5.09.10
Assembleia Constituinte ilegítima
JOSÉ AFONSO DA SILVA
Volta e meia aparece alguém com a ideia de convocar uma Assembleia Constituinte sem que nem para quê. Agora, quer-se uma Constituinte para fazer as reformas políticas que o Congresso Nacional não realiza, reformas sobre as quais nem sequer existe consenso.
O raciocínio é este: se o Congresso não faz, convoquemos uma Assembleia Constituinte para fazer.
Pena que tenha sido a candidata Marina Silva a reinventar essa história, reafirmada nesta Folha (28/8, “Candidatos discutem nova Constituinte”, Poder): “Propus uma Constituinte exclusiva para que possamos realizar as reformas. Esta é a única forma de sairmos desse processo vicioso para um processo virtuoso”.
Que processo vicioso é esse, ela não disse. Será o fato de o Congresso não votar as reformas? E quem garante que a dita Assembleia exclusiva o fará? A ilustre candidata, sempre tão lúcida, não percebeu que uma tal Assembleia, se for mesmo Constituinte, não se limitará aos propósitos de sua convocação.
Se é exclusiva, não ficará adstrita às precondições e do desejo de destruí-la de sua convocação. Ela só vai servir aos interesses dos conservadores que nunca aceitaram a Constituição de 1988 e sempre estão engendrando algum meio para desfazer as conquistas populares que ela acolheu.
Não existe Assembleia Constituinte desvinculada do poder constituinte originário, que é o poder supremo que o povo tem de dar-se uma Constituição; energia capaz de organizar política e juridicamente a nação, por meio de Constituição.
Quando surge uma situação constituinte, ou seja, situação que reclama a criação de nova Constituição, que consagre nova ideia de direito, como ocorreu no Brasil no início dos anos 80, o espírito do povo se transmuda em vontade social e reivindica a retomada do seu direito fundamental primeiro, qual seja, o de se manifestar sobre o modo de existência política da nação pelo exercício do poder constituinte originário.
Sem uma ruptura da ordenação constitucional existente, não há o pressuposto essencial para a convocação de Constituinte alguma, exclusiva ou não. Quando existe uma Constituição legítima, como a Constituição de 1988, a ideia de convocar Constituinte não passa de jogo dos interesses contrariados por ela e do desejo de destruí-la.
O poder constituinte originário inseriu na Constituição os modos pelos quais ela poderia ser modificada: o processo de revisão (no art. 3º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias), realizado e esgotado, e o processo de emendas (art. 60 da Constituição).
Este, hoje, é o único meio legítimo para reformar a Constituição. Fora dele é fraude, porque aí se prevê simples competência para modificar a Constituição existente, competência delegada exclusivamente ao Congresso Nacional pelo poder constituinte originário, que não o autorizou a transferi-la a outra entidade. Se o fizer, comete inconstitucionalidade insanável.
A Colômbia, em 1977, convocou Assembleia exclusiva para a reforma de sua Constituição, que também disciplinava, por outra forma, o processo de alterações formais.
O ato de convocação daquela Assembleia foi declarado inconstitucional pela Sala Constitucional da então Corte Suprema colombiana. Essa é a solução que também se espera do Supremo Tribunal Federal, caso se efetive a convocação que as duas candidatas à Presidência da República suscitam.
______________
JOSÉ AFONSO DA SILVA, advogado constitucionalista, é professor aposentado da Faculdade de Direito da USP e autor de “Curso de Direito Constitucional Positivo”, entre outras obras. Foi secretário da Segurança Pública (governo Mário Covas).
Artigo publicado na Folha de São Paulo, Tendências/Debates, edição de 04/09/2010.
[…] This post was mentioned on Twitter by Francisco Mendes and Renato Freitas, Israel Nonato. Israel Nonato said: Assembleia Constituinte ilegítima, por José Afonso da Silva http://bit.ly/arh9qc (via @Os_Constitucion) […]
Irrefutável a argumentação deste grande jurista que é JAS.
Aliás, indissociável Constituinte de Poder Constituinte Originárioa, e a este respeito, merece transcrição as advertências de Donoso Cortez:
“El poder constituyente no puede localizar-se por el legislador, ni formularse
por el filósofo: porque no cabe em los libros y rompe el quadro de lãs
constituciones; si aparece alguna vez, aparece como el rayo que rasga el seno
de la nubre, inflama la atmosfera, hiere a la víctima y se extingue” (Tradução
livre: “O Poder Constituinte não pode ser localizado pelo legislador nem
formulado pelo filósofo: porque não cabe nos livros e rompe o quadro das
Constituições; se aparece alguma vez aparece como o raio que rasga o seio da
nuvem, inflama a atmosfera, fere a vítima desaparece”(Donoso Cortez apud BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo:
Malheiros, 2001,p.126)
Sem ruptura institucional não pode haver, não há como haver legitimamente a manifestação do Poder Constituinte Originário, e originário porque diferente das previsões expressas de mudança.
[…] como a do ilustre catedrático em Direito Constitucional pela USP José Afonso da Silva, em um artigo para a Folha de São Paulo (e olha que a Marina Silva queria só para a Reforma Política), que vale a pena ser […]