Por Conrado Hübner Mendes
15.03.14

Reféns do bolsonarismo

 

O Brasil tem assistido a surtos agudos de primitivismo político. O fenômeno não é de direita nem de esquerda, não é de oposição nem de situação, não é conservador nem progressista. Merece outro adjetivo porque não aceita, por princípio, a política democrática e as regras do jogo constitucional. Esforça-se em corroê-las o tanto quanto pode. Não está disposto a discutir ideias e propostas à luz de fatos e evidências, mas a desqualificar sumariamente a integridade do seu adversário (e, assim, escapar do ônus de discutir propostas e fatos). Cheio de convicções, é surdo a outros pontos de vista e alérgico ao debate. Não argumenta, agride. Dúvidas seriam sinais de fraqueza, e o primitivo quer ser tudo menos um fraco. Suas incertezas ficam enrustidas no fundo da alma.

Há muitos exemplos desse surto. Aos interessados num curso relâmpago sobre essa patologia, serve qualquer entrevista de um folclórico deputado do PP que há pouco mobilizou o seu partido para pleitear, sem sucesso, a presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados (ver YouTube). Ao ser perguntado sobre os seus projetos para o cargo, dispara: “A minoria tem de se calar e se curvar à maioria!”. E continua: “Não podemos estimular crianças a serem homossexuais”. Para ele, “não somos nós que temos de respeitar homossexual, eles é que têm de me respeitar”.

“Vagabundos”, pondera ainda, deveriam “pagar por seus pecados”. Por isso, os presídios brasileiros seriam “uma maravilha” e o Complexo Penitenciário de Pedrinhas, onde alguns presos foram decapitados semanas atrás, “a única coisa boa do Maranhão”.

Dessa amostra se pode deduzir o que pensa o deputado sobre tantos outros temas. Ele sabe para quem está falando e por qual breviário deve rezar para se eleger. Suas frases de efeito imoral são combustível para toda sorte de recalque homofóbico, sexista, racista, elitista, policialesco, enfim, para todo o arsenal de recursos opressores estocados na cultura brasileira. A filosofia da discriminação dá voto. Invocada com raiva e fé, ainda elege e reelege.

O parlamentar do PP é a expressão mais caricata, se não repugnante, do primitivismo. Fosse apenas um lembrete pedagógico de um país que um dia existiu, ou representasse só um reduto de filhos bastardos da ditadura, não causaria maior dor de cabeça. Mas quando notamos que ele é somente a versão mais antipática de um Brasil que ainda nos espreita da esquina, ou de uma mentalidade que continua a se manifestar nos jornais, na família e no trabalho, é sinal de que o confronto não pode ser evitado. Há muito em risco para ficar em silêncio.

Onde erra o bolsonarismo? Essa não é uma pergunta retórica. A resposta, afinal, nem sempre está na ponta da língua daqueles que rejeitam, por instinto ou convicção, essa visão de mundo. Construir uma resposta robusta, por todos os ângulos possíveis, é um esforço indispensável para deixar claro o que está em jogo.

Incomodam ao bolsonarismo os padrões de decência política, os direitos fundamentais e os compromissos de mudança social pactuados pela Constituição de 1988. Esse pacto constitucional, entretanto, é um ponto de partida inegociável e não está aberto a reconsideração. Se pensa que nem todos merecem direitos, não entendeu bem o que são direitos. Fala em direitos, mas pensa em privilégios. Se quer ser um servo da maioria, não aprendeu bem o que é democracia, mas definiu perfeitamente a tirania. Se acha que a parada gay deve ser respondida com a marcha dos heterossexuais, não entendeu nada mesmo.

Que o seu repertório de ideias fixas constitui uma brutalidade moral e uma aberração jurídica, isso não é mais novidade. Antes disso, porém, trata-se de um monumento de desonestidade intelectual. Ignora as abundantes provas sobre a motivação homofóbica de centenas de crimes de ódio anualmente praticados por todo Brasil. Ignora a relação causal, já demonstrada por tantos pesquisadores nacionais e estrangeiros, entre o encarceramento em massa e o agravamento da violência. Prisões brasileiras há muito não cumprem suas funções publicamente anunciadas – prevenção, dissuasão, ressocialização. Poucos se dão conta, contudo, de que prisões cumprem perigosas funções extraoficiais, e elas invariavelmente agradam ao primitivo: o incentivo à demagogia, a repressão da pobreza, o endurecimento da violência estatal. Isso já é saber convencional nas ciências sociais, mas a política mostra-se impermeável a essas velhas constatações.

