27.09.10
A Ficha Limpa e a opinião pública
CARLOS EDUARDO OLIVEIRA LULA
A Lei Complementar nº 135/10, alteradora da nossa lei de inelegibilidades, há alguns meses domina o noticiário da imprensa brasileira. A uma semana do pleito, sintomático o fato de os escândalos supostamente ocorridos nos arredores da Sala do Presidente da República terem quase o mesmo espaço para o acalorado debate no STF sobre o Recurso Extraordinário n° 630.147 (Caso Roriz), que começou numa quarta-feira e (não) terminou na quinta, sem solução.
É certo, contudo, que a Lei da Ficha Limpa trouxe à sociedade mais uma vã ilusão: a de que ela é o caminho para a solução de todos os problemas da política brasileira. Mais uma vez, dimensiona excessivamente os poderes do Direito. Ele pode muito, mas não pode tudo. Problemas políticos resolvem-se politicamente.
O Direito apenas auxilia nessa solução, mas não possui capacidade para resolvê-los. A corrupção desenfreada de nossa classe política e tão repudiada pela sociedade não é fruto só de um débil sistema jurídico, mantenedor de uma tremenda sensação de impunidade, mas da corrupção existente no seio da própria sociedade. Enquanto os costumes não forem alterados, o direito pouco pode fazer, porque ele não tutela, não decide pela sociedade.
De toda sorte, inegável que a aludida lei é um avanço, aliás, um grande avanço. Ela, de um modo geral, melhora o nosso sistema político-eleitoral. A questão posta, contudo, é outra. A lei aprovada às vésperas do pleito teria eficácia? Poderia ser aplicada já para estas eleições?
A resposta que dei, quando indagado, foi negativa. A lei altera o processo eleitoral, afirmei. Prova disso é a movimentação e gritaria em tantos comitês de campanha eleitoral. Fui imediatamente acusado de conservador, porque nosso tempo é de progresso, de cumprimento da missão transformadora da política. À provocação, respondi com um conservador, João Pereira Coutinho: o conservador é a pedra na engrenagem. Ele levanta dúvidas e questiona a própria razão humana. Portanto, um bom termo de insulto.
E segui adiante. O art. 16 de nossa Constituição, alvo de toda essa controvérsia, deve ser bem entendido enquanto uma garantia da sociedade contra o Estado. Esse dispositivo é uma proteção outorgada à sociedade contra os casuísmos existentes na esfera política. É, na verdade, uma conseqüência do princípio da segurança jurídica, fundamental para que o exercício dos direitos políticos não se veja embaraçado em face de eventuais circunstâncias do jogo do poder.
Para saber se uma lei eleitoral altera ou não o chamado “processo eleitoral”, deve-se verificar, sinteticamente, a presença de duas condições: a) se a alteração ocorrida na legislação foi capaz de produzir desigualdade entre os partidos e os candidatos; ou b) se foi capaz de causar deformidade nas eleições, exatamente o objeto de proteção do Constituinte. Não há casuísmo “do bem” e “do mal”. Há mero casuísmo.
Digo mais: apenas as regras de caráter exclusivamente instrumental, verdadeiros elementos intermediários, auxiliares do processo, que não causem desigualdade nas eleições, podem furtar-se ao princípio da anualidade eleitoral, inserido no art. 16 da CF/88. Foi o caso, por exemplo, da lei nº. 10.408/02, que estabeleceu normas para as eleições, ampliando a segurança e a fiscalização do voto eletrônico. A despeito de aprovada em janeiro de 2002, não havia dúvidas de que valeria para as eleições que ocorreriam já em outubro daquele ano, pois não trazia desigualdade na disputa entre candidatos.
Disse eu: não é o caso da Lei da Ficha Limpa. Ainda mais. Em 2008, quando da primeira edição do meu manual de direito eleitoral (Direito eleitoral. 1ª ed. Leme, SP: Imperium Editora: 2008), comentando o aludido artigo, afirmei algo que se adaptaria perfeitamente ao momento atual: “Há ainda situações específicas que devem ser ressaltadas, dada sua importância histórica. Em algumas destas situações, os fatores políticos sobrepuseram-se aos jurídicos, notadamente no caso em que se considerou que a LC nº 64/90 não se submetia ao art. 16 da CF, os quais devem, portanto, ser analisados com granu salis”.
Profético? Não. Apenas atento à interpretação de um dispositivo que é verdadeiro direito fundamental, exercido em face do Estado. O STF, mesmo sofrendo uma imensa pressão da opinião pública, deve antes zelar pelo cumprimento da Constituição. A opinião pública, por mais força que tenha, é apenas uma opinião. A pressão das ruas não pode ser desprezada pela Corte, mas ela tem de ter independência para decidir em conformidade com o texto constitucional, ainda que em dissonância com a voz do povo. A última coisa que precisamos é um Supremo Tribunal Federal que decide conforme a manifestação de plantão.
