Por Juliana Cesario Alvim Gomes
4.12.16

Supremo de ontem e de hoje: como fica o aborto agora?

 

Por Juliana Cesario Alvim Gomes

Ontem [sessão de 29.11.2016], em decisão histórica, três dos cinco ministros da primeira turma do Supremo determinaram que a criminalização do aborto realizado no primeiro trimestre de gravidez viola direitos fundamentais da mulher.

A decisão foi recebida com surpresa: não havia, até então, indicações de que a criminalização do aborto seria discutida aqui.  O caso envolvia a liberdade de cinco médicos e enfermeiros presos em flagrante por terem realizado quatro abortos consentidos em Duque de Caxias, no Rio de Janeiro, e poderia ter sido resolvido, como defendido pelos ministros Luiz Fux e Marco Aurélio (relator original do caso), pela ausência dos requisitos para a concessão da cautelar, em termos meramente processuais.

Entretanto, longe de ser precipitada, a decisão é urgente e necessária.

Embora súbita, ela não surgiu do nada. Trata-se da continuação de uma conversa iniciada, no âmbito do Supremo, há pelo menos doze anos, quando a questão da constitucionalidade da interrupção de gravidez do feto anencefálico chegou ao tribunal. Em 2004, a liminar concedida para a realização do procedimento foi cassada poucos meses depois e apenas em 2012 o STF julgou o mérito do caso autorizando a realização da interrupção da gravidez nessas hipóteses. À época, o Supremo proferiu decisão limitada ao aborto de fetos com anencefalia. Mas deu o pontapé inicial em um debate mais amplo. A decisão de ontem nada mais é que seu desenrolar natural, em consonância com a jurisprudência do Supremo favorável aos direitos das mulheres que vem sendo estabelecida nos últimos anos, tendo como julgamentos emblemáticos o que previu a exclusão da licença gestante do teto para o valor dos benefícios do regime geral de previdência social e o que reconheceu a constitucionalidade da Lei Maria da Penha.

Do ponto de vista substantivo, a decisão se justifica não apenas pelo risco concreto à liberdade dos médicos e enfermeiros acusados, mas pela urgência em remediar violações frontais e cotidianas aos direitos as mulheres. Estimativas apontam que cerca de um milhão de abortos são realizados por ano no Brasil. A falta de amparo legal e as condições precárias em que são realizados fazem com que o abortamento seja uma das principais causas de mortalidade materna no país. Em especial, tratar como crime a prática do aborto tem um efeito enviesado na prática. Impacta desproporcionalmente mulheres negras e pobres, que não podem recorrer ao sistema público de saúde para realizar o procedimento ou buscar tratamento por complicações decorrentes de abortos clandestinos, enquanto mulheres que dispõem dos meios econômicos podem realizá-lo de maneira mais segura, minorando os danos à sua a saúde e o risco de criminalização.

Como apontou o voto condutor para o redator do acórdão,  ministro Barroso, a criminalização do aborto viola: “os direitos sexuais e reprodutivos da mulher, que não pode ser obrigada pelo Estado a manter uma gestação indesejada; a autonomia da mulher, que deve conservar o direito de fazer suas escolhas existenciais; a integridade física e psíquica da gestante, que é quem sofre, no seu corpo e no seu psiquismo, os efeitos da gravidez; e a igualdade da mulher, já que homens não engravidam e, portanto, a equiparação plena de gênero depende de se respeitar a vontade da mulher nessa matéria”.

A Constituição há quase 30 anos consagrou a igualdade de gênero. Mas, nesse meio tempo, os dispositivos do Código Penal que vedam o aborto, instituídos durante a ditadura Vargas, mantiveram-se os mesmos. Diante dessa realidade, e de um caso concreto envolvendo restrição de liberdade, o Supremo decidiu agir – Se não agora, quando? Se não nós, quem? Dois ministros – Roberto Barroso e Edson Fachin – e uma ministra – Rosa Weber –  enfrentaram a questão, deixando claro seu comprometimento com a realização dos direitos reprodutivos das mulheres.

A conversa não termina aqui. A decisão de ontem, embora apenas se aplique ao caso que lhe deu origem, tem enorme força simbólica e indiscutível peso persuasivo: poderá ser utilizada para fundamentar decisões de juízes e tribunais por todo o país. A partir daí, pode, eventualmente, retornar ao Supremo sob a forma de recurso extraordinário com repercussão geral reconhecida, quando se discutirá a ampliação de seus efeitos.

Antes disso, os ecos desse debate poderão ser ouvidos na próxima quarta-feira, quando o Supremo julgará a constitucionalidade da interrupção da gravidez para mulheres grávidas infectadas pelo vírus zika. Será uma oportunidade de ampliar, talvez, a possibilidade de aborto para além do primeiro trimestre, no caso específico da contaminação com zika. Além disso, o julgamento da ação pautada para a próxima semana, ao contrário da decisão de ontem, será vinculante e aplicável para todos, além de ampliar seus efeitos – contará com o voto de todos os ministros, reunidos no plenário, e com a participação de organizações da sociedade a favor e contra os pleitos.

Como o Supremo da próxima semana lidará com o Supremo de ontem? Se o julgamento de fato ocorrer, o plenário sempre pode vir a divergir da decisão tomada na primeira turma. Contudo, para isso, precisaria apresentar argumentos que respondessem às convincentes justificativas apresentadas ontem. E, sobretudo, precisaria romper com o Supremo dos últimos anos – aquele que decidiu favoravelmente ao aborto de feto anencefálico e que se posicionou, mais de uma vez, a favor dos direitos fundamentais das mulheres.

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Juliana Cesario Alvim Gomes é advogada e professora.

Artigo publicado originalmente no site JOTA, edição 30.11.2016.

Foto: dammesaya/Flickr.



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