27.01.14
Juízes do Supremo são midiáticos
A atuação dos Tribunais Superiores, em especial do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, é tema recorrente nesta coluna.
Os leitores dos textos publicados por aqui já notaram meu entusiasmo com a ideia de se criar uma corte constitucional para o Brasil, assim como a preocupação com as propostas de emenda à Constituição que modificam a competência do STF e do STJ e deturpam a razão de ser desses Tribunais.
O papel dos Tribunais Superiores, no entanto, não é algo que deve ser estudado apenas a partir do que dispõe o texto constitucional acerca de sua competência. Há assuntos que passam ao largo das muitas propostas de emenda à Constituição relacionadas ao STF e ao STJ.
Interessa discutir, por exemplo, sobre a técnica de elaboração dos votos, a identificação da tese adotada no julgamento dos casos, a função das audiências públicas, a participação dos amici curiae, etc.
Talvez este seja um bom momento, também, para se debater sobre a transmissão ao vivo dos julgamentos realizados pelos órgãos colegiados dos tribunais.[1]
Tramita, no Congresso Nacional, projeto de lei que tem por finalidade impedir as transmissões ao vivo de sessões do STF e dos demais Tribunais Superiores (PL 7004/2013).
Mas o assunto não é novo.
Há alguns anos, a transmissão ao vivo dos julgamentos do Supremo mereceu a atenção de vários juristas e professores, como Carlos Velloso, Gustavo Binenbojm, Virgílio Afonso da Silva e Conrado Hübner Mendes, entre outros. Recentemente, também Dalmo Dallari escreveu a respeito, e o Ministro Joaquim Barbosa proferiu palestra sobre o tema.
Alguns afirmam que os julgamentos transmitidos ao vivo são mais democráticos e transparentes – como se o que estivesse em jogo fosse o caráter de cada um dos ministros, que deveriam ser fiscalizados. Mas, se assim fosse, todos os julgamentos, realizados por todos os tribunais, deveriam ser televisionados. Não me parece que deva ser assim. Segundo Orozimbo Nonato, que foi Ministro do Supremo entre 1941 e 1960, “não importa que a vulneração se mostre velada pelo silêncio do julgador ou se aninhe oculta nas dobras e refego da sentença. Não montaria até que a sentença proclamasse e anunciasse fieldade e obediência ao texto malferido”.[2] A violação à Constituição, assim, pode ser dissimulada por um discurso que aparente que à mesma se esteja dando efetividade, esteja o juiz diante da TV, ou não.
Até aqueles que são favoráveis à transmissão em tempo real dos julgamentos afirmam que tal fato interfere no modo como atuam os ministros do Supremo. Mesmo o Ministro Joaquim Barbosa reconheceu que a exposição ao vivo “repercute na maneira como certos ministros deliberam e sobre o conteúdo de algumas decisões”.
Lembro-me de um artigo do Professor Barbosa Moreira, publicado há quase 20 anos, em que ele se refere às condições externas capazes de interferir no julgamento realizado pelos tribunais.[3] Diz o professor e Desembargador aposentado que, “votando coram populo, o juiz pode sem dúvida ver-se tentado a ‘jogar para a platéia’”.
Se tal estado de coisas fazia sentido àquela época, hoje manifesta-se de modo ainda mais agudo, não apenas pelo fato de as transmissões dos julgamentos poderem ser realizadas ao vivo através da TV Justiça ou do canal do STF no YouTube, mas, também, pelo fato de imediatamente haver repercussão a respeito em todas as mídias e redes sociais, que se retroalimentam e inevitavelmente acabam sendo ouvidas pelos ministros. A influência exercida pelas redes sociais e pela imprensa geral, assim, não pode ser desprezada, e é mais potencializada se mais expostos estão o Tribunal e seus juízes à mídia.
Nesse contexto, o caso brasileiro sugere o debate sobre questões interessantes, que extrapolam a discussão sobre modelos de deliberação interno ou externo – isso é, de saber se os julgadores devem convencer os demais integrantes do colegiado ou o “público”.
Em determinado momento, o juiz passa a ocupar-se da imagem que transmite de si mesmo, no decorrer de um dado julgamento. Ciente da repercussão que sua atuação terá – não apenas em relação às partes ou aos demais atores institucionais (como, p.ex., os legisladores) –, o juiz cuida de sua própria performance, do modo como se porta (gestos, entonação de voz) ao transmitir suas ideias etc.