Um dos desafios para a sobrevivência da democracia é alijar as ideias que atacam a sua própria condição de existência. E como alijá-las sem suprimir a liberdade de expressão? Há pelo menos dois caminhos complementares.

Primeiro, pela construção e manutenção de uma esfera pública vigilante que defenda e rotinize práticas democráticas, algo que depende da educação política praticada por escolas, jornais, instituições culturais, organizações não governamentais (ONGs), etc. Práticas que seriam facilitadas, por exemplo, pela multiplicação de espaços públicos nas cidades, onde se possa conviver com a diferença e apreciar a pluralidade brasileira.

Segundo, por meio de líderes que não se acuem diante da baixa política, que tenham coragem de arriscar seus cargos em defesa de certos princípios e tenham grandeza para fazer alianças com aqueles que, mesmo adversários, compartilham esses princípios. Quando o medo da derrota eleitoral sequestra essas lideranças, que em silêncio desidratam seus projetos de implementação de direitos e promoção da igualdade, o alarme passa a tocar.

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Conrado Hübner Mendes é professor de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. É doutor em Direito pela Universidade de Edimburgo (Escócia) e doutor em Ciência Política pela USP.

Artigo publicado originalmente no Estado de São Paulo, edição 13/3/2014.

Foto: Skley via photopin cc.



6 Comentários

  1. Ricardo Vasconcelos disse:

    Interessante: muito mais de 90% fo que disse o Conrado Mendes pode ser atribuido ao PT e demais partidos socialistas. No entanto, o professor silencia quanto a eles, que estão implementando as diretrizes do Foro de S.Paulo para a supressão da democracia. Já estamos numa ditadura petidta e o autor resolve bater no Bolsonaro, milhões de vezes menos perigoso que o Lula. Muita gente no Brasil já está percebendo o engodo. Não queremos que aqui se torne uma nova Cuba ou a bagunça socialista da Venezuela. Ou o professor não sabe fazer uma simples análise de conjuntura ou, pior, está a serviço da canalha socialista. Lamentável.

  2. Ruy Samuel Espíndola disse:

    Excelente reflexão. Parabéns Prof. Dr. Conrado Hübner Mendes.

  3. André Luiz Pereira disse:

    Estou com o Ricardo! O conjunto de idéias sob as quais está preso e atravancado o debate político brasileiro chegou a um tal nível de mediocridade e imbecilidade que não há mais meios de introduzir nele alguma idéia divergente sem que isso seja feito ao modo Bolsonaro de fazer política.
    Os jargões e todos os cacoetes que reinam na mentalidade politicamente correta do brasileiro, impregnada toda ela por valores exclusivamente comunistas, marxistas, petistas – que nem sequer o percebem a população -, tornam quase impossível a adoção “polida” de uma postura de matiz conservadora, pelo simples fato de que o conservadorismo representa, por seus conceitos, um ataque direto a toda essa nojeira que aí está e à qual me referi acima.
    Em outras palavras, para o conjunto de idéias que formam o senso comum do brasileiro atual, a simples expressão de uma idéia conservadora já significa uma ofensa tamanha que não é possível fazê-lo sem que o lado de lá se sinta profundamente ofendido e, na sua resposta, de antemão não deixe de revelar um ar de dignidade malferida a exigir respeito do adversário, como se este fosse um bárbaro ao qual seria necessário ensinar modos e aquele um digno cidadão a quem caberia o direito de, em resposta, expressar apenas sua perplexidade diante dos absurdos que foi obrigado a ouvir.
    Ora, me digam se não é precisamente isso que está a fazer esse professor da USP? Ah tenha dó ô Conrado Hübner Mendes… Eu como cristão sou obrigado a ver os princípios da minha religião diariamente denegridos, como conservador a ver os ideais que defendo serem cada dia mais subtraídos do debate (veja bem que me refiro ao debate! Ou seja, é proibido falar sobre), e quando surge um Bolsonaro chutando o balde – o que confesso queria eu estar fazendo – me vem você com esse tom de nobreza dizer sobre decência política, primitivismo, etc.!?
    Eu quero sim ver bandido na cadeia – e não acho nem um pouco ruim quando levam uns sopapos do povo na rua -, quero ver o fim da imoralidade pública, ver o fim do assistencialismo promovido pelo governo do PT, e não vejo outro político defendendo abertamente isso que não apenas o Bolsonaro, “o bárbaro”. Que seja ele então! E que o deixem falar, pois esse tom do bom moço, da dózinha universal – dó do bandido, dó do gay, dó do índio, dó do MST, dó do Maduro (e do Chaves antes dele), dó dos irmãos Castro, dó do Genuíno, do Delúbio e do Dirceu, e de tantos outros “coitadinhos” -, esse sim já não tem mais espaço, estamos fartos disso!

