21.04.14
Improbidade e esvaziamento do dolo
Improbidade administrativa e a jurisprudência do STJ: o esvaziamento do dolo nos artigos 9º e 11, e a inconstitucionalidade da culpa no art. 10.
Resumo
O artigo aborda duas questões: i) o risco de esvaziamento do dolo, nas hipóteses dos arts. 9 e 11, da Lei de Improbidade Administrativa, porquanto decisões judiciais têm reconhecido a prática de ato ímprobo em razão de violação à lei, sem demonstrar, a partir do exame do contexto de cada caso, que o agente tenha pretendido alcançar o fim vedado pela norma, conforme exige a noção de conduta dolosa; e, ii) a inconstitucionalidade da culpa na hipótese do art. 10, da Lei de Improbidade, uma vez que o tratamento autônomo da Constituição sobre (i)legalidade, (i)moralidade e (im)probidade demonstra que a conduta ímproba vincula-se ao desvio de finalidade, incompatível com a modalidade culposa.
1. Justificativa do tema[1]
A jurisprudência pátria, especialmente a do Superior Tribunal de Justiça, consolidou, após idas e vindas, entendimento sobre ser indispensável a demonstração do dolo nas hipóteses dos artigos 9º e 11, da Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429, de 2.6.1992), superando posição que defendia também a modalidade culposa nesses casos. Todavia, sob a tese do “dolo genérico”, constata-se o risco de responsabilização objetiva da conduta do agente, a revelar mal ainda maior, ao menos, considerando a Constituição da República de 1988.
Por outro lado, subsiste o entendimento da modalidade culposa em relação ao art. 10, da Lei de Improbidade, uma vez que o legislador expressamente se referiu à conduta “dolosa ou culposa” que cause prejuízo ao erário.
Provocado sobre a constitucionalidade da improbidade por ato culposo, o STJ defendeu a aplicação do disposto no art. 10, pois o legislador teria, assim, conferido “maior efetividade aos princípios constitucionais da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência” (STJ. Ação de Improbidade Administrativa n. 30, Rel. Min. Teori Zavascki, DJ 28.09.2011).
A questão, contudo, merece aprofundamento.
É preciso examinar quais os desdobramentos jurídicos da distinção constitucional entre (i)legalidade, (i)moralidade administrativa e (im)probidade. Caso a modalidade culposa do ato de improbidade conflite com o tratamento constitucional da matéria, caberá aos operadores do direito instigar a reflexão dos Tribunais pátrios de modo a revisitar a posição predominante.
E este artigo assume o desafio.
2. O risco de esvaziamento do dolo nas hipóteses dos artigos 9º e 11, da Lei de Improbidade Administrativa: estudo de caso
Avanço significativo da jurisprudência pátria ocorreu com a definição de que a modalidade culposa não seria admitida nas hipóteses dos artigos 9º e 11.
Todavia, recente julgado do STJ revela o perigo da interpretação acerca do “dolo genérico”.
No julgamento do REsp n. 765.212, o ministro Herman Benjamin, relator, reformulou sua posição, aderindo ao entendimento de que apenas o dolo poderia levar à configuração do ato de improbidade. Segundo o magistrado, embora “continue acreditando ser tecnicamente válida e mais correta” a tese de que “os atos de improbidades coibidos pelo art. 11 da Lei 8.429/1992 podem se configurar por dolo ou culpa na realização da conduta”, “no terreno pragmático, a exigência de dolo genérico, direto ou eventual, para o reconhecimento da infração ao art. 11, não trará maiores prejuízos à repressão à imoralidade administrativa.”
Assim, o ministro concluiu pela ocorrência de ato de improbidade, pois o dolo (“vontade de realizar fato descrito na norma incriminadora”) estaria presente na conduta do gestor que realiza promoção pessoal, “desvirtuando a finalidade estrita da propaganda pública, a saber, a educação, a informação e a orientação social, o que é suficiente a evidenciar a imoralidade.”
