19.02.10
A prisão do Governador e a possibilidade de intervenção federal
POR EDMUNDO PEREIRA CORREIA*
Num Estado Federal como o nosso é reconhecida a autonomia dos Estados-membros que implica na descentralização do poder, tanto administrativa quanto política. Assim, o Estado-membro pode legislar com as limitações impostas pela Constituição Federal. No tocante à soberania, os Estados-membros abrem mão dela em favor da União, sendo-lhes vedado o direito de secessão, cabendo a esta, em nome de todos os demais, exercer a devida coerção, se necessária, para evitar eventual movimento no sentido de se obter a soberania ou mesmo molestar a autonomia de outro Estado-membro.
Por ser medida extrema, e dado o princípio da autonomia dos Estados-membros, a intervenção federal é excepcional e visa “preservar a integridade política, jurídica e física da federação” conforme enumeração taxativa no art. 34 da CF/88, verbis:
I) manter a integridade nacional;
II) repelir invasão estrangeira ou de uma unidade da Federação em outra;
III) pôr termo a grave comprometimento da ordem pública;
IV) garantir o livre exercício de qualquer dos Poderes nas unidades da Federação;
V) reorganizar as finanças da unidade da Federação que:
a) suspender o pagamento da dívida fundada por mais de dois anos consecutivos, salvo motivo de força maior;
b) deixar de entregar aos Municípios receitas tributárias ficadas nesta Constituição, dentro dos prazos estabelecidos em lei;
VI) prover a execução de lei federal, ordem ou decisão judicial;
VII) assegurar a observância dos seguintes princípios constitucionais:
a) forma republicana, sistema representativo e regime democrático;
b) direitos da pessoa humana;
c) autonomia municipal;
d) prestação de contas da administração pública, direta e indireta;
e) aplicação do mínimo exigido da receita resultante de impostos estaduais, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino e nas ações e serviços públicos de saúde.
Está em discussão a possibilidade de intervenção federal no Distrito Federal em razão das denúncias envolvendo o Governador e seu Vice, entre outras autoridades. Com a decretação da prisão preventiva do Governador pelo Superior Tribunal de Justiça, o Procurador-Geral de República requereu a intervenção federal no Distrito Federal. Resta saber se será deferida e efetivada. É verdade que o instituto da intervenção federal, embora largamente esmiuçado, tanto no texto constitucional quanto pela doutrina, é de aplicação excepcional, sendo por demais conhecidas suas implicações jurídicas, mas pouco se falando do seu aspecto político e prático. É que não se pode afastar assim levianamente, a todo o momento, a autonomia do Estado-membro, e tanto o é que raras foram as vezes que tal ocorreu. Poucos foram os casos em que a intervenção federal a pedido do Procurador-Geral da República foi cogitada, e raros ainda em que foi efetivada. Na história política recente do país, pós-constituição de 1988, só houve uma tentativa de intervenção de repercussão a requerimento do Procurador Geral de República.
Nos termos do art. 36, III, da CF/88 o então Procurador-Geral da República, Aristides Junqueira Alvarenga, propôs intervenção federal no Estado de Mato Grosso (Intervenção Federal nº 114-MT), no famigerado caso Matupá quando delinqüentes presos na cadeia pública foram linchados por populares enfurecidos. O Supremo Tribunal Federal não deferiu a medida. Foi uma violação de direitos humanos, dentro outros rumorosos casos que se seguiram que, sem dúvida, redundou na introdução no texto constitucional, pela EC nº 45/2004, do inciso V-A do art. 109, dando como competente a Justiça Federal para o julgamento das causas relativas a direitos humanos, pondo ainda mais limites à autonomia estadual.
Freqüentemente a dificuldade de se efetivar uma intervenção federal não repousa apenas no seu aspecto maior de medida excepcional de afastamento da autonomia estadual. Não é difícil verificar que há casos em que os pressupostos fáticos estão mais do que preenchidos e o Presidente da República, quando provocado, tem o poder-dever de fazê-lo e não o faz, por conveniência político-partidária, em virtude do embate de forças políticas naquele momento, nada tendo com aspectos técnico-jurídicos ou de pudor pela ofensa, ainda que momentânea, à autonomia estadual, mesmo porque a decisão, se tomada, visa preservação a federação e não negá-la. É tanto que a União o faz em nome de todos e não em nome próprio.
