão de junho do ano passado, o tribunal julgou procedentes quatro ADIs que atacavam leis com o argumento de que houve o vício de iniciativa. Em uma das ações, o governador do Amapá questionava a Lei Estadual 740/2003, em que a Assembleia Legislativa autorizava o governo a conceder adicional de desempenho aos servidores em férias ou em gozo de licença-prêmio, licença-maternidade ou licença-médica, matéria de iniciativa do governador. Em outra ação, o governador do Paraná atacou a Lei Estadual 13.667/2002, que criou o plano de carreira dos servidores da Secretaria dos Transportes e do Departamento de Estradas de Rodagem do Paraná. Também nesse caso, a iniciativa legislativa tomada pela Assembleia Legislativa deveria ter partido do Poder Executivo. As decisões foram unânimes.

O terceiro motivo, na opinião do constitucionalista, é que as assembleias dos estados legislam sobre muitos temas irrelevantes. “E o fazem mal”, afirma. Para o professor, “hoje, no Brasil e no mundo, quase toda legislação relevante resulta de iniciativa do Executivo. E as leis de iniciativa do Executivo ou resultantes da conversão de medidas provisórias certamente representarão uma quantidade muito baixa nesse percentual”.

De fato, o índice de 45% de normas julgadas inconstitucionais em 2011 dá guarida à tese do advogado. “Na esfera federal, não há o problema da competência privativa da União que os estados enfrentam, em que sobra muito pouco para eles fazerem”, sustenta Luís Roberto Barroso.

Mas mesmo na esfera federal os índices de inconstitucionalidade costumam ser maiores do que o que foi apurado em 2011, como demonstram levantamentos anteriores. O deputado federal João Paulo Cunha (PT-SP), que presidiu a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara em 2011, afirma que “o calor da irracionalidade prevalece na hora de aprovar uma legislação”. Segundo ele, a análise é feita, muitas vezes, com base em pressões de aliados ou por suas bases eleitorais. De acordo com o deputado, há demasiada cobrança para que deputados apresentem projetos.

Em um momento que ele classifica como “conservador e deseducador”, 1,5 mil propostas de emenda à Constituição tramitam no Congresso. “Qualquer acidente que aconteça no Brasil, por uma coisa singular, vira três ou quatro projetos de lei”, diz o deputado. Ele deu como exemplo o acidente como um jet ski que matou uma criança no litoral paulista em fevereiro.

Em 2011, 3.268 projetos de lei foram apresentados na Câmara dos Deputados. A casa aprovou, no mesmo ano, 337 projetos de lei que classificou como aptos a ser somados aos códigos vigentes no país. Pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara, que tem a função de analisar a constitucionalidade dos projetos de lei, passaram 376 dessas propostas. Todas aprovadas. A comissão tem seguido o caminho apontado por aqueles que dependem de votos (e apresentam 3.268 projetos em um ano0, aprovando 100% do que chega para sua análise.

O levantamento feito pelo Anuário da Justiça também mostra que quem mais ajuíza ações de controle de constitucionalidade no Supremo Tribunal Federal são governadores de estado. Boa parte delas, como se viu, contra leis ou emendas à Constituição estadual que têm vício de iniciativa. Das 79 ADIs e ADPFs analisadas pelos ministros do Supremo no ano passado, 35 partiram dos chefes do Executivo estadual.

Depois dos governadores, é o procurador-geral da República quem mais ataca, no Supremo, leis que considera inconstitucionais. Do total das ações julgadas, 23 foram propostas pela Procuradoria-Geral da República. Em terceiro lugar estão confederações e associações de classe, como a Confederação Nacional do Comércio, Ordem dos Advogados do Brasil e Associação dos Magistrados Brasileiros. Junto com outras entidades, foram autoras de 19 ADIs julgadas em 2011.

A partir dos dados, também é possível avaliar a eficiência e a influência do trabalho da PGR no Supremo Tribunal Federal. E os números revelam que a atuação tem sido profícua. Das 23 ações julgadas em que a PGR figurava como autora, 18 foram consideradas procedentes. Em quatro delas, os ministros julgaram que o procurador-geral tinha razão em parte do pedido e somente uma ação foi julgada integralmente improcedente.