Embora a fundamentação do voto tenha acolhido a tese da indispensabilidade do dolo na configuração do ato de improbidade, não houve exame do contexto que revelaria a vontade do agente em alcançar o resultado proibido, concluindo-se pela improbidade por não ser “tolerável olvidar um princípio constitucional da magnitude da impessoalidade e a vedação contida no art. 37, §1º, da Constituição da República.” E esse entendimento reformou o acórdão do Tribunal de Justiça que havia entendido pela ausência da comprovação do dolo do agente político.
O mesmo raciocínio, segundo o ministro relator, seria aplicável em relação à contratação de servidor sem concurso público, uma vez que o dolo decorreria da “inequívoca obrigatoriedade do certame (art. 37, II, da Constituição da República). É dolo in re ipsa.”
O “dolo genérico”, ao menos como aplicado no precedente em análise, blindaria o julgador do dever de motivar sua decisão a partir do contexto fático. Isto é, “no terreno pragmático”, significaria suficiente o descumprimento patente da lei para constatar a improbidade. Em outras palavras, a mera violação a norma, em relação a qual não se pode alegar desconhecimento, atestaria a conduta ímproba.
Percebe-se o perigo de o aplicador da norma ignorar o dever de motivação da decisão, o qual, no juízo de aplicação normativa, está adstrito às peculiaridades fáticas do caso, sem o que não se realiza o direito, ao menos na perspectiva do Estado Democrático de Direito.[2]
Voto proferido pelo ministro Felix Fischer, nos autos do RMS n. 19.210, destaca a relevância da motivação. Embora tenha se reportado ao dever do administrador público, a posição aplica-se integralmente à motivação judicial, haja vista que se trata de dever imposto pela Constituição da República aos agentes público lato sensu:
“Como pano de fundo desses fundamentos, está o Estado Democrático de Direito, consubstanciado na confiança quanto à legalidade e justiça das decisões administrativas, colocando cidadãos livres de descomedimentos dos eventuais administradores públicos. […]
Não obstante a clareza desses comandos jurídicos, o que se vê, rotineiramente, são atos e decisões administrativas mascaradas de movitação, na medida em que se limitam a indicar o fato e o dispositivo legal, sem elucidar por que esse fato (motivo) justifica o ato perante o Direito vigente, ou, ainda, apresenta-se um conceito jurídico indeterminado sem a devida correspondência com os motivos (fatos).” (RMS 19210/RS, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 14/03/2005, DJ 10/04/2006, p. 235)
A revelar o exercício da devida motivação, também do ministro Felix Fischer voto que concedeu a ordem no MS n. 19.433, no qual todas as peculiaridades do caso foram consideradas para se reconhecer a boa-fé de servidor público. A partir da lição de Klaus Gunther, foi ressaltado o dever de motivação no discurso de aplicação normativa:
“Todavia, como descrito, as peculiaridades do caso em apreço impõem uma decisão adequada, considerando as normas prima facie aplicáveis. É o que ensina Klaus Gunter:
‘Se toda norma válida requer um complemento coerente com todas as outras que podem ser aplicadas prima facie à situação, então o significado da norma está se alterando em cada uma das situações. Desta maneira, dependemos da história, cada momento que encaramos uma situação que não poderíamos prever e que nos força a alterar nossa interpretação de todas as normas que aceitamos como válidas.’ (Uma concepção normativa de coerência para uma teoria discursiva da argumentação jurídica. Cadernos de Filosofia Alemã, n. 6, p. 97)
Estão em pauta princípios como o da boa-fé, segurança jurídica, legalidade, entre outros, o quais podem colidir no plano abstrato das normas mas que, diante da concretude dos fatos, conduzem a uma decisão adequada para a solução do conflito.” (RMS 19.433/RN, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 07/02/2006, DJ 20/03/2006, p. 310)
E nem se diga que, em relação ao citado REsp n. 765.212 (Rel. Min. Herman Benjamin), a ausência, no acórdão recorrido, de elementos fáticos sobre a conduta do agente político corroboraria a conclusão a que se chegou, pois, caso isso tenha ocorrido, por maior razão seria inviável a reforma do acórdão, haja vista a tão prestigiada Súmula 7/STJ.