Afora as intervenções espontâneas que tenham origem na solicitação do próprio Estado-membro, o que é improvável de ocorrer, mesmo em casos não raros de acintoso descumprimento de decisão judicial, a parcimônia é regra, evitando-se ao máximo tomar qualquer iniciativa que leve à intervenção federal e quem sabe, a uma crise sem precedentes. A experiência está repleta de exemplos que demonstram as dificuldades em levar a cabo uma intervenção federal, a não ser durante período de exceção, conforme leciona Márcio Inacarato: “No Brasil, durante a Primeira República, o instituto foi amplamente utilizado, inclusive com excessos e indevidamente em muitos casos. Durante a ditadura, e a partir do ‘Governo Provisório’ de 1930, foi aplicado de modo permanente e duradouro.” O autor completa dizendo que em 1931 foi promulgado o Código dos Interventores. Devemos lembrar que já no regime de 1964 o Ato Institucional nº 5 no seu art. 3º inovou ao prever a figura da intervenção federal nos Municípios, o que é uma excrescência no nosso sistema.
Já Humberto Haydt de Souza Mello em primoroso e detalhado trabalho de pesquisa indicou que houve 40 pedidos de intervenção dirigidos ao Supremo Tribunal Federal no período de 1935 até 1965 dos quais apenas dois foram deferidos. Um foi o pedido nº 14, de 1950, Relator Ministro Luiz Gallotti, intervenção em Mato Grosso, requerida por Célio Ferreira de Vasconcelos. O outro foi o pedido nº 25, de 1955, Relator Ministro Hahnemann Guimarães, intervenção no Maranhão, requerida pelo Presidente do Tribunal de Justiça. O autor ainda relata todos os desdobramentos da Mensagem Presidencial nº 104, de 8 de junho de 1948, enviada ao Senado Federal e que dá conta de um relatório do Senhor Ministro da Fazenda que trás notícia de uma situação financeira caótica no Estado de São Paulo governado por Adhemar de Barros, com vistas à aprovação de intervenção federal. Eis uma passagem do texto:
A pressão política era premente e o trabalho se desenvolvia todo no sentido de demonstrar que o Sr. Adhemar de Barros estava governando fora do princípios estabelecidos na Constituição Federal e seguindo uma Constituição local que dos mesmos princípios se afastava…O General Dutra não declarava jamais a sua opinião, cauteloso como sempre, e muito menos a resolução para que pendia.
Após acalorados debates no Senado Federal, decidiu-se pela não intervenção no estado de São Paulo, aparentemente porque o estado tinha condições de honra com seus compromissos financeiros. Foram indicados inúmeros dispositivos inconstitucionais da Constituição estadual paulista, também motivo do pedido de intervenção. Nesse ponto contribuiu para sanar de vez a questão a Representação nº 96 do Senhor Procurador-Geral da República, restando em decisão unânime do plenário do Supremo Tribunal Federal a declaração de inconstitucionalidade de alguns dispositivos da constituição paulista, sendo que em 14 julho de 1958, em cumprimento ao disposto no art. 64 da CF/1946, o STF remeteu a decisão ao Senado Federal.
Sob o regime implantado em 1964 tivemos a tentativa de intervenção federal em Goiás. De fato, através da Mensagem nº 710, de 1964, o senhor Presidente de República submeteu à apreciação do Congresso Nacional o Decreto nº 55.082, de 26 de novembro de 1964, tratando da intervenção federal no Estado de Goiás. Após diversos “considerandos”, entre os quais:
“Considerando que, além disso, vários atos estão sendo praticados pelo Govêrno do Estado, como aliciamento e concentração de elementos armados, requisição de armas e fabricação de material bélico, o que somado a fatos anteriores, revela perigo iminente para a integridade nacional;.”
É decretada a intervenção nos seguintes termos:
“Art. 1º – É decretada intervenção federal no Estado de Goiás para o fim específico de manter a integridade nacional e eliminar ali as causas que a ameaçam.
Art. 2º – A intervenção, que terá a duração de até sessenta dias, será executada por intermédio de Interventor, que, para isso e durante aquêle prazo, assumirá as funções do Poder Executivo do Estado, mantidos no pleno exercício de suas funções os Podêres legislativo e Judiciário.
Art. 3º – Contra atos do Interventor argüidos de ilegalidade, abuso ou desvio de poder, caberá recurso, sem efeito suspensivo, para o Ministro da Justiça e Negócios Interiores.
