2.05.13
A PEC 33 como uma britadeira de cláusulas pétreas
A CCJ da Câmara dos Deputados admitiu uma perigosa proposta de emenda à Constituição. Confessadamente, a PEC 33/2011 visa a limitar os poderes do Supremo Tribunal Federal. Na prática, contudo, essa proposição vai além. Se aprovada, a PEC 33 se tornará uma potente britadeira, capaz de quebrar até cláusulas pétreas.
Reconhecendo a constante evolução da vida em sociedade, a inevitável incompletude do texto legal, a redação originária da Constituição da República de 1988 admitiu a sua própria modificação. Porém, o Poder Constituinte derivado não pode tudo, pois a própria Constituição de 1988 garantiu proteção máxima aos direitos e garantias fundamentais e aos princípios fundantes sen síveis do Estado, imunes ao Poder de Reforma. Estas são as denominadas cláusulas pétreas, sendo rígidas, intransponíveis mesmo, não podendo ser quebradas. Violadas estas cláusulas, até uma emenda à Constituição pode ser declarada inconstitucional, ou até mesmo a proposta de emenda à Constituição pode ser obstada, pois o art. 60, §4º, da Constituição chega a proibir que algumas PEC´s sejam objeto de deliberação pelo Constituinte Derivado.
O Supremo já declarou inconstitucionais emendas à Constituição. Foi o que ocorreu com a EC 52/2006, que pretendia alterar o processo eleitoral faltando menos de um ano para a eleição. O mesmo ocorreu com a EC 58/2009, que aspirava alterar a composição das câmaras municipais em pleno curso do mandato. O Supremo afirmou a constitucionalidade das alterações, mas impediu a aplicação imediata das regras, preservando princípios constitucionais sensíveis. Ainda este ano, o Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade da EC nº 62/2009, que trata do pagamento da dívida pública pelo sistema de precatórios judiciais.
Quando o Brasil introduziu o controle judicial de constitucionalidade, ainda na fase do Governo Provisório de 1890, antes da promulgação da Constituição de 1891, pretendiam uns proteger o princípio federativo, evitando a reinstituição do totalitarismo, à semelhança do governo do Império. Já outros, também simpáticos ao controle judicial de constitucionalidade das leis, o fizeram para evitar que a monarquia fosse reinstituída por uma maioria parlamentar eventual. E foi este acordo político, conciliando dois segmentos que, embora defendessem ideias distintas, preferiam proteger as suas conquistas, que instituiu no Brasil o controle judicial de constitucionalidade de atos do Poder Legislativo.
Mas tudo isso estará ameaçado se for aprovada a PEC 33/2011. Será exigido voto de quatro quintos dos membros dos tribunais para declarar a inconstitucionalidade de leis, inclusive nas ações diretas de inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal, praticamente inviabilizando o funcionamento do Tribunal. Em tempos recentes, o Tribunal já ficou desfalcado de alguns ministros, seja por motivo de saúde, como nas licenças médicas dos ministros Menezes Direito e Joaquim Barbosa, seja nos períodos que seguiram a aposentadorias de ministros. No presente momento, o Supremo Tribunal Federal conta com apenas dez dos onze ministros de sua composição plenária, porque ainda não preenchida a cadeira vaga com a aposentadoria do ministro Ayres Britto. Se dois destes ministros votassem pela constitucionalidade de uma lei, contrário ao voto dos outros oito, seria necessário suspender o julgamento para aguardar a nomeação de novo ministro. E se o escore, ao final, terminar em oito votos contra três pela inconstitucionalidade, a lei será considerada constitucional, sendo ratificada pelo Supremo Tribunal Federal, cuja decisão terá eficácia geral e efeitos vinculantes.
Além disso, as decisões do Supremo que declararem inconstitucionais emendas à Constituição não produzirão efeito até serem confirmadas pelo Congresso Nacional, que poderá cassá-las, desde que a submetam ao referendo popular. O certo é que a Constituição restará desguarnecida, podendo ser alterada mesmo contra a sua própria vontade, que impôs ao Constituinte Derivado limitação do Poder de Reforma. E o mais grave: ainda se cria um hiato entre a decisão do Supremo Tribunal Federal e a sua eventual ratificação pelo Congresso Nacional, período em que, mesmo tendo abolido um direito fundamental, por exemplo, a emenda à Constituição seguirá em vigor.
