13.01.10
A minirreforma eleitoral e a hipocrisia da classe política
POR GUILHERME NÓBREGA
INTRODUÇÃO
Faz-se uma breve análise da Lei n.º 12.034/2009, a que se convencionou chamar de minirreforma eleitoral. Para tanto, proceder-se-á a um exame do referido diploma legal, suas causas e consequências, de modo a suscitar discussões acerca da novel mudança no ordenamento jurídico e suas possíveis implicações.
1. DA REAL INTENÇÃO DA CLASSE POLÍTICA
Se o significado de ironia é quando o sentido real contraria o literal, é possível chamar de irônica a “micro” minirreforma eleitoral levada a cabo pelo Congresso Nacional através da indigitada Lei n.º 12.034/2009.
Divorciada de seu real propósito, a chamada minirreforma buscou, contraditoriamente, não atender aos anseios populares e à sofisticação do sistema político-eleitoral de modo a resgatar o falido regime representativo, mas responder e frear o ativismo judicial do Tribunal Superior Eleitoral:
É notório que os Parlamentos não dão conta das ‘necessidades’ legislativas dos Estados contemporâneos; (…) As normas que tradicionalmente pautam o seu trabalho dão – é certo – ensejo a delongas, oportunidade a manobras e retardamentos. Com isso, os projetos se acumulam e atrasam. E esse atraso, na palavra do governo, no murmúrio da opinião pública, é a única e exclusiva razão por que os males de que sofre o povo não são aliviados. (…) O modo de escolha de seus membros torna-os pouco freqüentados pela ponderação e pela cultura, mas extremamente sensíveis à demagogia e à advocacia em causa própria. Os interesses não têm dificuldades em encontra porta-vozes eloqüentes, o bem comum nem sempre os acha. (…) Ora, a incapacidade dos Parlamentos conduz à sua abdicação. [1]
Desse modo, perdeu-se a oportunidade de realizar uma verdadeira reforma reestruturante das regras eleitorais, moralizando o pleito e legitimando a classe política.
Muito ao revés, com limites a serem impostos aos próprios feitores da lei, outra coisa não se podia esperar que não uma discussão demagógica. Formou-se, pois, um ciclo vicioso, com a manutenção de oligarquias no poder. Perpetuou-se a malfadada prática conduzida pelo Legislativo de contaminar politicamente tudo com o que se envolve, relegando a segundo plano a vontade popular. Sobre as causas desse fenômeno, ensina Dalmo Dallari:
Ainda que a causa seja a má escolha dos representantes pelo povo, incapaz de “compreender os problemas do Estado e escolher bons governantes,” ou mesmo a tradicional tensão entre os poderes, o que importa é que a questão existe, embaralhando ainda mais direito e política. Tanto não se pode excluir o povo do processo, por medida antidemocrática, como não se vislumbrou, até o momento, sistema a substituir a tripartição de poderes (…).[2]
De igual sorte, restou evidente a tentativa de impor limites ao papel ativo desempenhado pelo TSE[3], que, aos olhos do Legislativo, estava legislando através de suas decisões e resoluções. A constatação/crítica nos é trazida por Rafael Petracioli:
No plano atual, a corte máxima eleitoral abusa do poder normativo que lhe foi cedido, incluindo em suas resoluções preceitos sequer esboçados nas leis pertinentes: cria prazos, normatiza sanções, inova institutos jurídicos.
E mais: quando já expedidas as resoluções e surge algum novo ponto controverso a se dirimir, o TSE legisla diretamente através de seus julgados. É aqui que se manifesta o lado sombrio do ativismo judicial, seu irmão autoritário, o direito livremente criado pelos Tribunais.[4]
E a intenção repressora da classe política fica ainda mais evidente na nova redação do artigo 105, da Lei n.º 9.504/1997:
Art. 105. Até o dia 5 de março do ano da eleição, o Tribunal Superior Eleitoral, atendendo ao caráter regulamentar e sem restringir direitos ou estabelecer sanções distintas das previstas nesta Lei, poderá expedir todas as instruções necessárias para sua fiel execução, ouvidos, previamente, em audiência pública, os delegados ou representantes dos partidos políticos.
