24.08.12
Proteção constitucional da criança e do adolescente
Proteção Constitucional da Criança e do Adolescente, Vulnerabilidade e Gênero no Sistema de Direito Brasileiro: algumas reflexões dialogais
“A Justiça é a primeira virtude das instituições sociais”[1]
Sobressai da ordem social preconizada na Constituição Federal de 1988[2], no Capítulo VII, Título VIII, a explícita priorização na proteção da criança e do adolescente, com o estabelecimento de uma ordem de proteção[3] máxima e especial que lhes fora atribuída, conforme se constata do caput do art. 226, “A Família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado” combinado com o art. 227 e seu § 3º, “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao laser, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão” e “o direito a proteção especial abrangerá os seguintes aspectos”.[4]
Nesta mesma preocupação protetiva[5] do constituinte com a criança e o adolescente, se encontra a destinação de recursos da seguridade social para as ações governamentais e política pública nesta especificidade, segundo se verifica do § 7º do mencionado dispositivo constitucional[6] e do caput do art. 204 da Constituição cidadã: “As ações governamentais na área da assistência social serão realizadas com recursos do orçamento da seguridade social, previstos no art. 195[7], além de outras fontes, e organizadas com bases nas seguintes diretrizes”.
Num célebre ensino sobre uma atuação constitucional, é oportuna a doutrina do príncipe dos constitucionalistas lusitanos, Dr. J.J. Gomes Canotilho, a respeito do papel de garantia e proteção da constituição:
“Uma das principais funções da constituição é a ‘função garantística’. Garantia de que? Desde logo, dos direitos e das liberdades… (omissis). Nas constituições modernas os direitos constitucionalmente garantidos e protegidos representavam a positivação jurídico-constitucional de direitos e liberdades inerentes ao indivíduo e preexistentes ao Estado”. [8]
Tal função garantista da Carta Magna deve ser compreendida com a convocação do meta-princípio da dignidade da pessoa humana – aqui de relevo e previamente, servimo-nos da doutrina de Ronald Dworkin, ao distinguir as normas dos princípios[9]: os princípios fazem referencia à Justiça e à Equidade (fairness). Enquanto que as normas se aplicam ou não se aplicam, os princípios dão razões para decidir em um sentido determinado. Porém, diferentemente das normas, seu enunciado não determina as condições de sua aplicação [10] – entendida esta dignidade da pessoa humana em seu sentido universal, isto é, como o ser que é dotado de razão e de consciência. [11] A Constituição confere, assim, uma unidade de sentido, de valor e de concordância prática ao sistema de direitos fundamentais. E ela repousa na dignidade da pessoa humana, ou seja, na concepção que faz da pessoa fundamento e fim do Estado.[12]
É de se frisar que a dignidade da pessoa humana exige a contraprestação do respeito à integridade física, psíquica e moral, com abrangência da preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, idéias e crenças, dos espaços e objetos pessoais. A dignidade da pessoa humana encontra-se no centro da construção dos direitos fundamentais. [13]
Não se deve olvidar que a ligação jurídico-positiva entre direitos fundamentais[14] e dignidade da pessoa humana, consoante a cátedra de Jorge Miranda, só começa com o Estado Social de Direito e, mais rigorosamente, com as Constituições e os grandes textos internacionais subseqüentes à Segunda Guerra Mundial.[15] E que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade e da paz no mundo.[16]
Os direitos da criança e do adolescente, tais como o direito à vida, à integridade física e psíquica, à educação, à saúde, à alimentação, etc, em sua grande maioria, estão inseridos na Constituição Federal de 1988, dentre a categoria de direitos sociais (Direitos Econômicos, Sociais e Culturais) e como tal, são direitos fundamentais[17], que advieram do esforço nacional de inserir os direitos humanos da criança e do adolescente na ordem positivada pátria. Tem razão Peces-Barba quando assevera que não podem existir direitos fundamentais que não tenham sido reconhecidos pelo ordenamento jurídico estatal. [18]