Vê-se, portanto, que superada a tese da indispensabilidade do dolo nas hipóteses previstas nos artigos 9º e 11, da Lei de Improbidade, o desafio está na devida avaliação da conduta do agente que revele a sua vontade em atingir o resultado vedado pela norma, à luz do contexto fático e não apenas da mera violação à lei, sob pena de se consagrar a responsabilidade objetiva em matéria de improbidade administrativa. Indispensável observar que de um comportamento voluntário (causa) não se pode concluir, ipso facto, necessariamente, que o resultado (efeito) tenha sido também querido direta ou indiretamente pelo agente.
E é nesse aspecto que a jurisprudência oscila.
Diferentemente do aludido REsp n. 765.212, nos autos AgRg no AREsp n. 270.857, o STJ manteve decisão pela improcedência da ação de improbidade administrativa, “por ausência dos elementos subjetivos e objetivos, porquanto não comprovada a má-fé dos agentes ou dano ao erário.”
O ato ímprobo consistiria no fato de o Município de Ponte Nova ter adquirido três retransmissores de televisão da empresa Machado Corrêa, sem o devido procedimento licitatório, razão pela qual o ministério público ajuizou a ação civil pública contra o então prefeito e outros dois servidores municipais. O STJ confirmou o entendimento do Tribunal de Justiça que partiu da premissa de que “a infringência aos ditames da Lei n. 8.666/93, por si só, não seria suficiente para a subsunção automática das condutas dos demandados aos tipos previstos na Lei de Improbidade”. E, ainda, de que “inexistindo prova de que o administrador tenha se beneficiado com as possíveis falhas, tampouco tenha delas advindo real prejuízo ao erário municipal, improcede a condenação na prática de atos de improbidade administrativa.” (AgRg no AREsp 270.857/MG, Rel. Ministro OG FERNANDES, SEGUNDA TURMA, julgado em 17/10/2013, DJe 29/10/2013).
Nesse caso, verifica-se maior atenção ao requisito do elemento subjetivo, pois não seria apenas a infringência da Lei n. 8.666/93 suficiente para configuração do ato de improbidade.
No âmbito eleitoral o tema da improbidade é igualmente relevante e preocupante, porquanto a alínea “g”, do inciso I, do art. 1º, da LC 94, prevê como causa de inelegibilidade a rejeição de contas por vício insanável que configure ato doloso de improbidade. A valoração jurídica sobre a nota de improbidade cabe à Justiça Eleitoral, porquanto os Tribunais de Contas não têm competência para tanto.
No RESpe n. 143-13 (TSE), entendeu-se pela configuração de ato doloso o fato de o candidato não ter cumprido, quando gestor municipal, “convênio firmado com o Ministério da Saúde ao promover ‘uma aquisição a menor de leite em pó e a maior de óleo de soja no âmbito do Programa de Atendimento aos Desnutridos e às Gestantes de Risco Nutricional.’”
Muito embora o acórdão regional então recorrido tenha ressaltado que se tratava de “mera imperícia do administrador”, o TSE reformou a decisão, posicionando-se pela ocorrência de ato doloso de improbidade. Segundo o Ministro Relator, “não é lícito ao administrador desconhecer as leis e os convênios aos quais sua gestão está vinculada.” E, ainda, que não se exige “o dolo específico, bastando para a sua configuração a existência de dolo genérico ou eventual, o que se caracteriza quando o administrador deixa de observar os comandos constitucionais, legais ou contratuais que vinculam a sua atuação.” (Resp. n. 143-13. Rel. Min. Henrique Neves. Publicado na sessão de 6.12.2012)
O que se vê, neste ponto, é o esvaziamento do avanço jurisprudencial sobre a indispensabilidade de conduta dolosa para as hipóteses dos artigos 9º e 11, da Lei de Improbidade, caso se aplique a tese do dolo genérico ou dolo eventual sem a devida perquirição da vontade de realizar a hipótese vedada pela norma.
3. A inconstitucionalidade da modalidade culposa do art. 10, da Lei de Improbidade Administrativa.
Para examinar a questão focada neste artigo, faz-se necessário verificar os desdobramentos da distinção entre o princípio da legalidade, moralidade e probidade administrativa para, então, saber se o art. 10, da Lei de Improbidade, ao prever a culpa na tipificação do ato ímprobo, seria inconstitucional.