Art. 4º – É nomeado Interventor no Estado de Goiás, para execução dêste decreto, o Coronel Carlos de Meira Mattos.
Art. 5º – Sem prejuízo de sua imediata execução, êste decreto será logo submetido à aprovação do Congresso Nacional.
Art. 6º – Este decreto entrará em vigor na data de sua publicação, rogadas as disposições em contrário.
Brasília, 26 de novembro de 1964; 143º da Independência e 76º da Republica.
H. CASTELLO BRANCO
Milton Campos (“D.C.N., Seção I – 29-11-64, pág. 11.243.)”
Travou-se intenso debate no âmbito do Congresso Nacional com posições favoráveis e contrárias à intervenção. Contra o governador de Goiás Mauro Borges Teixeira pesava várias acusações, inclusive de utilizar-se da polícia militar para fazer preparativos bélicos com vista a uma subversão, o que para alguns parlamentares carecia de prova. Eis um trecho dos debates:
Com a palavra, o Deputado Pedro Aleixo, para encaminhar a votação, critica a inexistência de considerações de natureza jurídica no parecer dado pelo Senhor Nelson Carneiro, Relator na Comissão de Constituição e Justiça, à emenda de Plenário por êle apresentada. Sustenta que “situando devidamente o problema”, “cabe exclusivamente ao Presidente da República, no exercício de sua atribuição constitucional, apreciar os fatos e considerar os motivos que o levaram a praticar o ato de intervenção” e que não compete ao Congresso Nacional o exame de provas correspondentes às afirmações das mensagens oficiais, pois “não é cabível que se imponha ao Presidente da República a condição de mero litigante”.
Ao final do debates decidiu-se pela não intervenção, chegando-se a considerar que tal se dera em retaliação a decisão do Supremo Tribunal Federal em conceder habeas corpus preventivo ao senhor Mauro Borges, governador do Estado de Goiás, conforme o seguinte relato:
“Também encaminhando a votação, conceitua o Senhor Jairo Brum a intervenção federal em Goiás como um ‘desdobramento’ da decisão da mais alta justiça nacional ao ensejo do habeas corpus do Senhor Mauro Borges, contra a qual o Senhor Presidente da República imediatamente se rebelou, contrariando o ânimo anteriormente demonstrado quando declarou não ser autoridade coatora e esta disposto a acatar o julgamento do Supremo Tribunal Federal.”
Diante do aqui noticiado, pensamos que está mais do que demonstrado que a intervenção federal não é nada fácil de ser levada a cabo, até mesmo nos períodos de exceção, muito menos em momentos de normalidade democrática como o que vivemos, de tal sorte que é improvável que dela se socorra para solucionar a grave questão política reinante no Distrito Federal.
Mendes, Gilmar. Coelho, Inocêncio Mártires. Branco, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 4ª Ed, 2009. Editora Saraiva. Pág. 853.
Inacarato, Márcio Antonio. A Intervenção federal na constituição e no ato institucional nº 5. In: Revista de Direito Público, v.5, n.21, p.181-187, jul./set., 1972.
Mello, Humberto Haydt de Souza. Tentativas de intervenção federal nos estados-membros. In. Revista de Informação Legislativa, v.2, n.6, p.125-126, jun., 1965.
Intervenção federal no estado de Goiás. In: Revista de informação Legislativa, v. 2, n.5, p.97, mar., 1965.
Intervenção federal no estado de Goiás. In: Revista de informação Legislativa, v. 2, n.5, p.98, mar., 1965.
*Edmundo Pereira Correia é Técnico Judiciário do Tribunal Superior do Trabalho, pós-graduando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público – IDP.
Em momento de clamor público, é sempre bom ver a questão ser tratada com isenção, sem que a motivação das paixões infuenciem na percepção dos fatos. Parabéns pelo belo texto!
Também penso ser difícil que seja deferida a intervenção, e menos ainda que seja efetivada. Basta lembrar que o processo de intervenção enfrenta duas fases, sendo a primeira da análise jurídica pelo Poder Judiciário, e a segunda da análise política, pelos poderes Executivo e Legislativo. Mesmo quanto à questão jurídica, apesar do enquadramento dos fatos à pelo menos uma das hipóteses autorizadoras, penso que o STF não avalisará a juridicidade da medida, considerada a intervenção mínima.
