25.03.12
A aranha, sua teia e a judicialização da polÃtica
Forçando nas tintas, pode-se sustentar que o Brasil se tornou, sem sinais de mudança no horizonte, a capital mundial da judicialização da polÃtica, pouco importando se estamos ou não satisfeitos com esse fato nada trivial que desafia ortodoxias, como vetustas teorias sobre a separação entre os três Poderes, cânon dogmático que, embora já claudicante, ainda é influente tanto em paÃses de sistemas jurÃdico-polÃticos com matriz na civil law quanto nos de common law. Entre nós, o senso comum, tal como a mÃdia o registra, tem associado esse processo a um ativismo judicial que estaria sendo exercido, em matéria de natureza polÃtica, por juÃzes e tribunais, especialmente por parte do Supremo Tribunal Federal (STF), que careceriam de representação democrática – magistrados não são eleitos – para intervir criativamente na produção das normas. Nesse tipo de diagnóstico, costuma-se datar a presença cada vez mais afirmativa do Direito, de suas instituições e seus procedimentos na vida social a partir da vigência da Carta Magna de 1988, assim como limitar a observação da sua incidência nas relações entre os Poderes Legislativo e Judiciário. O senso comum erra nos dois casos.
Com efeito, para não recuar muito na História, mas sem deixar de lembrar a presença do papel central das elites imperiais, socializadas no campo do Direito, que levaram a cabo a obra de instalação do Estado-nação como um exercÃcio criativo de Direito Administrativo, tão bem estudadas no clássico A Construção da Ordem, de José Murilo de Carvalho (Rio, Campus, 1980), e em Visconde do Uruguai – Centralização e Federalismo no Brasil, de Ivo Coser (Editora UFMG, 2008), não se pode explicar o processo de modernização burguesa do PaÃs, a partir da Revolução de 1930, sem atentar para o papel estratégico do Direito, de suas instituições e seus procedimentos na formatação de um mercado de trabalho nacionalizado e de um “mercado” polÃtico democratizado.
Desde aà se fixaram duas jurisdições institucionalizadas em ramos do Judiciário, a trabalhista e a eleitoral, ambas, hoje, exercendo papéis centrais na democracia brasileira, recobrindo tanto o mundo do trabalho como o da competição polÃtico-eleitoral. Sob Getúlio Vargas, a moderna República burguesa retomou a polÃtica, vigente no Império, de procurar realizar a modelagem da sociedade por elites do Estado, em especial as de formação jurÃdica, pela via da adoção da fórmula corporativa que trouxe para o interior da malha estatal a vida associativa dos trabalhadores a fim de serem expostos à sua pedagogia. Oliveira Vianna, jurista de ação decisiva na elaboração da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), não à toa tem a obra do visconde de Uruguai (Paulino José Soares de Sousa), o estadista da centralização administrativa sob o Império, como objeto de culto.
Assim, se coube à ação da aranha, como na famosa metáfora de Weber – no caso, os estadistas de formação neopombalina, chamados assim por Raimundo Faoro -, a urdidura de uma teia com essa caracterÃstica, ela, em sua faina, já é prisioneira de sua própria obra. É de ver que a democratização da vida republicana, tal como consagrada na Constituição de 1988, após inédita mobilização social e polÃtica em favor das liberdades civis e polÃticas, em princÃpio, um momento propÃcio a rupturas, longe de apartar a polÃtica do Direito, levou a resultado oposto: a opção do constituinte (a “aranha”) foi a de aproximá-los, aprofundando, aperfeiçoando e democratizando as relações entre eles. Sobretudo, instalou a sociedade civil como novo e importante personagem na trama entre essas duas dimensões, tal como nas ações de controle da constitucionalidade das leis, nas ações civis públicas, nas ações populares, entre tantos outros instrumentos relevantes. Para reforçar essa nova presença, redefiniu o papel do Ministério Público, dotando-o da capacidade de representá-la.
Com essa nova arquitetura da teia, expurgada dos seus elementos autoritários, mas contÃnua, como se tem sugerido, com seu desenho anterior, o Direito, seus procedimentos e instituições, passa a conhecer novas possibilidades, admitindo, in nuce, em meio a um consenso silencioso, a sua conversão, em lugar de emancipação e até da conquista de direito novo, como tem ocorrido em alguns casos de decisões de juÃzes singulares e tribunais inferiores (entre tantos, Werneck Vianna, Burgos, Dados, 4, volume 48, 2005), e evidente na decisão do STF sobre o reconhecimento legal das relações homoafetivas, amplamente legitimada pela opinião pública.
A decisão recente do STF que julgou inconstitucional a criação do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), sob o fundamento de que a tramitação da medida provisória que o criou não teria obedecido a disposições expressas na Constituição, reacende vivamente a controvérsia sobre a judicialização da polÃtica, uma vez que ultrapassa em suas repercussões o próprio teor da coisa julgada, de óbvia relevância para a afirmação do papel do Legislativo na produção das leis. Tal como se constatou, logo que proferida a decisão, por esmagadora maioria, a validade de 560 medidas provisórias, promulgadas com o mesmo vÃcio de origem da que criou o ICMBio, muitas de importância vital, estaria em situação de risco, instalando um cenário de insegurança jurÃdica de efeitos imprevisÃveis. Medindo as consequências, sem esconder sua inspiração em correntes pragmatistas – caso manifesto do ministro Luiz Fux -, a Suprema Corte voltou atrás em sua decisão e proclamou a constitucionalidade da lei que criou o ICMBio.
Com essa decisão, a “aranha” não abandona, decerto, a sua teia, mas a sua ação responsiva diante de um fato social e polÃtico de suma gravidade flexibiliza e alarga a sua trama. O consequencialismo, mesmo que por via acidental, ganha foro de cidade no Direito brasileiro.
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LUIZ WERNECK VIANNA é professor-pesquisador da PUC-Rio. E-mail: lwerneck096@gmail.com
Artigo publicado originalmente no O Estado de São Paulo, edição 25/3/2012.
Foto: raquelsantana/Flickr.