9.01.18
Eu sei o que vocês fizeram no verão passado
Por Luis Felipe Salomão
“A história é um labirinto.
Acreditamos saber que existe uma saída, mas não sabemos onde está.
Não havendo ninguém do lado de fora que nos possa indicá-la, devemos procurá-la nós mesmos.
O que o labirinto ensina não é onde está a saída, mas quais são os caminhos que não levam a lugar algum”.
Norberto Bobbio
O título remete a um clássico do cinema da década de 90, e nos lembra que a história é mesmo um grande labirinto.
Em outro vértice, para reflexão que uma resenha anual exige, procurei sair do lugar comum dos fatos marcantes e dos julgados mais importantes – além das projeções para o ano vindouro –, e então tentar realizar uma meditação livre, descompromissada, tendo como eixo apenas os pontos que reputo mais importantes para o Judiciário no momento.
Lembrei-me da escultura retratando a imagem do Deus romano Jano, que chama a atenção no Museu do Vaticano. Destronado, Jano passou a ser dotado de rara prudência, permitindo que visse sempre o passado e o futuro diante de seus olhos, motivo pelo qual é representado com duas caras voltadas em sentidos inversos. O mês de janeiro (januarius), ao qual o rei Numa deu o seu nome, era consagrado a Jano. Deus romano das mudanças e transições, Jano é o deus dos inícios, das decisões e escolhas. Mas é também o Deus da paz, da reflexão, assim acreditavam os antigos.
O momento atual para o Judiciário brasileiro requer muita ponderação e equilíbrio. Uma reflexão sobre o rumo até aqui, e as estradas a serem percorridas.
Desde o pós-guerra (1945), o mundo vem experimentando o que se denomina de judicialização da vida, talvez uma reação à barbárie da guerra e às atrocidades ali cometidas contra os direitos fundamentais. A resposta da humanidade foi buscar soluções de conflitos de maneira civilizada.[1]
No caso brasileiro, esse fenômeno da judicialização desenfreada (das relações sociais, políticas, econômicas, e de toda ordem)[2] experimentou incremento considerável diante da Constituição de 1988, bastante descritiva em direitos, apontando o Judiciário como o guardião de todas as promessas constitucionais pós ditadura. Além do mais, no Brasil, não houve – salvo raras exceções -, uma política pública adequada para implementação de soluções extrajudiciais de conflitos.[3]
Na minha trajetória profissional de mais de 30 anos, talvez este seja o momento mais difícil para o Judiciário. É o poder garantidor dos direitos individuais, ao mesmo tempo em que é aquele que tem que aplicar as penalidades para as pessoas que se distanciam do cumprimento da lei.
Essa tensão está nítida na quadra atual, neste milênio da pós-modernidade e das relações liquidas[4], e, no entanto, os conceitos estão de certa forma baralhados.
A sociedade terá que se perguntar que tipo de juízes deseja possuir em seus quadros. Se quer juízes independentes realmente ou se quer juízes que possam ser substituídos, não atendendo o que se espera deles.
De outra parte, acredito que os juízes terão que pensar um pouco mais sobre a questão da influência da mídia e das próprias forças vivas da sociedade em relação ao resultado dos julgamentos.
Hoje não há mais, segundo penso, a divisão clássica – no âmbito penal – entre juízes garantistas ou punitivistas. O que há são juízes que cumprem a lei e respeitam os direitos fundamentais, e outros que julgam para além da lei e da prova dos autos, com a ânsia de fazer justiça.
Nesse passo, outro ponto sobre o qual temos que pensar é quanto ao ativismo. Que tipo de juiz a sociedade espera? Aquele que supre lacuna do Executivo para também se arvorar em legislador, sem a legitimidade do voto? É o juiz que aplica a lei incondicionalmente? A “boca da lei”. Ou é o juiz que a interpreta, que dá vida à lei, que torna efetiva a cidadania?
Em determinadas questões, o Congresso tem dificuldade para avançar, como por exemplo o tema do aborto.
Em quase todas as Supremas Cortes do mundo este assunto é discutido, porque divide a sociedade e o parlamento não tem condição de legislar. Nessa posição contramajoritária tem papel o Judiciário.
Nas uniões homoafetivas também penso que o Judiciário tem que cumprir um papel, para afirmar o direito das minorias, apenas para mencionar outro exemplo. No entanto, isso está sendo confundido, porque o Judiciário é demandado para funções que não são suas efetivamente.
Regular política pública é atribuição do Executivo. Função de criar lei é do Legislativo. O Judiciário é quem dá vida à lei, mas ele não pode funcionar para além da lei.
Outra reflexão que trago nesta virada de ano é sobre a seleção e formação do juiz.
Todas as carreiras, em geral, já sofrem e vão sofrer cada vez mais o enorme impacto da tecnologia. Então, o profissional do direito vai ter que se redescobrir, porque a vida social está mudando, as relações de emprego já não são mais como eram antes.
Tudo vai mudar, vai estar na palma da mão com um aplicativo. Inteligência artificial e blockchain. Os currículos das universidades também terão que ser modificados.
Os concursos para a magistratura sofrerão impacto. O profissional que vai ser recrutado para ser juiz terá uma mudança de perfil. Ele já vem sendo modificado ao longo desses últimos anos.
Se olharmos as pesquisas, o perfil do juiz logo depois da Constituição de 1988 para o de hoje é completamente diferente.
Fenômenos como o ingresso de pessoas cada vez mais jovens e de mais mulheres na magistratura já causaram impacto. E olhando em perspectiva para o futuro, a tecnologia também vai causar um forte impacto. Então vai ser outro tipo de profissional que será selecionado, mais afeito a essa ideia da tecnologia e dessas novas relações sociais, porque o mundo mudou e os juízes estão mudando.
Não há Judiciário bom, funcionando bem, em nenhum lugar do mundo, se não houver juízes permanentemente bem treinados e adequadamente selecionados. Fundamental para o desenvolvimento do Judiciário é a figura humana do juiz.
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Luis Felipe Salomão é ministro do STJ desde junho de 2008. Foi presidente da Associação dos Magistrados do Estado do Rio de Janeiro (Amaerj) e secretário-geral da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB). Tem pós-graduação em Direito Comercial. Foi promotor de Justiça do Estado de São Paulo, juiz de Direito e desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.
Publicado originalmente no blog do Frederico Vasconcelos, edição 8.1.2018.
Foto: Gustavo Lima/STJ/Flickr.
Notas:
[1] Impressiona a precisa reflexão de Cappelletti: “Não é necessário ser sociólogo de profissão para reconhecer que a sociedade (podemos usar a ambiciosa palavra: civilização?) na qual vivemos é uma sociedade ou civilização de produção em massa, bem como de conflitos ou conflituosidades de massa (em matéria de trabalho, de relação de classes sociais, entre religiões, etc.)” – CAPPELLETTI, Mauro. Formações Sociais e Interesses Coletivos diante da Justiça Civil. In: Revista de Processo. V. 2, n. 5, p. 128-159. São Paulo: Revista dos Tribunais, jan-mar 1977, p. 130.
[2] Conferir o pioneiro livro “Corpo e alma da magistratura brasileira”, VIANNA, LUIZ WERNECK e CARVALHO, MARIA ALICE, 1997, Revan.
[3] “Participação e Processo” – coordenação de Ada Pellegrini Grinover, Candido Rangel Dinamarco, Kazuo Watanabe, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1988.
[4] “Modernidade líquida”, Bauman Zygmunt – 2000, Zahar Editora.