Se superado isso, e deferido o pedido, certamente os entraves políticos causados pela medida dão a certeza de que ela não se efetivaria. Tratando-se de ano eleitoral, não é bom mexer em vespeiro. E sendo o último ano de mandato do atual Presidente da República, não parece razoável que queira criar obstáculo a eventuais medidas que ainda pretende impor em seu fim de governo. Só a existência de limitação ao processo de emenda constitucional (CR/88, 60, §1°) parece ser motivo suficiente a não recomendar a efetivação da medida excepcional.
A imprensa registra que a intervenção deve ser deferida e executada pelo Presidente. É interessante ver uma análise jurídica sobre o assunto. Acho que a crise se resolve no âmbito político, sem a necessidade de intervenção.
Há fortes motivos jurídicos e políticos que demonstram que essa medida será improvável. A análise feita neste post demonstra isso. Realmente, como dito em um comentário acima, a imprensa, para "vender jornal", se recusa a noticiar com isenção.
(Favor desconsiderar o post anterior, com alguns erros de português)
Prezados,
Parabéns pelo texto. Muito bem escrito.
Só tenho a acrescer que, tratando-se de requisição, nos termos do art. 34, VII da CRFB/88, não há o controle político, e isso nos termos do art. 36, § 3º, da mesma Carta. Requisição é ordem, determinação. Se o Presidente não a cumpre, estará ele sujeito as penas da lei 1.079/50.
Permita-me mencionar julgado que tratou de tema parecido com o quadro de "metástase institucional vivenciado no DF"(Palavras sugestivas do min. Gilmar Mendes.
Em julgamento algo não muito distante (1980), o STF, no bojo do RE 94252/PB, relatado pelo min. Leitão de Abreu, tracejou linhas maestras e precisas acerca dos caracteres da intervenção por atos de corrupção. Recomenda-se a leitura do acórdão, bastante fluida e linear , levando-se em conta o fato de tratar-se de caso ocorrido sob a égide da Constituição anterior, mas que não é muito diferente em substância, afinal de contas, trata-se de estado de emergência constitucional, haurido nos idos do Estado novo.
No extraordinário referido, que não chegou a ser conhecido, tratou-se de intervenção decretada pelo chefe do executivo do Estado da Paraíba na municipalidade de Taperoá-PB, por atos de corrupção. (Decreto 8.619 de 21 de agosto de 1980). art. 15, § 3º, 'e' da Constituição de 1967 com a redação dada pela EC nº 1/69.
A redação do dispositivo é a seguinte:
"Art. 15. A autonomia municipal será assegurada:
§ 3º A intervenção nos municípios será regulada na Constituição do Estado, somente podendo ocorrer quando:
(omissis)
e) forem praticados, na administração municipal, atos subversivos ou de corrupção;"
Lembre-se, o caso atual do DF também é por conta de Corrupção. Outrossim, cogita-se que a renúncia do chefe do executivo afastado e/ou do chefe do executivo substituto (Governador e seu Vice) teria o condão de amainar o intento intervencionista. Ledo engano, segundo este brilhante precedente do STF. Renúncia de chefe do executivo não tem o condão de evitar intervenção federal.
Cronologicamente:
– dia 20 de agosto de 1980 o Prefeito renuncia ao cargo de chefe do executivo municial.
– dia 21 é decretada intervenção Estadual.
– dia 22 é empossado o vice-prefeito como chefe do executivo municipal.
O prefeito renunciou, e o vice-prefeito (Manoel de Farias Souza Filho) impetrou Mandado de Segurança junto ao TJPB alegando, em síntese, que com a renúncia do titular do cargo, não subsistiriam motivos para a manutenção do decreto interventivo. Alegou ainda, e mais interessante, que como teria assumido o cargo de prefeito após os supostos atos de corrupção, o decreto interventivo não poderia se aplicar a ele.
Em suma, o TJPB concedeu inicialmente a liminar requestada em writ of mandamus, que não foi suspensa pelo presidente do STF, min Antônio Neder. Após, contudo, o TJ denegou a ordem, e ajuizado apelo extremo, o RE também não logrou melhor sorte.
E a intervenção foi cumprida.
A peculiaridade fica por conta do Advogado do Vice-prefeito, que realizou a sustentação oral no pretório excelso: Sepúlveda Pertence. Especula-se que hoje, alguns anos depois, seja eventualmente o Interventor da União no DF, isso, por óbvio, se for REQUIZITADA a intervenção no DF.