Em outras palavras, a cogitada distinção teria o condão de revelar a inconstitucionalidade da modalidade culposa do art. 10, da Lei de Improbidade? Ou, ainda, seria possível que, objetivamente, ato ilegal ou imoral seja qualificado como ímprobo, ainda que o agente público não tenha desejado o resultado ilegal ou imoral?
A nomeação de parentes para cargo de provimento em comissão, por exemplo, tem sido reconhecida pelo STF como ato violador da moralidade administrativa, o que evidenciaria a possibilidade de ter sido praticado ato imoral sem ocorrência do elemento subjetivo. Tanto assim que foi determinada a exoneração dos parentes nomeados para cargos, sem que houvesse responsabilização daquele que promoveu a nomeação. Diferente a situação daquele que, uma vez alertado sobre a conduta imoral, insista na conduta.
Ainda mais visível a possibilidade de violação da legalidade sem que, necessariamente, haja elemento subjetivo na conduta do agente. Basta ver dezenas de situações em que é concedida a ordem em mandado de segurança e, pois, praticado o ato ilegal, ainda que a autoridade coatora não tenha agido com dolo ou culpa.
Com efeito, é possível falar em ilegalidade e imoralidade sem que, necessariamente, esteja em pauta a vontade de atingir resultado vedado pela norma.
A (im)probidade administrativa, por outro lado, detém característica própria que lhe confere identidade e tratamento constitucional autônomo. Não sem razão o constituinte, ao lado da moralidade e da legalidade, trata da (im)probidade administrativa:
Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante:
[…]
§ 9º – Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições
Art. 15. É vedada a cassação de direitos políticos, cuja perda ou suspensão só se dará nos casos de:
I – cancelamento da naturalização por sentença transitada em julgado;
II – incapacidade civil absoluta;
III – condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos;
IV – recusa de cumprir obrigação a todos imposta ou prestação alternativa, nos termos do art. 5º, VIII;
V – improbidade administrativa, nos termos do art. 37, § 4º.
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
[…]
§ 4º – Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível.
Art. 85. São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra:
[…]
V – a probidade na administração;
Diante do tratamento autônomo entre legalidade, moralidade e improbidade, impõe-se ao operador do direito desvelar, a partir da interpretação sistemática do texto constitucional, as diferenças consideradas pelo constituinte.
Percebe-se, claramente, que em mais de uma passagem o constituinte atrelou a (im)probidade administrativa à imposição de sanções de extrema gravidade: i) no art. 15, V, e art. 37, §4º, ao prever a suspensão ou perda dos direitos políticos; ii) no art. 37, §4º, ao dispor sobre a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário; e, no art. 85, ao disciplinar o crime de responsabilidade.
Tal constatação autoriza concluir que a improbidade administrativa, diferentemente da ilegalidade ou imoralidade, somente ocorre na perspectiva de grave abuso do direito ou do desvio de finalidade, a atrair, necessariamente, o elemento subjetivo por parte do agente público.
Caso contrário, não subsistiria diferença alguma entre (im)probidade e (i)moralidade administrativas, e até mesmo em relação à (i)legalidade.
Desse modo, vê-se sentido na afirmação de que a improbidade administrativa seria forma qualificada de ilegalidade ou imoralidade. Todavia, a forma qualificada está vinculada à noção de desvio de finalidade, a impossibilitar a modalidade culposa do agente.
É que o desvio de finalidade pressupõe, exatamente, o móvel do agente dirigido a determinado fim vedado pelo ordenamento, dolo, portanto, não sendo cabível sustentar que se almeja algo de modo culposo. Em outras palavras, é incompatível a forma culposa com o desejo de se obter determinado resultado, que se sabe ofensivo à ordem jurídica mediante certa conduta humana.