  4. João Paulo disse:

    Engraçado, quando o governo conseguiu atingir um dos alvos do PNDH 3, reconhecimento da união estável de pessoas do mesmo sexo, poucos (não recordo agora do nome de nenhum)”constitucionalistas” saíram em defesa da CF contra a mutação constitucional (melhor chamar deformação)feita ao interpretarem o art. 226, § 3º como sendo homem e mulher = a homem+homem ou mulher+mulher.
    Defender a CF com os extremismos do Bolsonaro pode, mas contra a heterofobia fixada pelo STF não?
    Se o STF interpreta que homem e mulher é igual mulher+mulher ou homem+homem, que podemos esperar da “mutação” ou “interpretação conforme” de outras normas?

  5. Alberto Câmara disse:

    De início, parabéns Prof. Conrado. Creio que por alguns dos comentários seu pensamento só se tornou mais substancial.

    Fico a me perguntar como é possível utilizar o nome do maior pacifista de todos os tempo, JESUS CRISTO, para justificar agressões e mortes em seu nome. Aliás, pelo que me recordo foi Ele que falou: “Amai-vos uns aos outros como eu vos amei.” e “Eu e o Pai somos um só.”

    Ora, se Ele disse que é o próprio Deus e, por conseguinte, Deus ama a todos incondicionalmente, como pode ser possível negar direitos a todos os seres vivos, em especial a nós “humanos”.

    Penso, tal como o articulista, que o discurso do ilustre Deputado é de fato muito perigoso. Mas não pela sua opinião divergente, que até ai devemos respeitar. Mas sim pela forma que é dito, pelo populismo utilizado, pela energia que é transmita por trás das palavras. Essa energia (leia-se intenção) é, no meu respeitoso modo de ver, segregatória.

    Devemos parar com essa ideia de que tudo no Brasil se resume a Petismo e antipetismo, ou mesmo a qualquer outro partido “da situação”.

    Ao que senti, o professor fez uma análise pontual, pois, se o fizesse de forma contextualizada deveria escrever um livro.

    Por fim, meus irmãos cristãos, acalmem vossos corações e afugentem a ira de seus pensamentos. Esses sentimentos somente os causarão mais dor.

    Por fim, respeito o direito do deputado externar sua opinião – que foi conquistada pela atual constituição -, mas com ela discordo, tal como disse Voltaire.

    Grande abraço à todos,
    Paz e amor,

  6. André Luiz Pereira disse:

    O problema não está propriamente na forma de se expressar do Deputado Bolsonaro, esse constitui o mérito de uma posição política que se mostra contrária à do governo e com ela pode-se concordar ou discordar, o que é normal e faz bem à democracia.

    Chama atenção é a forma como sempre se manifestam os formadores de opinião no Brasil diante de uma opinião claramente contrária ao estereótipo politicamente correto ao qual me referi no meu primeiro comentário, sempre com esse ar de afetação a exigir polidez do lado oposto, evitando o debate… É essa dissimulação que temos de combater! Uma mordaça travestida de “debate civilizado” que pretende reduzir toda discussão a um círculo fechado dentro do qual já não é mais possível haver nenhuma discordância substancial, senão pequenas e pontuais divergências entre pessoas que pensam o mesmo e defendem o mesmo. Será tão difícil entender isso?

    O próprio autor do artigo oferece um exemplo muito claro do que estou dizendo: ao lamentar o bolsonarismo taxando-o de primitivo e indecente porque desconsidera a relação direta entre o encarceramento e o agravamento da violência, o autor está dizendo objetivamente que somente pode ser considerada moderna e decente, ou seja, aceitável, a postura política que defenda a descriminalização e a redução das prisões, logo, estando o Bolsonaro além desse limite tolerável, ele não é tido como uma oposição, mas como algo repugnante que deve ser estirpado do debate político, que não deve e não pode ser aceito.

    Ora, quem de plano só aceita como válida a postura política que comunga dos mesmos pressupostos que a sua própria não pode, ao mesmo tempo, querer defender a democracia, havendo aí uma contradição intrínseca que, se não a enxerga quem a defende, trata-se de um inepto cuja opinião não deve ser levada a sério, ou, se a enxerga muito bem e ainda assim insiste na confusão, só pode se tratar de um embusteiro e um enganador egocêntrico, que acusa os outros de discriminação quando ele próprio não aceita diferenças.