Contrapondo os argumentos, pode-se sustentar que, justapondo à propalada desvantagem de limitação circunstancial de alteração do texto constitucional (art. 60, § 1º), possibilita o uso da máquina no âmbito distrital para as eleições no DF, e que para o senado a renovação é de 2/3. Há ainda o caráter pedagógico da medida extrema.
O assunto é bom, e rende uma boa conversa.
Grande abraço.
Att.
Thiago. Advogado. Aluno da Pós-Graduação Direito e Jurisdição da ESMA – Escola da Magistratura do DF.
Caro Thiago,
Suas colocações enriquecem o debate, mas penso um pouco diferente. De fato, a Constituição da República é deficiente na regulamentação da intervenção federal. Acredito que seja compulsória a intervenção apenas nos casos de REQUISIÇÃO dos tribunais, o que ocorre na hipótese do art. 36, II, que diz respeito a desobediência a decisão judicial. Não é o caso do DF, em que a intervenção ocorrerá, se for levada a cabo, após PROVIMENTO do STF de representação do PGR.
De qualquer forma, respeito sua posição. Mesmo doutrina abalizada defende a compulsoriedade. Entretanto, vemos em algumas obras, como de José Afonso da Silva, a impossibilidade jurídica de exigir a decretação da medida quando sua execução depende de outros órgãos, como o Legislativo (não seria o caso do DF, porquanto a causa dispensa o controle legislativo); o Conselho de Defesa Nacional (CF, 91, §1°, II); e o Conselho da República(CF, 90, I).
De qualquer forma, no caso do DF a intervenção não ocorreria com a simples suspensão de um ato inconstitucional (incompatível com a causa de pedir da intervenção), exigindo a nomeação de um interventor, fixando-se um prazo para a medida excepcional. Não há, portanto, como torná-la compulsória ao Presidente da República, considerando sérias restrições à sua própria governabilidade, como a impossibilidade de fazer tramitar emendas constitucionais no Congresso Nacional (como registrei acima). Exigir do Presidente a execução da medida seria impor ao seu governo (União Federal) uma grave punição por desmandos ocorridos em uma única unidade da federação, para os quais não participou o Governo Federal.
Por esses motivos todos, continuo pensando que, à exceção da REQUISIÇÃO dos tribunais no caso de descumprimento de decisão judicial (que não é o caso do DF), a decretação da intervenção se submete ao crivo político do Presidente da República.
Obrigado pela valiosa colaboração, e continue enriquecendo os debates nesse espaço que é democrático.
pt 1/2
Caro Rodrigo,
Parabéns novamente pelo espaço de qualidade para um debate plural e democrático. Quase uma sociedade aberta dos intérpretes.
Continuando o debate e sopesando suas ponderações, permita-me problematizar um pouco os nossos pontos de vista conflitantes sobre a obrigatoriedade ou não de expedição do decreto interventivo (no caso atual do DF).
De fato, há um entrave aparente que veio à lume com sua ponderação no seguinte excerto de seu comentário:
“Não há, portanto, como torná-la compulsória ao Presidente da República, considerando sérias restrições à sua própria governabilidade, como a impossibilidade de fazer tramitar emendas constitucionais no Congresso Nacional (como registrei acima). Exigir do Presidente a execução da medida seria impor ao seu governo (União Federal) uma grave punição por desmandos ocorridos em uma única unidade da federação, para os quais não participou o Governo Federal.”
É um argumento bastante complexo, principalmente porque se pauta por pragmatismo acentuado em ano eleitoral e que tem em conta o § 3º do art. 60 da CRFB.
Penso que é uma ótima oportunidade para que o Supremo Tribunal finalmente discuta a sério as bases reais de nosso modelo Federativo, que não é centrífugo e não é centrípeto. É pura e claramente ‘aberrantemente’ anômalo.
Seria interessante trazer a baila a formulação do TCF – Tribunal Constitucional Federal Alemão sobre “princípio da lealdade mútua federal”, e argüir se seria dado ao intérprete coligir o argumento pragmático:
“A União não colaborou para a execução dos atos ensejadores de eventual intervenção, por isso não pode ser obrigada a sofrer as conseqüências”.
Dentro desta formulação, nunca se possibilitará a execução de qualquer intervenção, seja da união nos estados e no df, seja da união nos municípios localizados em territórios, ou ainda, dos estados nos municípios. E isto porque o ente interveniente dificilmente terá alguma ligação direta com os atos ensejadores da medida excepcional.