Contudo, o STJ, conforme noticiado no início deste artigo, não examina a questão em profundidade e destaca o fato de haver previsão expressa, no art. 10, da modalidade culposa. Ilustrativamente, recente decisão condenou ex-prefeito municipal que, em patente violação ao art. 42, da Lei de Responsabilidade Fiscal, contraiu obrigações de despesa nos dois últimos quadrimestres do seu mandato, sem disponibilidade de caixa para seu pagamento. Daí, ter-se concluído ter o “réu agido ao menos com culpa na gestão dos recursos públicos, o que é suficiente para o enquadramento nas condutas previstas no art. 10 da LIA.” (REsp 1252341/SP, Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, julgado em 05/09/2013, DJe 17/09/2013)
Impõe-se, à vista do exposto, aprofundar o exame da matéria considerando criteriosamente os conceitos legalidade, moralidade e probidade, e também os conceitos má-fé e boa-fé, e ainda o dolo e a culpa.
Que a lei de improbidade administrativa contempla improbidade na modalidade culposa, é obvio. Basta que se proceda à leitura de seu art. 10, caput, que reza:
“Art. 10- Constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou omissão, dolosa ou culposa, que enseje perda patrimonial, desvio, apropriação, malbarateamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades mencionadas no art. 1º dessa lei;”
Se assim é, só há sentido em discutir a admissibilidade ou não de improbidade administrativa na modalidade culposa na medida em que se possa levantar fundadas dúvidas quanto à compatibilidade do disposto no art. 10, caput, com disposições constitucionais pertinentes à matéria.
Destarte, cabe indagar: pode haver dúvidas quanto à compatibilidade da lei com a Constituição da República? Parece que sim, pois admitir improbidade na modalidade culposa significa admitir a condenação de alguém às gravíssimas sanções nela cominadas, quer tenha ou não agido com dolo, não obstante soe desarrazoado, prima facie, qualificar igualmente como ímprobas pessoas que tenham violado a ordem jurídica agindo, no que concerne ao elemento subjetivo, de forma acentuadamente desigual. Destarte, improbidade na modalidade culposa soa ofensiva ao princípio constitucional da isonomia, que postula, fundamentalmente, tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais.
Poder-se-ia dizer que a própria Lei de Improbidade admite alguma discricionariedade judicial – que não se confunde com conveniência e oportunidade do julgador – na aplicação das sanções que comina, em face também da gravidade do fato (art. 12). Mas nem de longe a Lei dá às hipóteses de dolo ou culpa relevo especial, como ocorre, por exemplo, em matéria penal.
Esse argumento, isoladamente considerado pode não se apresentar suficientemente convincente, mas, somados a outros, há de pelo menos inquietar os espíritos desarmados.
Ora, dentre outros argumentos hábeis a robustecer o estado de dúvida inicial quanto à constitucionalidade da previsão legal de improbidade culposa, pode-se invocar um de singular importância, qual seja: conquanto a Constituição da República não tenha definido improbidade, ensejando o entendimento de que à lei então cabe assim qualificar os comportamentos que melhor lhe aprouver, o fato é que essa suposta discricionariedade legislativa não é tão ampla quanto alguns supõem, pois o conceito de que a palavra improbidade é expressão verbal é, antes de tudo, conceito constitucional. E constitucionais são também os conceitos de legalidade e moralidade, razão pela qual a extensão dos mesmos há de comportar limites extraíveis da própria Constituição, e que à legislação ordinária não é dado ignorar.
Legalidade, moralidade e probidade não são expressões sinônimas. Tanto é verdade que não é toda e qualquer ofensa à ordem jurídica que enseja propositura da ação popular a título de proteção da moralidade administrativa (CR, art 5°, LXXIII) ou a aplicação das sanções que a Constituição prescreve como aplicáveis a atos de improbidade administrativa (art. 37, § 4º).
Segue-se que pode haver ofensas à ordem jurídica – ilegalidades – que não impliquem necessariamente ofensa à moralidade administrativa e muito menos ofensa à probidade.
Suponhamos que haja indeferimento de um pedido de licença que tenha ensejado ao interessado pleitear perante o Judiciário o reconhecimento do seu direito de obtê-la e que, a final, o Judiciário dê pela procedência da ação acolhendo a alegação do autor de que o indeferimento foi ilegal, ilegalidade essa decorrente de interpretação equivocada da autoridade administrativa quanto à lei a aplicar. Terá havido decisão administrativa ilegal, mas não necessariamente eivada de improbidade. Sequer ofensa à moralidade administrativa terá ocorrido.
