Por Saul Tourinho Leal
8.06.14

Julgamentos em listas mostram que fracassamos

 

Listas são invenções humanas que jamais contaram com boa popularidade. Às vezes chegam a ser objeto de ódio ou pavor. Algumas delas, inclusive, revelam estereótipos fortes, como a lista negra norte-americana. Há obras monumentais dedicadas a mostrar o terror trazido com outras, como a Lista de Schindler. No Brasil, a expressão “lista de espera” é sinônimo de indignação. Há também as listas que afetam as vidas dos contribuintes, tornando-as piores. Vamos recordar um episódio que ilustra o tema sobre o qual estou falando.

O ministro Asfor Rocha, já fora da presidência do STJ, estava como julgador na turma competente para temas tributários quando se levantou de repente. Seus pares, surpresos, perguntaram o que havia ocorrido. Rocha voltou à cadeira e disse que não teria condições de participar daquele julgamento, já que não sabia absolutamente nada a respeito do que estava sendo julgado. Ele se referia a uma estranha tradição que tem gerado perplexidade: os julgamentos em listas.

A atitude do ministro, ao contrário de ser uma bravata, exibia a irracionalidade do modelo de deliberação judicial segundo o qual o colegiado, em poucos minutos, aprecia centenas de casos listados numa ordem fixada pela secretaria. Se não houver o “destaque” de algum ministro, prevalece o voto do relator, de acordo com o que estiver lançado como ementa para seus colegas, independente do que componha o conteúdo daquele caso. São centenas de processos resolvidos numa “sentada”. Não há previsão de sustentação oral por parte dos defensores das partes. Tomar a tribuna para chamar a atenção para o caso não é bem visto. Parece que se quer atrapalhar os trabalhos. Se não houver destaque suscitado por algum ministro, não haverá debate entre os colegas. O presidente da Turma diz: “Há destaques? Não? Aprovadas!”. Ponto final.

A prática se institucionalizou não só no Superior Tribunal de Justiça, mas no próprio Supremo Tribunal Federal. O espanto é maior ao saber que vale até para o Plenário do Supremo, quanto às listas de agravos ou embargos.

Julgamentos colegiados têm um telos: alcançar a melhor decisão após o embate argumentativo movido pela persuasão racional, com base no ordenamento jurídico. Submeter uma decisão a um grupo de pessoas que chegou a um tribunal é entregar o desfecho de um processo a uma deliberação prudente, atenta e experiente. No caso das listas, não é possível saber se tais elementos estão presentes: não há, de fato, uma deliberação. Além disso, tudo se dá com o advogado ali, presente, angustiado, mas em silêncio pela imposição do regimento interno. “Há destaques? Não? Aprovadas!” – diz o presidente, enquanto a indignação arrebata o patrono.

As listas simbolizam o eterno problema da prestação jurisdicional brasileira. A responsabilidade não pode ser depositada somente nos julgadores. Estamos falando do sintoma de uma doença crônica repleta de complexidades e cuja cura, seja ela qual for, não é simples. De todo modo, seguir fazendo como tem sido feito é, sem dúvida, o recibo de que fracassamos.

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Saul Tourinho Leal é advogado e doutor em Direito Constitucional pela PUC/SP.

Artigo publicado originalmente no Blog Fio da Meada, site do jornal Valor Econômico, edição 03/06/2014, sob o título “Julgamentos em listas, com advogado silenciado, mostra que fracassamos”.

Foto: Gary Denness via photopin cc.



Um comentário

  1. Excelente artigo! Parabéns. Infelizmente, dentre tantas as mazelas existentes, essa é somente o ápice do fracasso do modelo de julgamento que adotamos.
    Patrimônios, liberdades, vidas e sentimentos são decididos em uma só palavra.
    Sobre o artigo: “Há destaques? Não? Aprovado!” Parabéns de novo!