Além desse artigo, outros dispositivos esparsos se encarregam de ratificar entendimentos jurisprudenciais, consagrando os entendimentos em normas jurídicas para retirar do TSE o regramento sobre a matéria, chamando o Legislativo para si tal competência. A seguir, são analisados alguns deles.
2. AS (POUCAS) MUDANÇAS PRÁTICAS INTRODUZIDAS PELA MINIRREFORMA ELEITORAL
Aqui, convém traçar um panorama das principais mudanças práticas trazidas pela minirreforma eleitoral.
2.1. Prazos processuais
O elastecimento de prazos através da minirreforma veio pôr fim à bizarra prática de fixação de termos por resoluções do TSE. Apenas a título ilustrativo, vale trazer à baila o emblemático acórdão proferido no RO n.º 748/PA:
Representação eleitoral. Condutas vedadas. Lei nº 9.504/97, art. 73. Questão de ordem. Acolhimento.
O prazo para o ajuizamento de representação por descumprimento das normas do art. 73 da Lei das Eleições é de cinco dias, a contar do conhecimento provado ou presumido do ato repudiado pelo representante.
Recurso ordinário. Representação. Intempestividade. Recurso desprovido.[5]
Naqueles autos, em questão de ordem suscitada pelo relator, foi proposta a definição do “prazo para o ajuizamento das representações pertinentes às condutas vedadas a que se refere a Lei nº 9.504/97”, lançando-se ao oblívio a competência exclusiva da União para legislar sobre direito:
Ora, o que a criação de um prazo, diga-se, o que a criação de norma de direito processual, neste caso, tem de concretizador da Constituição? Decerto, apenas a relação de confronto, de antítese, de subversão. Posto que a competência para legislar sobre direito processual é exclusiva da União, através do Poder Legislativo, que o fez nos casos das Leis 4.737/65 e 9.504/97 e da Lei Complementar 64/90, não existe lacuna ou insuficiência legislativa a justificar a decisão pretensamente ativista.[6]
Em resposta a esse ativismo judicial da Superior Corte Eleitoral, a minirreforma trouxe a lume os artigos 30-A e 41-A:
Art. 30-A. Qualquer partido político ou coligação poderá representar à Justiça Eleitoral, no prazo de 15 (quinze) dias da diplomação, relatando fatos e indicando provas, e pedir a abertura de investigação judicial para apurar condutas em desacordo com as normas desta Lei, relativas à arrecadação e gastos de recursos.
Art. 41-A. Ressalvado o disposto no art. 26 e seus incisos, constitui captação de sufrágio, vedada por esta Lei, o candidato doar, oferecer, prometer, ou entregar, ao eleitor, com o fim de obter-lhe o voto, bem ou vantagem pessoal de qualquer natureza, inclusive emprego ou função pública, desde o registro da candidatura até o dia da eleição, inclusive, sob pena de multa de mil a cinqüenta mil Ufir, e cassação do registro ou do diploma, observado o procedimento previsto no art. 22 da Lei Complementar nº 64, de 18 de maio de 1990.
(…)
§ 3º A representação contra as condutas vedadas no caput poderá ser ajuizada até a data da diplomação.
Se, por um lado, foram homenageados os princípios da ampla defesa e do contraditório, por outro, a dilatação dos prazos processuais prejudicou a pretensão de diminuir a quantidade de ações eleitorais através da imposição de curtos prazos para seu ajuizamento.