Forçoso reconhecer, destarte, que há de haver critério jurídico hábil à identificação de atos que, além de ofensivos à ordem jurídica, sejam também não apenas ilegais, mas atos de improbidade, de sorte que o legislador não seja absolutamente livre para qualificar como sendo improbidade quaisquer ações ou omissões. Além de ofensivas à ordem jurídica, ações passíveis de serem qualificadas como improbidade são apenas aquelas que se distingam das demais por reunirem alguma nota característica peculiar a ser encontrada no próprio sistema constitucional. Se referida nota ficasse a critério do legislador ordinário, a este não se poderia, nesse aspecto, reconhecer limites extraíveis do referido sistema, o que pode ensejar, como já ensejou, exageros da lei ordinária. E sem limitações ao legislador ordinário de nada adiantaria dizer que no sistema constitucional legalidade, moralidade e probidade não são expressões sinônimas.
Mas como então extrair do sistema constitucional os núcleos conceituais de legalidade, moralidade e probidade? A resposta que nos parece racionalmente aceitável é a de que o sentido e alcance dos referidos termos ou palavras, exatamente por estarem utilizados pela Constituição, há de ser aquele da linguagem comum, consoante professam os estudiosos de hermenêutica constitucional[3], a menos que a própria Constituição lhes tivesse emprestado significações outras, o que não fez.
Destarte, legalidade é a qualidade do que é legal, do que está conforme a ordem jurídica em vigor. Moralidade é a qualidade do que está de acordo com valores dos quais se ocupa a ética, ramo do conhecimento voltado à identificação do que é bom ou mau, do que é virtude ou vício. Mas a moralidade postulada pela Constituição é, a nosso ver, moral jurídica[4], assim compreendida aquela que é consubstanciada pelos valores morais juridicizados, isto é, encampados pelo direito posto, que prestigia, por exemplo, a boa-fé, a dignidade da pessoa humana, a veracidade, a solidariedade, a honradez, dentre outros valores. Nessa ordem de raciocínio, comportamentos ofensivos à ordem jurídica, violadores de normas que juridicizam valores morais, são comportamentos ilegais agravados.
Mas a violação da ordem jurídica pode ainda apresentar-se especialmente qualificada pelo atuar com desonestidade, dolosamente, mediante fraude, de sorte a ensejar a aplicação de sanções as mais severas, porque aí sim estar-se-a à diante de improbidade administrativa, de comportamento de quem objetivou resultado de cuja especial antijuridicidade qualificada pela desonestidade tinha plena consciência.
Há que se reconhecer, portanto, diferentes graus quanto à gravidade do comportamento ofensivo à ordem jurídica. Todo comportamento, ou resultado de que seja causa, em desacordo com a ordem jurídica, ofensivo a regras e ou princípios jurídicos que a compõem caracteriza-se como ilegalidade. Se a ilegalidade implicar ofensa às normas que juridicizam valores morais, como ocorre com qualquer intencional violação da lei ou desvio de finalidade, a ilegalidade restará agravada, configurando ofensa à moralidade administrativa, ensejando até a propositura, por qualquer cidadão, de ação popular (Constituição da República, art. 5º, LXXIII). Mas se a ofensa à ordem jurídica implicar ainda desvio ético-jurídico de superlativa gravidade, consubstanciando desonestidade, referida ofensa à ordem jurídica especialmente qualificada configura, aí sim, improbidade administrativa.
Digno de nota, a propósito, que a Constituição da República quando se refere à improbidade prescreve que as sanções cabíveis, que enumera, de acentuada severidade devem ser aplicadas sem prejuízo da ação penal cabível (art. 37, § 4° última parte), e que atos do Presidente da República atentatórios à probidade na administração são crimes de responsabilidade (art. 85, V).
Também é digno de nota o erro em que alguns laboram ao confundir o comportamento imputável a alguém com o resultado de que o comportamento tenha sido causa.