Em verdade, os direitos fundamentais[19] “constituem a principal garantia com que contam os cidadãos de um Estado de Direito de que o sistema jurídico e político em seu conjunto se orientará com a finalidade de respeito e promoção da pessoa humana”.[20] Assim, é de se compreender, conforme asseverou Perez Luño[21], que a positivação dos direitos fundamentais não tem um mero caráter declarativo de reconhecimento de uns direitos ou valores jurídicos prévios, mas, sim constitutivo, na medida que se trata de dar vida no ordenamento jurídico estatal a umas normas que regulam situações subjetivas, com independência do seu conteúdo material e sem fazer remissão a fontes legitimadoras alheias a própria ordem jurídica positiva. Destarte, os direitos fundamentais se apresentam na vida normativa constitucional como um “conjunto de valores objetivos básicos (Grundwert, da doutrina germânica), e ao seu tempo, como o marco de proteção das situações jurídicas subjetivas”.[22]A “felicidade comum” ou “fraternidade” enquanto fim da sociedade, assumiu-se como a expressão moderna dos direitos humanos.[23]
Para uma melhor compreensão da construção histórica dos direitos da criança e do adolescente, oportuna se faz uma ligeira menção à Declaração dos Direitos da Criança, emitida pela ONU, em 20 de novembro de 1959 [24], que é um marco divisor na construção do direito da criança e do adolescente, considerados como titulares de interesses juridicamente protegidos. Entretanto, o reconhecimento internacional de que crianças e adolescentes são titulares de direito, restou coroado somente com a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, adotada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 20 de novembro de 1989, aprovada no Brasil pelo Decreto Legislativo nº 28, de 14 de setembro de 1990 e promulgada pelo Decreto nº 99.710 de 21 de novembro de 1990.
Esta Convenção da ONU sobre os Direitos da Criança, como reconheceu Garrido de Paula[25], tem forte lastro na concepção da dignidade da pessoa humana:
“Os princípios da Carta das Nações – liberdade, justiça e paz no mundo – se fundamentam no reconhecimento da dignidade inerente e dos direitos iguais e inalienáveis de todos os membros da família humana e que a Declaração Universal dos Direitos Humanos proclama que a infância tem direito a cuidados e assistência especiais. Reconhece que a criança, para o pleno e harmonioso desenvolvimento de sua personalidade, deve crescer no seio da família, em um ambiente de felicidade, amor e compreensão, que deve estar plenamente preparada para uma vida independente na sociedade e ser educada especialmente com espírito de paz, dignidade, tolerância, liberdade, igualdade e solidariedade. Expressamente consigna que “a criança, em virtude de sua falta de maturidade física e mental, necessita proteção e cuidados especiais, inclusive a devida proteção legal, tanto antes quanto após seu nascimento” (sem negritos no original)
No tocante aos direitos fundamentais específicos da criança e do adolescente, é de se constatar, precipuamente, que o disposto no § 2º, 1ª parte do art. 5º da CF/88, ao dispor que “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados… (omissis)”, não encerrou em numerus clausus os direitos fundamentais elencados nos incisos I a LXXVIII do mencionado art. 5º, mas deixando em aberto a possibilidade de outros, por este sistema aberto de consagração dos direitos fundamentais. [26]
A Constituição de 1988 conferiu dignidade à criança especialmente pelo reconhecimento da titularidade de direitos, rompendo com a concepção de proteção reflexa. Igualmente representou o coroamento de uma luta contra a discriminação decorrente de idade, em mais uma evidência do que se conhece por culturalismo reativo. [27] Mas não só, eis que a CF/88 foi além da proclamação dos interesses protegidos, enfatizando as obrigações correspondentes da Família, Sociedade e do Estado, numa clara preocupação com a concretude das normas através de uma forma de dicção dos direitos e dos conseqüentes deveres. É o que se verifica do citado art. 227.