Há o risco, assim, de preponderar, na atuação do magistrado, uma maior preocupação com a imagem que é transmitida de si mesmo que com a substância do que está sendo julgado. Parece que estão certos aqueles que afirmam que isso repercute na qualidade, no conteúdo e na extensão dos votos dos ministros. É de se indagar, por exemplo, sobre a maior possibilidade de o juiz se manifestar sobre uma questão extrajurídica (p.ex., eminentemente política ou, até, moral) se o julgamento for transmitido ao vivo. Seriam os votos menos técnicos, juridicamente, pelo fato de o julgamento estar sendo televisionado? Para exemplificar, a frase “o juiz de 1º grau não tem competência para julgar”, por exemplo, é dita do mesmo modo, num julgamento restrito a juízes e advogados e num julgamento televisionado?
Os juízes do Supremo são midiáticos, não num sentido pejorativo do termo, mas pelo fato de, querendo ou não, estarem na mídia. Tudo o que dizem e fazem acaba sendo considerado importante. Os julgamentos transmitidos pela TV Justiçaacabam revelando o lado demasiadamente humano dos juízes que têm suas falas, imagens e trejeitos exibidos. Negar que eles desconsideram tal aspecto seria negar sua própria humanidade. Na verdade, seria mesmo muito estranho se os ministros do Supremo não se preocupassem com isso.
Disso podem decorrer vários problemas, alguns muito graves.
Parece certo que não há, entre nós, preocupação em buscar uma uniformidade de julgamento das questões constitucionais. Ou, dizendo-se de outro modo, os ministros que compõem o Supremo podem, todos, afirmar que determinada lei é inconstitucional, mas cada um deles pode fazê-lo a seu modo, e por motivos diferentes, ainda que isso não fique muito claro. Assim, ainda que os votos concluam em um mesmo sentido (“a lei x é inconstitucional”), o fazem por razões diversas. Fica-se sem saber, assim, o que o Supremo, como instituição, pensa sobre uma determinada questão.
Mas – e perdoe o leitor, se aqui vai uma impressão equivocada deste que ora escreve – às vezes parece que vai-se a algo extremado, em que não há apenas manifestação discordante de ideias, mas uma disputa inflamada de egos superlativos. Não raro, as discussões entre os ministros, em tempos recentes, extrapolaram aspectos jurídicos e disseram respeito ao modo como se comportam este ou aquele ministro (há exemplo recente disso). Nesse contexto, facilmente argumentos de razão cedem em favor de argumentos de autoridade. É de se investigar em que medida a transmissão de julgamentos ao vivo estimula ou reprime tal comportamento.
A esse aspecto se agrega um fator importante: quanto mais agudas as características pessoais dos juízes do tribunal manifestadas à mídia, mais esta tende a dar primazia à performance em si que ao trabalho substancialmente realizado pelo juiz, que fica em segundo plano. Afirmações de um ministro sobre o outro, assim, deixam de ser feitas diretamente e passam a ser realizadas através da imprensa.
Não é bom que seja assim. O estado ideal de coisas é aquele em que os juízes do tribunal preocupem-se em buscar uma solução coesa, que construa, gradativamente, uma jurisprudência íntegra sobre questões constitucionais.
Se o excesso de exposição na mídia, agravado pela transmissão ao vivo das sessões de julgamento, impede ou prejudica o desempenho do STF em sua missão constitucional, algo deve ser feito a respeito, e os ministros do Supremo devem ser os primeiros a tomar alguma medida a respeito.
Alterações no modus operandi das sessões de julgamento não dependem, em boa medida, de reformas na Constituição ou na Lei – seja a referente à TV Justiça ou a própria lei processual. Sequer modificações regimentais seriam necessárias, caso os Ministros mudassem sua postura nas sessões de julgamento – estejam ou não diante das câmeras de TV.
Se desejamos que o Supremo Tribunal Federal torne-se algo mais próximo de uma corte constitucional, devemos dar passos decisivos nesse sentido.
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José Miguel Garcia Medina é doutor em Direito, advogado, professor, e membro da Comissão de Juristas nomeada pelo Senado Federal para elaboração do anteprojeto de Código de Processo Civil. Acompanhe-o no Twitter, no Facebook e em seu blog.