De um comportamento voluntário (causa) não se pode concluir, ipso facto, necessariamente, que o resultado (efeito) tenha sido também querido direta ou indiretamente pelo agente.
O comportamento pode haver sido voluntário e, em princípio lícito, mas o resultado ilícito de que o comportamento tenha sido causa pode não haver sido querido. Não obstante objetivamente ilícito o resultado, não há que se falar em improbidade administrativa[5].
O motorista de veículo oficial que está a dirigi-lo (ação voluntária), e que, revelando imperícia diante de uma circunstância qualquer, acaba por provocar um acidente de trânsito (resultado), responderá pelo dano causado inclusive ao veículo oficial, mas a título de culpa, e não de dolo. Mesmo assim terá cometido improbidade nos termos do art. 10, caput, da Lei de Improbidade, já que ensejou, embora culposamente, perda patrimonial? É evidente que não.
O agente de trânsito que lavra auto de infração, o faz voluntariamente. Mas se o faz supondo que ocorreu infração que em rigor não existiu, equivocando-se, por exemplo, quanto a haver sido desrespeitado sinal de trânsito, terá expedido voluntariamente ato administrativo inválido sem que tenha querido prejudicar indevidamente o suposto infrator. Haverá de responder por improbidade por ofensa ao princípio da legalidade, nos termos do art. 11, caput, da Lei de Improbidade? Parece evidente que não.
Equívoco comum é ignorar que improbidade, além de pressupor ofensa à ordem jurídica e à moralidade administrativa, pressupõe, repita-se, também grave desvio ético, inexistente nos casos de culpa.
Como falar em grave desvio ético sem que o agente ao qual se imputa ofensa à ordem jurídica tenha se conduzido sem propósito viciado, eivado de má-fé, sem consciência da antijuridicidade do resultado a que, a final, tenha dado causa? Só há grave desvio ético quando alguém atua revelando, repita-se, móvel viciado, má intenção, desígnio moralmente reprovável, a ensejar reação mais severa da ordem jurídica do que a prevista para fulminar de nulidade atos meramente em descompasso com a ordem jurídica, ou para apenar administrativamente um servidor ou obrigá-lo à reparação civil do dano causado.
Ofensas à ordem jurídica podem ser detectadas objetivamente, até independentemente de dolo ou culpa, mas a qualificação da ilegalidade comporta gradação consoante o elemento subjetivo na medida de sua censurabilidade. Em havendo ofensa à ordem jurídica qualificada pela especial censurabilidade ético- jurídica de quem se revela desonesto, aí sim cabe considerar a existência de improbidade, e não mera ilegalidade ou ofensa apenas à moralidade administrativa, em razão mesmo do princípio da proporcionabilidade que também condiciona o exercício da própria função legislativa.
Por fim, merece especial atenção o fato de nosso ordenamento jurídico, sabidamente, atribuir à boa-fé especial relevância jurídica, nos mais variados ramos do direito, público e privado, dispensando aos que dela estejam imbuídos tratamento diferenciado daquele reservado àqueles que atuam de má-fé.
Afinal, grave desvio ético-jurídico ensejador de qualificação como improbidade administrativa, mercê de sua superlativa censurabilidade, pressupõe exercício de livre arbítrio, de opção por atuar objetivando conscientemente um resultado sabidamente ilícito e desonesto.
O Direito chega até a proteger os que agem de boa-fé e penaliza os que obram de má-fé, razão pela qual não se pode admitir que a Lei de Improbidade Administrativa ignore ou minimize referidos elementos subjetivos antagônicos, dispensando em face de ambos substancialmente o mesmo tratamento, como faz expressa e inconstitucionalmente em seu art. 10, caput.
3. Conclusão
Em síntese, afirma-se que o dolo, nas hipóteses dos arts. 9 e 11, da Lei de Improbidade, impõe ao julgador o dever de demonstrar, mediante devida motivação, que o agente pretendeu alcançar o resultado vedado pela norma, ou seja, não basta que tenha ocorrido violação à lei, ainda que patente. Conforme salientado, de um comportamento voluntário (causa) não se pode concluir, ipso facto, que o resultado (efeito) tenha sido também querido direta ou indiretamente pelo agente, sob pena de responsabilização objetiva em matéria de improbidade administrativa.
