26.11.13
Fundamentação e o direito a uma resposta
Em determinados momentos da vida, nos damos conta de que nossa atenção fica muito tempo voltada a problemas difíceis, e deixamos de lado questões mais simples, ainda que corriqueiras. Tentando responder ao complexo, acabamos nos esquecendo do básico, sem nos dar conta de que, se não nos resolvermos em relação ao que é básico, dificilmente daremos conta do que é complexo.
É o que ocorre, por exemplo, com o problema da fundamentação das decisões judiciais. Por aqui, tenho enfatizado questões como saber como decidir com base em princípios jurídicos, saber como deve ser a relação entre lei e jurisprudência, se o juiz deve ouvir a sociedade, se súmulas vinculantes têm caráter normativo, etc. Faço um mea culpa: aqui mesmo na coluna Processo Novo acabo me estendendo em temas dessa natureza, que não podem ser exauridos em uma, senão em várias, muitas e repetidas voltas ao tema[1].
Saber como deve, democraticamente, ser fundamentada e controlada a decisão judicial é um dos temas sensíveis entre jurisdição constitucional e direitos fundamentais. Não se trata apenas de algo que deve constar do Estatuto da Magistratura, como, à primeira vista, poderia parecer dizer o texto constitucional[2], mas de verdadeira garantia constitucional. Concordo com o Prof. Lenio Streck, que afirma que ao dever de fundamentar as decisões corresponde o direito fundamental a uma resposta adequada ao sistema normativo, a partir da Constituição[3].
Como, contudo, tratar com firmeza de questões um pouco mais complexas relacionadas à motivação dos julgados se nem mesmo superamos o mais rudimentar, que é o direito (a que corresponde o dever) a uma resposta, uma mera resposta? Ora, sequer esse direito vem sendo reconhecido por nossos tribunais.
Coloque-se a seguinte questão: tendo o pedido (ou o recurso, por exemplo) vários fundamentos, cada um deles hábil a levar ao seu acolhimento, pode ser julgado improcedente (ou o recurso ser desprovido) sem que sejam todos eles examinados?[4]
Tenho a impressão de que qualquer estudante de direito responderia negativamente a essa questão. Afinal, se meu pedido tem os fundamentos A, B, C e D, não pode ser considerada fundamentada a decisão judicial que o julga improcedente sem examinar cada uma dessas alegações[5].
Tal não é, contudo, a orientação dominante em nossa jurisprudência. Mesmo o Supremo Tribunal Federal, a respeito, decidiu que “o art. 93, IX, da Constituição Federal exige que o acórdão ou decisão sejam fundamentados, ainda que sucintamente, sem determinar, contudo, o exame pormenorizado de cada uma das alegações ou provas, nem que sejam corretos os fundamentos da decisão”[6].
Penso, diversamente, que não pode a pretensão da parte ser rejeitada sem que todas as alegações que poderiam levar ao seu acolhimento sejam examinadas. Em termos simples: se meu pedido (ou defesa) assenta-se em cinco fundamentos, meu pedido (ou defesa) só pode ser rejeitado se cada um desses fundamentos for examinado e rejeitado.
O projeto de novo Código de Processo Civil, quanto a esse aspecto, corretamente estabelece que “não se considera fundamentada a decisão, sentença ou acórdão que […] não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador”[7]
O Supremo Tribunal tem, agora, a chance de corrigir o rumo das coisas. Recentemente, foi admitido recurso extraordinário com repercussão geral em que se debate a seguinte questão: em recurso, a parte suscitou várias questões, mas o tribunal de origem não as analisou; logo, em razão da ausência de prequestionamento, o recurso extraordinário não seria cabível. A repercussão geral foi reconhecida[8], e o recurso aguarda julgamento.
O direito a uma resposta é o mínimo, o mais raso, que decorre do artigo 93, IX, da Constituição. Quando o Supremo Tribunal Federal diz que nem todos os fundamentos de meu pedido precisam ser examinados e julgados, acaba por dizer que eu não teria direito a uma resposta. Esse modo de pensar, para mim, contraria a Constituição.
O modo básico do dever de fundamentação às decisões judiciais está em decidir as questões que poderiam levar ao acolhimento daquilo que pede a parte, não podendo ser considerado fundamentado o julgado que rejeita o pedido ou recurso da parte, sem examinar cada uma de tais questões.
Se não conseguimos satisfazer a isso, tenho dúvidas de que teremos condições de solver problemas um pouco mais complexos, no que diz respeito à fundamentação das decisões judiciais.
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José Miguel Garcia Medina é doutor em Direito, advogado, professor e membro da Comissão de Juristas nomeada pelo Senado Federal para elaboração do anteprojeto de Código de Processo Civil. Acompanhe-o no Twitter, no Facebook e em seu blog.
Foto: Brian Auer.
Artigo publicado originalmente na revista Consultor Jurídico, edição 25/11/2013, sob o título ‘Fundamentação de decisões ainda não dá conta do básico’.
Notas:
[2] A Constituição tratou da fundamentação da decisão judicial no artigo 93, IX. De acordo com o caput desse artigo, seus incisos dispõem sobre princípios a serem observados pela lei complementar que disporá sobre o Estatuto da Magistratura.
[3] Ver, a respeito, vários dos textos da Coluna Senso Incomum, aqui na ConJur, bem como a obra Verdade e Consenso, p. 619.
[4] A questão não se coloca do mesmo modo se, havendo vários fundamentos que conduzem à procedência do pedido, este é acolhido com base em apenas um deles, sem que os demais sejam examinados. Aqui, dedicamo-nos à hipótese inversa.
[5] Tenho defendido esse ponto de vista em vários trabalhos, em que o problema atinente à fundamentação das decisões judiciais é examinado com mais profundidade (cf., dentre outros, Constituição Federal comentada, 2.ed., Ed. RT, comentário ao art. 93; Código de Processo Civil comentado, 2.ed., Ed. RT, comentário ao art. 458).
Em 27/11/13,
Compartilho o inconformismo do autor, lembrando que, para os doutrinadores mais refinados, uma justificação última e profunda exige que se fundamente a própria fundamentação. Caso contrário, o que temos, mesmo, nessas pseudo-justificações, é aquele “resíduo incômodo de voluntarismo”, que se escondem atrás de decisões sintéticas e apressadas, com as quais os “julgadores” não julgam, antes se livram dos processos para, orgulhosamente, se considerarem produtivos e, só por isso, dignos de promoções por merecimento. Parabéns ao autor por trazer a discussão essa “patologia judicial”, que desserve à Justiça, na medida em que não dá a cada um o que é seu.
A mim essa questão de não se apreciar todas as questões fáticas que contribuem para uma devida contextualização da pretensão material, acaba não só por prejudicar um amplo exercício do contraditório, como por efetivar uma Tutela Jurisdicional, talvez fragmentada e por desdobramento uma resolução do mérito defasada frente ao não enfrentamento, por completo, do Direito afirmado.