Quarta-feira a Corte volta ao tema. Temos um empate. Minha opinião? Desagradará a muitos, mais uma vez. Mas se não houve maioria para dar provimento ao Recurso Extraordinário, a decisão do TSE deve ser mantida. Não é isso? Infelizmente, a legislação processual civil não possui dispositivos destinados a regulamentar as ocasiões em que não se configura um entendimento dominante nos Tribunais para a solução da controvérsia. A própria doutrina esboçou poucas linhas para tratar do tema.
Mas na situação em tela, parece-me ser a solução mais lógica. Para o RE ser provido, haveria necessidade de se formar maioria, ainda que simples. Mas assim não ocorreu. Com isso, o STF estaria a admitir a aplicação da Lei Ficha Limpa já nessas eleições. Não é a solução com a qual concordo, mas parece ser aquela tomada pela Corte nas dez horas de sessão da última semana, acompanhada, como nunca antes na história desse país, freneticamente pelo twitter.
Conservador? Reacionário? Pode até ser, desde que ainda me seja permitido levantar dúvidas e questionamentos sobre os fatos. Enfim, como bem disse João Pereira Coutinho, ser chamado de conservador não deixa de ser um bom termo de insulto.
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CARLOS EDUARDO OLIVEIRA LULA é advogado, diretor geral da Escola Superior de Advocacia da OAB/MA, consultor geral legislativo da Assembléia Legislativa do Estado do Maranhão, professor universitário, e autor da obra “Direito Eleitoral”, da Imperium Editora.
Com relação a seus argumentos:
a) se a alteração ocorrida na legislação foi capaz de produzir desigualdade entre os partidos e os candidatos; ou
b) se foi capaz de causar deformidade nas eleições, exatamente o objeto de proteção do Constituinte.
Acho-os perfeitamente lógicos, agora qual o sentido exato de:
“igualdade entre os candidatos” e “evitar deformidades”?
“igualdade entre os candidatos” na minha singela opinião ocorre se estes tiverem exatamente os mesmos recursos de propaganda, a mesma publicidade sobre sua vida pregressa, e processos rápidos e eficazes contra os suspeitos e corruptos.
E “evitar deformidades” que já existem é justamente o que se procura fazer através dessa lei.
Já que o sistema não julga eficazmente os atos duvidosos que pelo menos os autores sofram sanção de direitos de voltar a vida pública.
À luz dessa interpretação que estou levantando:
Como já havia e há uma desigualdade entre partidos e candidatos (por causa dos candidatos inpunes ou suspeitos que continuam concorrendo).
a) A alteração ocorrida na legislação foi capaz de “diminuir” (e não produzir) a desigualdade entre os partidos e os candidatos; ou
b) Foi capaz de “evitar” (e não causar) mais uma deformidade das eleições, exatamente o objetivo da proteção na Constituição.
Não houve no seu argumento uma argumentação teleológica da lei, afinal qual é o fim social/ético dessa proteção ao processo eleitoral?
Entender a letra fria da lei ou doutrina e não seus objetivos é como ler na bíblia que deus criou o mundo em 7 dias e entender isso ao pé da letra. Nem provavelmente o escritor original quis dizer isso.
Voltando a uma das afirmativas originais:
a) se a alteração ocorrida na legislação foi capaz de produzir desigualdade entre os partidos e os candidatos;
Se entendermos essa sentença em sentido estrito então a alteração citada
“lei nº. 10.408/02, que estabeleceu normas para as eleições, ampliando a segurança e a fiscalização do voto eletrônico”
Poderia prejudicar candidatos que desejassem burlar o sistema (o que provavelmente fez) e por isso mesmo provocou uma DESIGUALDADE no sistema que estava antes presente.
Conclusão: Faça o que você pode para moralizar a vida pública interpretando a constituição à luz de preceitos éticos básicos. E não como um texto sagrado e a luz de doutrinas particulares.
Em vez de ficar distribuindo a culpa. Faça alguma coisa você mesmo.
Não concordo com alguns posicionamento neste blog mas me parece que vocês tem algumas fundamentações que gostaria de conhecer melhor.
Fala alguma coisa aí você desse lado.
Sintetiza de algum jeito porque vc(s) acha(m) que (algumas ou todas) as minha opiniões estão (certa, erradas ou mal formuladas).
Ou estou no lugar errado para ter um discussão frutífera nesses assuntos?