Quanto à modalidade culposa, prevista no art. 10, caput, da Lei de Improbidade, verificou-se, a partir do tratamento constitucional autônomo entre legalidade, moralidade e probidade, violação à Constituição. Em outras palavras, a leitura sistemática do texto constitucional revela que a improbidade é forma qualificada de descumprimento da moralidade administrativa, vinculada ao desvio de finalidade, que, por sua vez, é incompatível com a culpa.
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Márcio Cammarosano é doutor e mestre em Direito Administrativo (PUC-SP). Coordenador do curso de especialização em Direito Administrativo da PUC-SP, onde é professor na graduação e pós-graduação, Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Administrativo (IBDA). Presidente da Comissão de Estudos de Direito Administrativo do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP). Advogado.
Flávio Henrique Unes Pereira é doutor e mestre em Direito Administrativo (UFMG). Coordenador e professor do curso de pós-graduação em Direito Administrativo do IDP (Brasília). Presidente do Instituto de Direito Administrativo do Distrito Federal (IDADF). Foi assessor de Ministros do STJ, TSE e STF. Advogado.
Foto: Marco Bellucci.
Notas:
[1] Artigo publicado na Revista de Direito Administrativo Contemporâneo – ReDAC. Fevereiro/2014. São Paulo: Revista dos Tribunais.
[2] Sobre o juízo de aplicação normativa e o dever de motivação da decisão: PEREIRA, Flávio Henrique Unes. Sanções Disciplinares: o alcance do controle jurisdicional. Belo Horizonte: Forum, 2007. E, também: PEREIRA, Flávio Henrique Unes. Conceitos jurídicos indeterminados e discricionariedade administrativa à luz da Teoria da Adequabilidade Normativa. In Revista CEJ, Brasília, n. 36, p. 30-38. jan./mar. 2007.
[3] Regina Maria Macedo Nery Ferrari, em sua obra Direito Constitucional, editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 92, anota: “As normas constitucionais apresentam singularidade quanto a seus termos, e isto levou Geraldo Ataliba afirmar que “a interpretação da lei constitucional deve ser feita de maneira diversa da do direito ordinário, porque sabemos que no direito constitucional a exceção é o emprego de termos técnicos. Na norma constitucional, havendo dúvida sobre se uma palavra tem sentido técnico ou significado comum, o intérprete deve ficar com o comum, porque a Constituição é um documento político; já nos setores do direito ordinário a preferência recai sobre o sentido técnico, sendo que a acepção comum só será admitida quando o legislador não tenha dado elemento para que se infira uma acepção técnica”. Ver também J.J Gomes Canotilho, in Direito Constitucional e Teoria da Constituição, ed Almedina, 3° ed, 1998, p. 1143, nota de rodapé n° 16, que anota: “Na jurisprudência e doutrina americanas os dois cânones de “constitucional construction” mais utilizados têm sido os seguintes: (1) as palavras ou termos da constituição devem ser interpretados no seu sentido normal, natural, usual, comum, ordinário ou popular; (2) quando se utilizam termos técnicos eles devem ter sentido técnico”.
[4] Ver Márcio Cammarosano in “O princípio constitucional da moralidade e o exercício da função administrativa”, Belo Horizonte, Editora Fórum, 2006; “Moralidade Administrativa” in Tratado de Direito Administrativo, coordenação de Adilson Abreu Dallari e outros, Ed. Saraiva, 2013, vol 1, pp. 256 a 275.
[5] Nesse sentido Sirlene Arêdes, ao destacar a intenção do agente que pratica ato de improbidade: “Se a improbidade administrativa caracteriza-se pela busca de um fim não aceito pela ordem jurídica ou pelo uso de um meio ilícito e volitivamente escolhido, não há como existir na modalidade culposa, uma vez que a culpa só existe quando o fim buscado pelo agente é lícito.” (ARÊDES, Sirlene. Responsabilização do Agente Público: individualização da sanção por ato de improbidade administrativa. Belo Horizonte: Forum, 2012, p. 168).
[…] Fonte: Os Constitucionalistas […]