Fotos: SCO/STF e Shmector.
Artigo publicado originalmente na revista eletrônica Consultor Jurídico, edição 27/1/2014.
Notas:
[1] Há muito a se investigar, quando se trata da exposição, em tempo real, das sessões realizadas pelo Supremo. Aqui, pretendo apenas levantar algumas questões, que poderão vir a ser objeto de nova análise em outros textos, no futuro.
[2] Citado por José Afonso da Silva, na obra Do recurso extraordinário no direito processual brasileiro, Ed. Revista dos Tribunais, 1963, p. 197.
[3] Notas sobre alguns fatores extrajurídicos no julgamento colegiado, Revista de Processo, vol. 75, p. 7, jul.1994.
A pedido, atualizado em 30/1/2014, às 13h22
Li com a devida atenção estas reflexões de José Miguel Garcia Medina. Entusiasta, de primeira hora, das transmissões ao vivo, em tempo real, das sessões de julgamento do Plenário do STF, aos poucos vi arrefecer-se esse meu entusiasmo,tantas e tamanhas foram se mostrando para mim as desvantagens do espetáculo midiático em que se converteram esses julgamentos. Conhecendo, pessoalmente, a grande maioria dos seus eminentes ministros, alguns dos quais meus amigos de longa data, fui acompanhando, com espanto crescente, o surgimento de um “clone” de cada julgador, cujo comportamento em público não se mostrava em nada consonante com o homem sóbrio, moderado, fidalgo, mesmo, das relações privadas. A “persona” do juiz em nada refletia a pessoa de carne e osso tão conhecida e admirada por suas inúmeras virtudes. Do ponto de vista institucional, fui me convencendo de que, de fato, a exposição à mídia comprometia, negativamente, a “arte” de julgar desses ministros. A necessidade de sair bem na “foto” produzia o efeito perverso de lhes turvar a espiritualidade e o equilíbrio, qualidades congênitas ao ofício de julgar. Tempos depois, ao ler Princípios e Votos — as mini-memórias de Gustavo Zagrebelsky, como Juiz e Presidente da Corte Constitucional da Itália –, convenci-me, creio que definitivamente, de que se deve pensar, com a cabeça fria, se não está na hora de voltarmos atrás e deixarmos de lado, fruto dessa experiência negativa, a transmissão das sessões de julgamento do STF, em benefício da Justiça e dos Cidadãos, que a rigor nada ganham, antes perdem, e muito, com os “conflitos” entre os seus 11 juízes, figuras que a República, com toda a razão, tem mais a admirar do que a criticars por eventuais equívocos. Para que não fiquem no ar quais as “razões”, que fomos buscar nesse opúsculo de Zagrebelsky, para consolidar nossa opinião sobre o tema objeto destas considerações, transcrevemos, a seguir, este pequeno trecho, que, a nosso ver, tem total pertinência com o instigante artigo de José Medina, ao qual emprestamos nossa despretensiosa adesão: “O último perigo para a independência dos juízes perante si mesmos é um pecado de orgulho, o amor próprio, o anseio de se mostrar, de aparecer, que se traduz no desejo de ver consagrada, em uma resolução do Tribunal Constitucional, uma posição pessoal precedente, tomada noutra sede, seja política, científica, forense ou judicial. Todos os juízes têm um passado profissional que pode tê-los levado a já haver tratado de questões que agora — sob o perfil constitucional — competem ao Tribunal de que fazem parte. Isto é inevitável. E mais, está implícito nos requisitos de experiência profissional que se lhes exige. Mas isto não justifica que se abuse da ocasião para envaidecer-se e vestir-se com as plumas do pavão constitucional” (Gustavo Zagrebelsky. Principios y votos. El Tribunal Constitucional y la política. Madrid: Trotta, 2008, p. 86. Tradução livre). Para que não pairem dúvidas sobre o nosso respeito pelo STF e seus dignos juízes, reiteramos, aqui, mais uma vez — fruto de nossa vivência de 4 anos nessa Corte como Procurador-Geral da República –, que consideramos nosso tribunal constitucional a mais admirável das instituições nacionais. Inocêncio Mártires Coelho