A proposta inserida na PEC 33/2011 ressuscita dispositivo contido na Constituição de 1937, outorgada por Getúlio Vargas como um golpe à Democracia. Pelo art. 96, parágrafo único, da Constituição de 1937, Getúlio Vargas poderia, invocando o genérico conceito de “bem-estar do povo”, submeter novamente ao Congresso Nacional a lei declarada inconstitucional. E como o Congresso foi fechado, invocando o art. 180 da citada Constituição, Getúlio Vargas exercia sozinho este papel, incorporando a santíssima trindade, pois podia editar leis, como fez com os Códigos Penal e de Processo Penal, cassar decisões do Supremo, e por fim, executar as leis por ele mesmo editadas e convalidadas.
Alguns poderão argumentar que o que se discute é apenas a redução de poderes do Supremo, que vem se excedendo no denominado ativismo judicial e na judicialização da política. E diriam mais, que alguns países sequer possuem jurisdição constitucional, outros só a introduziram recentemente. Talvez tomassem de empréstimo o Canadá e a conhecida cláusula “não obstante”, quando o Legislativo pode determinar a produção de efeitos de leis declaradas inconstitucionais pela Suprema Corte do Canadá.
Todavia, esta não foi a opção de nossa Constituição no importante pacto político de 1988. Para alterar esta opção constitucional, somente uma nova Constituição, o que exigiria um processo revolucionário, a garantir legitimidade democrática a um novo texto constitucional. E o Brasil não vive este momento.
O pano de fundo da proposta, todavia, esconde problema ainda maior que a mera briga por poder. O que está em jogo é o rol de cláusulas constitucionais rígidas, as conhecidas cláusulas pétreas, que não podem sofrer sequer ameaças. Se a PEC 33 for aprovada, as cláusulas pétreas tornar-se-ão desprotegidas, podendo ser flexibilizadas.
A proposta não é séria, e não pretende sê-la, mas assusta, considerando estarmos em tempo de constantes tensões entre poderes. Talvez, até mesmo a sua admissão, pela importante CCJ da Câmara dos Deputados, no atual momento, tenha muito mais um efeito simbólico, representativo do descontentamento de parlamentares com o Supremo Tribunal Federal, que propriamente uma sinalização de que a PEC possa um dia a ser aprovada e promulgada pelo Congresso Nacional.
Não é crível que as duas Casas do Congresso Nacional possam um dia aprovar esta PEC 33/2011, derrogando em parte a jurisdição constitucional no Brasil. Ou, o que é pior, que seja fragilizada a importante proteção constitucional contra tentativas, quaisquer que sejam, de abolir direitos e garantias fundamentais ou de afetar princípios sensíveis.
Porém, diante do cenário assustador, não se descarta uma intervenção prévia do Supremo Tribunal Federal, barrando a própria tramitação da PEC, uma vez que já foi até provocado por um parlamentar que acusa vício no processo legislativo de Reforma. Mas essa intervenção, apesar de possível, só aumentaria a tensão entre os poderes.
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RODRIGO LAGO é advogado, conselheiro federal da OAB em exercício, ex-presidente da Comissão de Estudos Constitucionais da OAB/MA, diretor-geral da Escola Superior de Advocacia do Maranhão – ESA-OAB/MA, membro do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) e fundador e articulista do Os Constitucionalistas.
Foto: Congresso Nacional em noite de lua cheia (Rodolfo Stuckert/SCCS/Câmara)
Texto claro e didático, como de resto o são os escritos de Rodrigo Lago. A PEC em referência, que para mim é natimorta, tem apenas uma virtude, a de manter na ordem do dia a sempre renovada questão sobre quem deve ser Sua Majestade, o Supremo Intérprete da Constituição. De minha parte, acho deve continuar sendo o Judiciário, quando mais não seja sob o velho argumento de que os juízes são os menos perigosos, porque não dispõem nem de armas nem de dinheiro para destruir/corromper as instituições democráticas e pisotear os direitos fundamentais.
RESPOSTA: Querido Professor Inocêncio, sempre generoso com os amigos. Agradeço a leitura e os elogios, mesmo sabendo não serem tão merecidos. Quanto ao ponto, excelente a sua colocação, que diz exatamente o meu pensamento. Apesar dos pesares, e das justas críticas aos supremos excessos, ruim com ele, pior sem ele.