Diversamente, houve um retrocesso, ao passo que se mitigou o princípio da celeridade processual ao fixar-se como termo a quo dos prazos recursais a publicação no diário oficial, ao invés da publicação em cartório. Essa foi a dicção dos noveis artigo 30, § 5º, artigo 30-A, § 3º, artigo 41-A, § 4º, artigo 73, § 13º e artigo 80, § 4º, todos da Lei das Eleições.
2.2. Financiamento de campanhas eleitorais
Para combater uma das principais fontes da corrupção que assola o meio político, haveria duas soluções: “transparência completa e irrestrita às doações privadas dos recursos de campanha, ou vetar a doação de particulares e partir para uma fase onde apenas o financiamento público seria possível.[7]”
Ocorre que o já mencionado fisiologismo demagogo da classe política mais uma vez obstou uma evolução do arcabouço normativo estatal, indo no sentido contrário ao financiamento público de campanha. Quiçá, a minirreforma eleitoral ampliou a possibilidade de financiamento privado:
Art. 23. Pessoas físicas poderão fazer doações em dinheiro ou estimáveis em dinheiro para campanhas eleitorais, obedecido o disposto nesta Lei. (Redação dada pela Lei nº 12.034, de 2009)
Noutro giro, fica flagrante a atuação em benefício próprio quando a Lei n.º 12.430 não só exclui o “calote” como causa de rejeição de contas, como abranda as penalidades nesse caso:
Art 25. O partido que descumprir as normas referentes à arrecadação e aplicação de recursos fixadas nesta Lei perderá o direito ao recebimento da quota do Fundo Partidário do ano seguinte, sem prejuízo de responderem os candidatos beneficiados por abuso do poder econômico.
Parágrafo único. A sanção de suspensão do repasse de novas quotas do Fundo Partidário, por desaprovação total ou parcial da prestação de contas do candidato, deverá ser aplicada de forma proporcional e razoável, pelo período de 1 (um) mês a 12 (doze) meses, ou por meio do desconto, do valor a ser repassado, na importância apontada como irregular, não podendo ser aplicada a sanção de suspensão, caso a prestação de contas não seja julgada, pelo juízo ou tribunal competente, após 5 (cinco) anos de sua apresentação.
Art. 29. Ao receber as prestações de contas e demais informações dos candidatos às eleições majoritárias e dos candidatos às eleições proporcionais que optarem por prestar contas por seu intermédio, os comitês deverão:
§ 3º Eventuais débitos de campanha não quitados até a data de apresentação da prestação de contas poderão ser assumidos pelo partido político, por decisão do seu órgão nacional de direção partidária. (Incluído pela Lei nº 12.034, de 2009)
§ 4º No caso do disposto no § 3º, o órgão partidário da respectiva circunscrição eleitoral passará a responder por todas as dívidas solidariamente com o candidato, hipótese em que a existência do débito não poderá ser considerada como causa para a rejeição das contas.
Como dito, minou-se a possibilidade de tornar mais claros os gastos dos candidatos, reprimindo uma das principais causas da corrupção que deteriora, principalmente, o Legislativo, que se presta não a representar a população que o elegeu, mas funcionar para a consecução de pleitos particulares daqueles que viabilizaram a campanha.
Flagrante a lástima a que deu ensejo a classe política, operando verdadeiro atraso na norma eleitoral no que tange ao financiamento de campanha, favorecendo práticas escusas em detrimento da transparência junto ao eleitor, vilipendiando o interesse desse.
2.3. Vedações aos agentes políticos
No que toca às vedações aos agentes políticos, a minirreforma eleitoral trouxe algumas valorosas contribuições.