Em suma, com o devido respeito a argumentação em sentido contrário, penso que estamos diante de uma situação ímpar, e que permitiria discutir com a profundidade que merece o assunto, e penso que aqui neste espaço começamos bem, ainda que ao fim e ao cabo não tenhamos tanta influência assim na decisão final da Corte.
Na realidade é mais uma provocação bem intencionada, para que o debate prossiga nesse nível alto no qual se encontra, desde o artigo publicado;
cito aqui excerto da formulação do TCF sobre o referido ‘princípio da lealdade mútua federal’, em: Schwabe, Jürgen. CINQÜENTA AÑOS DE JURISPRUDENCIA DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL FEDERAL ALEMÃO. Fundación Konrand Adenauer. p. 821/825, disponível em http://www.bibliojuridica.org/libros/libro.htm?l=2241 acesso em 21/02/2010.
pt 2/2 Confira-se:
“No Estado federal alemão, toda a relação constitucional entre o Estado como um todo e seus membros, bem como a relação constitucional entre seus membros [entre si], é regida pelo princípio constitucional não escrito do dever recíproco da União e dos Estados-membros, de comportamento leal ao princípio federativo (cf. Smend, Ungeschriebenes Verfassungsrecht im monarchischen Bundesstaat – Direito constitucional não escrito no Estado federal monárquico, em homenagem a Otto Mayer, 1916, p. 247 et seq.).
O Tribunal Constitucional Federal desenvolveu, a partir disso, uma série de deveres jurídicos concretos. No contexto das considerações acerca da constitucionalidade da denominada cooperação financeira horizontal [por meio da repartição de receitas tributárias], encontra-se a seguinte proposição: “O princípio do Estado federal fundamenta segundo sua essência, não apenas direitos, mas também obrigações.
Uma dessas obrigações estabelece que os Estados federados financeiramente mais fortes devem prestar ajuda, dentro de determinados limites, aos Estados federados mais fracos” (BVerfGE 1, 117 [131]).
Esse limite jurídico baseado na idéia de fidelidade federativa torna-se ainda mais forte quando do exercício de competências legislativas: “Se os efeitos de uma regulamentação jurídica não estão limitados à área de um Estado-membro, o legislador estadual deve, então, levar em consideração os interesses da União e dos demais Estados-membros” (BVerfGE 4, 115 [140]).
Do princípio constitucional do dever de comportamento fiel à federação resulta ainda o dever dos Estados-membros de respeitar os tratados internacionais celebrados pela União (BVerfGE 6, 309 255 [328, 361 s.]). Em certas circunstâncias, um Estado membro pode, finalmente, atendendo ao seu dever de lealdade federal, ser obrigado a tomar providências, por intermédio de seu poder de fiscalização municipal, no sentido de agir contra municípios que, por meio de suas medidas, interfiram numa competência exclusiva da União A jurisprudência até aqui revela que a partir desse preceito se desenvolveram tanto deveres concretos dos Estados-membros em face da União e da União em face dos Estados-membros, que vão além dos deveres expressamente normatizados na Constituição federal, quanto [também] limites concretos no exercício de competências atribuídas à União e aos Estados-membros pela Grundgesetz.
Onde quer que a União se esforce no sentido de buscar um entendimento constitucionalmente relevante em questões da vida constitucional nas quais todos os Estados-membros tenham interesse e sejam parte, este dever de comportamento leal à federação proíbe-a de agir segundo o princípio ‘divide et impera’, ou seja, de partir de uma separação entre Estados-membros, buscar acordo com apenas alguns deles, colocando os demais sob coação do ingresso.
Aquele princípio proíbe também que o governo federal, em negociações que digam respeito a todos os Estados-membros, trate diferentemente os governos dos Estados-membros de acordo com sua orientação político-partidária, especialmente que consulte, para deliberações politicamente decisivas, somente representantes de governos estaduais próximos do ponto de vista político-partidário, excluindo delas governos estaduais associados à oposição ao governo federal.
Em casos do tipo ora discutido, é bom direito dos políticos pertencentes a um partido na União e nos Estados-membros, primeiramente esclarecer suas idéias em discussões políticas para a solução dos problemas de interesse da União e dos Estados-membros, ”
E aqui indago eu: O Caso atual do DF pode ser considerado deslealdade? O ente desleal para com o "foedus", pode/deve sofrer as consequencias sozinho?
Grande abraço.
Thiago.
Após a promulgação da CF/1988, alguma intervenção federal foi decretada no Brasil?