Por Conrado Hübner Mendes
17.05.15

A voz solitária do tribunal

 

Por Conrado Hübner Mendes

Assistimos há poucas semanas um novo episódio da luta contra o trabalho escravo no Brasil, missão protagonizada pelo Ministério do Trabalho e pela Secretaria de Direitos Humanos do Governo Federal (MTE e SDH). Estima-se que o país tenha hoje mais de 150 mil trabalhadores submetidos a condições análogas à escravidão. Uma das principais ferramentas de combate ao fenômeno é a chamada “lista suja do trabalho escravo”. Este cadastro dá transparência aos nomes das empresas descobertas por fiscais, pois bancos públicos e privados, em cooperação com o poder público, podem optar por fechar suas linhas de financiamento, o que de fato o fizeram nesses anos.

Essa política, criada em 2003 por portaria ministerial e aperfeiçoada por outras que a sucederam, vem sendo aclamada por instituições como as Nações Unidas e a Organização Internacional do Trabalho. Não passou, contudo, ilesa de contestações. Além de outras instâncias judiciais, o STF foi provocado, por três vezes, a se manifestar sobre a constitucionalidade da política.

Somente na última ação, e numa velocidade incomum, uma resposta foi emitida pelo STF; em decisão liminar da presidência da corte, em pouco mais de 24 horas após a propositura da ação, em meio ao recesso judicial no fim de dezembro de 2014, a política foi suspensa. A lista saiu do ar, e as empresas que lá constavam voltaram a bater às portas das fontes de financiamento que permaneciam secas.

O último ato dessa breve linha história aconteceu há pouco, por iniciativa de nova portaria interministerial do MTE e SDH. A portaria ressuscita a lista suja e, em resposta ao STF, é mais meticulosa na explicitação de sua base jurídica. Nos meios jornalísticos, foi recebida como uma tentativa de “driblar o STF”.

O resgate da política deve ser celebrado, mas com cautela. Afinal, não se pode perder de vista os danos concretos e os prejuízos simbólicos que a liminar do STF causou em seus três meses de vida. Há de se perguntar, sobretudo, o que ela sinaliza para o futuro.

A liminar pecou por seu caráter inoportuno e por sua fundamentação ligeira. Inoportuna porque, sem a prudente consulta ao plenário do tribunal, desestruturou um programa que vicejava há anos. Tratou como urgente, a ponto de não poder esperar o fim do recesso judicial, o que até então era conduzido em rito ordinário. Entendeu que o perigo de injusto prejuízo econômico das empresas constantes da lista teria prioridade sobre outro perigo, este não considerado, de expansão do trabalho escrava e implosão burocrática do programa. O primeiro, se comprovado, poderia ser indenizado. O segundo constitui dano intangível, insuscetível de reparação monetária.

Ligeira porque invocou, de maneira telegráfica, os direitos à legalidade e à ampla defesa, mas não demonstrou, em resposta aos contra-argumentos, onde estava a violação. Seu distanciamento retórico da potencial tragédia que poderia decorrer da decisão é preocupante. Não levou em conta, por exemplo, as numerosas fontes legais das quais se deriva o poder de fiscalizar e de divulgar o cadastro, tampouco examinou o processo administrativo da autuação fiscal. Não levou em conta que a divulgação de cadastros, com base legal similar à que possuem o MTE e SDH, é prática corriqueira no poder público. Divulgar decorre do dever de publicidade, um ato declaratório modesto, mas transformador.

A engenhosa política pública merecia mais do que 24 horas de reflexão e mais do que quatro páginas de fundamentação de uma liminar monocrática em controle de constitucionalidade, um modelo decisório pernicioso para a estatura do STF. O STF é uma corte monocrática por mais de 90% do seu tempo. Ainda não demos suficiente atenção a essa patologia. Não há corte constitucional no mundo em que um juiz, sozinho, em nome da corte, a título de tomar uma decisão urgente, se intromete de modo tão agudo numa política pública. Dá combustível para toda sorte de crítica à judicialização da política, pois judicializa mal. E assim o tribunal não se ajuda.

Por meio da nova portaria, o governo não “dribla o STF”, pois este não é um adversário a ser driblado, mas um interlocutor a ser escutado. Havendo boas razões, um interlocutor a ser respondido. A nova norma não é um desafio malandro ao tribunal, tal como o mau jornalismo a reportou, mas um ato de respeito de quem leva a sério o seu papel na separação de poderes, arranjo que estimula essas fricções interinstitucionais.

Com a nova portaria a política renasce com força, por criatividade jurídica e persistência política do MTE e SDH. Ensina que não se deve deixar de disputar, por deferência passiva ao STF, o melhor significado da Constituição. Este significado se constrói e se acomoda ao longo do tempo, como produto da interação de muitos atores, não pela voz solitária do tribunal.

Enquanto isso, a prática abjeta da escravidão, há mais de um século no mundo das leis, permanece firme no mundo da vida. Ferramentas poderosas como a lista suja, por certo, precisam respeitar a Constituição. Derrubá-la repentinamente, porém, não foi o recado judicial mais construtivo para o seu aperfeiçoamento.

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Conrado Hübner Mendes é professor de Direito Constitucional da USP.

Artigo publicado originalmente no Estado de S. Paulo, edição de 9.5.2015.

Foto: Nelson Jr./SCO/STF.



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