Por Oscar Vilhena Vieira
3.05.14

Experimentalismo judicial

 

Devem os juízes interferir na condução de políticas públicas levadas a cabo pelo Poder Executivo? Se a resposta for positiva, qual a melhor forma de fazê-lo? Em dezembro de 2013 a Câmara Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo, numa decisão retumbante, determinou que o município de São Paulo deveria criar, até 2016, nada menos que 150 mil novas vagas em creches e em pré-escolas, para crianças de zero a cinco anos de idade. Reformou, assim, decisão de primeira instância que acolhia o argumento da prefeitura de que o Judiciário deveria ficar calado quando o tema forem as políticas públicas.

A principal inovação desse caso não está, no entanto, na decisão do tribunal interferir na política pública ou mesmo na contundência da “obrigação de fazer” imposta ao Executivo. Original foi a forma como esse litígio, liderado pela Ação Educativa, foi conduzido. Especialmente a maneira pela qual o tribunal determinou que sua decisão deverá ser implementada.

Ao receberem o recurso, ao invés de emitirem uma sentença pretensamente “satisfativa”, pondo “fim” ao processo, sem necessariamente resolver o problema, os desembargadores decidiram convocar uma audiência pública, com participação de autoridades, especialistas e representantes da sociedade civil. Buscou-se ainda uma conciliação entre as partes. Como isso não foi alcançado, decidiu-se que a prefeitura, ao não assegurar vagas suficientes para todas as crianças em idade pré-escolar do município, estava afrontando a Constituição Federal. E se o Executivo não cumpre a sua obrigação na proteção ou promoção de um direito fundamental, cabe ao “Poder Judiciário, quando provocado, agir para resguardá-lo”. O princípio da separação de Poderes não pode servir de escudo para que o administrador deixe de realizar suas obrigações, “desrespeitando direitos”.

O dilema em casos como esse, no entanto, é como impor uma obrigação complexa ao Executivo, sem substituí-lo na própria formulação e implementação da solução? Afinal, não só foi o prefeito eleito para fazer essas escolhas políticas e financeiras, como é a prefeitura que dispõe do corpo técnico para implementá-las.

A solução não poderia ser mais criativa. Determinou o tribunal que a própria prefeitura elaborasse um plano, com prazo determinado que acaba de expirar, para a criação das 150 mil vagas, deixando claro que a expansão da rede deverá atender aos diversos parâmetros de qualidade no ensino estabelecidos pela legislação e pelos Conselhos Nacional e Municipal de Educação. Mais do que isso, determinaram os desembargadores que a Coordenadoria da Infância do tribunal ficaria incumbida de monitorar a implementação do plano, em articulação com a sociedade civil, o Ministério Público, a Defensoria etc., “seja no tocante à criação das novas vagas, seja no referente ao oferecimento de educação de qualidade”. A primeira reunião desse comitê ocorreu na semana que passou.

O Tribunal de Justiça de São Paulo parece ter criado, com essa decisão, de natureza gerencial e experimental, uma forma inovadora e mais efetiva para lidar com os desafios cada vez mais complexos na implementação de direitos sociais. O sucesso desse caso poderá determinar um novo padrão de atuação do Poder Judiciário no controle das políticas públicas no Brasil.

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Oscar Vilhena Vieira é professor da Direito GV.

Artigo publicado originalmente na Folha de S.Paulo, edição 3/5/2014.

Foto: Marcio Sartorello.



2 Comentários

  1. Carina Barbosa Gouvêa disse:

    Extraordinário, aqui, nitidamente se percebe uma tentativa de construtivismo judicial em que se possa apresentar
    como ferramenta mais poderosa na garantia de direitos socioeconômicos; uma visão associada ao ativismo dialógico, a uma jurisdição comprometida com o estímulo à autonomia do indivíduo, e por via de consequência, o reforço à democracia. (VALLE; GOUVÊA, 2014.)

  2. Vanice Regina Lírio do Valle disse:

    O exercício de “jurisdição supervisora”, onde o que se determina é a formulação da política pública por quem de direito, com o acompanhamento pelo Judiciário, é experiencia já identificada na Colombia e no Canadá.
    A prática jurisdicional mais afinada com a construção aberta da solução; saindo da lógica de Ulpiano, parece mais consentânea com a realidade de hoje e a complexidade dos problemas judicializados.
    Resta ainda ter em conta a matricialidade entre as políticas públicas. Isso porque uma decisão que conclui por “passar a limpo” o problema de creches e pré-escola, como é o caso presente; cria uma prioridade entre direitos fundamentais assegurados constitucionalmente – todos os esforços se voltarão para a criação de 150.000 vaga em creche, em detrimento de outros programas públicos em andamento que se orientem igualmente à proteção de direitos fundamentais.