Excelente texto apresentado pelo Doutor Rodrigo Lago. Uma questão que muito me intriga é o fato de que no Brasil raramente há um “meio termo de boa-fé”. Digo isso pois os embates são resolvidos na base do oito-oitenta, ou seja, ou somos condescendentes com o ativismo judicial ilimitado (o que pode vir a ocorrer), ou, então, emendamos a Constituição para fragilizar a mais alta força judiciária do país. Acredito que essas emendas, tanto a 33 quanto a 37, são demonstrações de que o justo está prevalecendo no Brasil, está sendo enraizado na consciência social e, com isso, em que pese o grande respeito que tenho pelo Legislativo pátrio, o legislativo está perdendo, ainda mais, aquele sentimento de que “às escuras” tudo pode acontecer. Peço vênia ao Dr. Rodrigo para um comentário atécnico, mas com racionalidade e emoção de um cidadão que não mais tolera certas mazelas dos Poderes.
Como dizem os americanos em relação ao controle judicial de constitucionalidade (e que oportunamente se aplica ao Legislativo): “We are under a Constitution but the Constitution is what the juges say it is”.
Existem limites que não podem ser ignorados nem pelo Guardião, que dirá pelo constituinte derivado.
Parabéns pelo oportuno artigo.
[…] Rodrigo Lago*, do Blog Os Constitucionalistas […]
Com todo respeito aos argumentos levantados pelo caro articulista, discordo completamente das suas colocações. Primeiramente, enquanto juristas, antes de nos vergarmos aos apelos midiáticos devemos analisar com toda prudência cada ponto polêmico. Está se fazendo uma demonização da PEC 33/2011, que ao meu ver não tem nenhuma razão de ser. Em tempo, antes de dar minha opinião, li a íntegra da PEC, inclusive a sua justificação (convido aos colegas que não o fizeram que o façam, pois vale a pena).
É salutar para o país adotar o modelo da corte constitucional que deve desatar os nós referentes a aplicação do texto maior. Todavia no Brasil, desde o advento da EC 45 que viabilizou a atuação do judiciário, existiram também malefícios que já passam da hora de serem corrigidos, como a aplicação da súmula vinculante.
O STF atua em claro descumprimento do texto constitucional pois usa a súmula vinculante para saciar seu afã legislativo, pois não raro (súmula do uso de algemas, por exemplo) a partir de apenas uma, ou poucas, situações fáticas editam uma súmula. Para onde foi a exigência constitucional de “reiteradas controvérsias”, as súmulas, precisam, sim, de uma revisão urgente.
Quanto ao quórum, é importantíssimo o aumento dele para da declaração de inconstitucionalidade, pois vejam bem, é mesmo coerente que determinada lei, que passou pelo crivo do Legislativo possa ser retirada do ordenamento por seis ministros do STF? Ou seja a favor da lei temos 5 ministros do próprio STF e todo um Legislativo e ainda assim a opinião daqueles seis é superlativa? E nem se diga que o Congresso estaria se colocando em patamar superior ao STF, pois em caso de discordância da declaração de inconstitucionalidade, quem decide é o Povo, em plebiscito.
Enfim, é uma excelente oportunidade para um debate sóbrio e sério sobre as questões que permeiam o STF, isentos de irrefletidas influências midiáticas. Ainda acho que a PEC poderia, inclusive, ter ido mais longe tratando também da formação do STF, que hoje é muito mais política do que técnica.
Reflitamos…
RESPOSTA: Meu amigo, a sua argumentação crítica quanto ao Supremo é interessante, todavia, o que enfrento no texto é exatamente isso.A discussão passa além da mera disputa pelo Poder. O que se põe em risco é a rigidez das cláusulas pétreas. Foi o povo que, através da Constituinte de 1988, decidiu pela petrificação de certas cláusulas, nomeando o Supremo Tribunal Federal como seu legítimo guardião. Nem o povo poderá derrogar as cláusulas pétreas. Nada mais antidemocrático que uma decisão autoritária tomada sob o júbilo e crivo popular. Os casos de linchamentos de criminosos, ou mesmo de pessoas comuns envolvidas em acidente de trânsito, por exemplo, bem demonstram a importância do povo ter se protegido dele mesmo, ao estabelecer cláusulas pétreas. Recomendo a leitura de “A crucificação e a democracia”, de Gustavo Zagrebelsky, que demonstra a diferença entre a democracia formal (por você sugerida) e a democracia crítica.