A derrota sofrida foi na ADI 3.386, na qual a PGR contestava a permissão de o IBGE contratar pessoal em caráter temporário para fazer recenseamentos e outras pesquisas de natureza estatística que atendessem ao interesse público. A PGR sustentava que, se a atividade institucional e permanente do IBGE é fazer pesquisas, não poderia contratar pessoas em caráter temporário, sob pena de “burla e simulação” à existência constitucional de realização de concurso público. Neste caso, perdeu.

Os pareceres obrigatórios da PGR nas ações de controle de constitucionalidade julgadas pelo Supremo também costumam ser bastante prestigiados pelos ministros. Dos 56 pareceres emitidos nas ações julgadas no ano passado, 46 foram acolhidos pelo tribunal. Em apenas dez casos, o resultado do julgamento foi diferente da opinião da PGR sobre a tese em discussão.

O Supremo também concedeu 20 liminares em ações diretas de inconstitucionalidade no ano passado. Do total, em 16 delas a decisão de conceder medida cautelar para suspender os efeitos da lei foi tomada pelo plenário do tribunal. Em outras quatro, o relator deferiu a liminar monocraticamente. Nestes casos, a decisão é, em seguida, levada a referendo do plenário. Mas, das quatro liminares, apenas duas já foram referendadas pelo Tribunal Pleno. Nos outros dois casos, as liminares ainda estão em vigor. Uma delas, concedida pelo ministro Luiz Fux no último dia de trabalho antes do recesso de julho do ano passado, suspendeu a Resolução 130/11, do Conselho Nacional de Justiça, que fixava horário de funcionamento uniforme para os tribunais do país. A liminar não foi levada a referendo do plenário.

A decisão de conceder liminar em ADI monocraticamente gera discussões polêmicas. Pelas normas que regem a ADI, liminares só podem ser concedidas pelo plenário. A exceção ficaria para casos bastante excepcionais, nos quais o relator poderia, então, suspender uma lei por decisão monocrática.

Advogados e estudiosos costumam observar que os efeitos de liminar em ADI podem repercutir em inúmeros desdobramentos legais, principalmente quando o deferimento é posteriormente revogado. É vasto o debate sobre como as decisões provisórias no exercício do controle concentrado de constitucionalidade podem repercutir em uma infinidade de efeitos no plano do controle empregado por via de exceção ou difusa.

Já em 2012, no julgamento em que o plenário decidiu referendar em parte a mais polêmica liminar do ano passado, concedida no último dia de funcionamento da Justiça pelo ministro Marco Aurélio para suspender a regra que dava ao Conselho Nacional de Justiça poder disciplinar concorrente ao das corregedorias de tribunais locais, a polêmica veio à tona. Em seu voto, o ministro Gilmar Mendes citou a Lei 9.868/1999, que trata do processo e julgamento de ADI, que fixa que somente o plenário tem condições de proferir medida cautelar em ação direta de inconstitucionalidade. Mendes observou que decisões monocráticas desse tipo só podem se dar em “casos de excepcional urgência”, situações que nomeia como “reserva de plenário”.

Contudo, para Marco Aurélio, o contexto justificava a medida liminar. “Continuo convencido de que era um momento que exigia a concessão. Tanto que, em vez de acionar o artigo 12 visando ao julgamento final da ação, eu trouxe o processo em setembro à apreciação do Plenário, mas não tenho culpa se não houve o pregão”.

O ministro cita a Constituição como fundamento de suas decisão monocrática: “Há uma cláusula na Constituição a revelar um ingresso no Judiciário para afastar lesão ou ameaça de lesão. E o afastamento de ameaça de lesão se dá mediante tutela antecipada, mediante liminar, sob pena de ameaça de lesão definitiva. E o regimento interno contém regras autorizado o relator, em situações excepcionais, a atuar”.

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Publicada originalmente no Anuário da Justiça Brasil 2012, publicação da revista Consultor Jurídico (ConJur). Clique aqui para adquirir o seu exemplar e ler a matéria na íntegra.

Foto: manuel holgado (mholm)/Flickr.



Um comentário

  1. Adriano Machado disse:

    Uma das possíveis causas para esse fenômeno, diga-se, está na baixa qualidade técnica das assessorias jurídicas dos órgãos que avaliam a constitucionalidade dos projetos. Mas o que fazer, considerando-se que tais órgãos jurídicos, geralmente, são chefiados e/ou ocupados por pessoas que não fazem parte do quadro de servidores do órgão…