Primeiro, às proibições insertas nos artigo 73, da Lei 9.504/1997, passou a ser cominada, indistintamente, a pena de perda do registro/diploma dos candidatos a quem aprouvesse benefício:
Art. 73. São proibidas aos agentes públicos, servidores ou não, as seguintes condutas tendentes a afetar a igualdade de oportunidades entre candidatos nos pleitos eleitorais: (…)
§ 5º Nos casos de descumprimento do disposto nos incisos do caput e no § 10, sem prejuízo do disposto no § 4o, o candidato beneficiado, agente público ou não, ficará sujeito à cassação do registro ou do diploma. (Redação dada pela Lei nº 12.034, de 2009)
A inovação ficou por conta da inclusão do § 11º, que passou a vedar a execução de programas sociais por entidades vinculadas/mantidas por candidato; do § 12º, que atribuiu à ação para apuração das condutas o mesmo rito da Ação de Investigação Judicial Eleitoral (AIJE), com previsão no artigo 22 da Lei Complementar n.º 64/1990, contrariando jurisprudência sedimentada do TSE; e do § 13º, que determinou o prazo recursal de 3 (três) com base no artigo supra.
Indo além, a minirreforma conferiu maior rigor ao artigo 74, atribuindo a sanção de cancelamento do registro ou do diploma ao candidato que afrontasse o artigo 37, § 1º, da Constituição. Antes havia apenas a previsão de cancelamento do registro.
Ainda merece especial louvor a nova redação do artigo 77, porque moralizadora:
Art. 77. É proibido a qualquer candidato comparecer, nos 3 (três) meses que precedem o pleito, a inaugurações de obras públicas. (Redação dada pela Lei nº 12.034, de 2009)
Parágrafo único. A inobservância do disposto neste artigo sujeita o infrator à cassação do registro ou do diploma.
Essas algumas das ponderações positivas, consubstanciadas em melhoras, ainda que rasas, que salvam parte da chamada minirreforma.
CONCLUSÕES
Em síntese, como já exposto, a sensação é de que o Legislativo perdeu uma grande oportunidade de moralizar o processo eleitoral pátrio, conferindo maior legitimidade à desacreditada classe política.
Contudo, algumas inovações merecem ser enaltecidas, ainda que superficiais, como de outra forma não se podia esperar de um legislador que não atuaria contra si mesmo. Prevaleceu a demagogia e o fisiologismo.
Sobre a minirreforma eleitoral, podemos concluir, de forma bem sintetizada, com base em lição basilar de Petracioli: “muito se discutiu inutilmente, muito se regulou abstratamente e pouco se moralizou efetivamente.”[8]
[1] FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Do processo legislativo. 6 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 14-15.
[2] DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. Saraiva: São Paulo, 2006, p. 303.
[3] Um caso exemplar do ativismo judicial do TSE é a Consulta 1.398, Rel. Min. Francisco Cesar Asfor Rocha, DJ – Diário de justiça, Volume 1, Data 08/05/2007, Página 143, na qual se discutiu sobre fidelidade partidária.
[4] PETRACIOLI, Rafael da Silveira. A minirreforma eleitoral e o ativismo judicial do TSE. Jus Navigandi, Teresina, ano 13, n. 2291, 9 out. 2009. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=13654>. Acesso em: 23 nov. 2009.
[5] Tribunal Superior Eleitoral. Recurso ordinário n.º 748/PA, Rel. Min. Luiz Carlos Lopes Madeira. DJ – Diário de Justiça, Data 26/8/2005, Página 174
[6] PETRACIOLI, Rafael da Silveira. Ativismo judicial, democracia e Direito Eleitoral. Jus Navigandi, Teresina, ano 13, n. 2281, 29 set. 2009. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=13579>. Acesso em: 24 nov. 2009.
[7] PETRACIOLI, Rafael da Silveira. A minirreforma eleitoral e o ativismo judicial do TSE. Jus Navigandi, Teresina, ano 13, n. 2291, 9 out. 2009. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=13654>. Acesso em: 23 nov. 2009.
[8] PETRACIOLI, Rafael da Silveira. A minirreforma eleitoral e o ativismo judicial do TSE. Jus Navigandi, Teresina, ano 13, n. 2291, 9 out. 2009. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=13654>. Acesso em: 23 nov. 2009.