Vale ressaltar também que o legislador constituinte ao estatuir o modelo de garantia contra a discriminação no caput do art.5º, “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à igualdade, à segurança e à propriedade”[28] contemplou, evidentemente, a distinção em razão da idade, deixando absolutamente reconhecível a cidadela jurídica da criança e do adolescente. [29]
Destarte, a Constituição da República de 1988 promove a dignidade da criança através da prescrição de direitos, igualando sua condição com as demais pessoas humanas, não permitindo distinção relativa à idade, conforme a referida vedação do art. 5º, supra destacado. Complementando a proteção da criança e adolescente, adveio a Lei nº 8069/90, Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, que reafirma esses direitos constitucionais fundamentais bem como confere proteção integral, conforme o teor do art. 3º: “A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo de proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidade e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade”.
A finalidade declarada do ECA é a proteção integral da criança e do adolescente, que consiste no desenvolvimento saudável e na garantia da integridade. Assenta-se a Lei, segundo doutrina dominante, em dois princípios fundamentais: respeito à condição peculiar de pessoa em processo de desenvolvimento e prioridade absoluta. Dedica esta significativa norma infraconstitucional, todo o Título II, do Livro I, aos direitos fundamentais da criança e adolescente, sendo que, no capítulo I faz a proteção aos direitos à vida e à saúde; e no capítulo II, ao direito à liberdade, ao respeito e à dignidade.
Explicitar essas qualidades e condições de vida através de formulações jurídicas, aclarando o conteúdo de cada uma delas e propiciando uma maior vinculação dos obrigados, na visão de Garrido de Paula[30], representou inegável desafio: a primeira tarefa foi assentar a regra da igualdade, com o que contribuiu com isso, o art.15 do ECA: A criança e o adolescente têm direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como sujeito de direitos civis, humanos e sociais garantidos na Constituição e nas leis”. O passo seguinte consistiu na explicitação de alguns aspectos do direito à liberdade, o que o fez de forma exemplificativa no art.16: “O direito à liberdade compreende os seguintes aspectos: I – ir, vir e estar nos logradouros públicos e espaços comunitários, ressalvadas as restrições legais; II – opinião e expressão; III – crença e culto religioso; IV – brincar, praticar esportes e divertir-se[31].
O direito de brincar deve ser levado a sério neste nosso país, aonde ainda existem violações e desrespeitos aos direitos humanos, sufragados tais direitos neste particular pela OIT, que veementemente condena o trabalho infantil. Inegável, inclusive sua caracterização como direito fundamental.
Ademais, é de se destacar no art. 17 do ECA, o meta principio da dignidade, especialmente considerado para estas duas categorias jurídicas de criança e de adolescente: “O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, idéias e crenças, dos espaços e objetos pessoais.”.
Inegável que essa dimensão protetiva e de reconhecimento dessa cidadania, fez surgir duas novas categorias de cidadãos: o cidadão-criança e o cidadão-adolescente, que se estratifica solidamente através dos artigos 15 a 18 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Resumindo: o art. 15 consagra esta cidadania, reafirmando que a criança e o adolescente são sujeitos de direitos fundamentais; o art. 16 versa sobre a liberdade, em seus diversos aspectos; o art.17 cuida da dignidade, ao mencionar o “direito ao respeito” e o, por último, no art.18, o culturalismo reativo, visando resgatar esta dignidade da criança e do adolescente, a partir de sua violação.
Ainda considerando a ordem de proteção especial à criança e ao adolescente, é de se ressaltar, o que o constituinte estabeleceu no § 4º do citado art.227 da CF/88: “A lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do adolescente.”. Assim, o legislador infraconstitucional, no afã de proporcionar proteção sexual de vulnerável pela menoridade, tanto no Código Penal quanto no Estatuto da Criança e do Adolescente, regulamentou tipificando as condutas criminosas específicas e as penas que incidem sobre as mesmas. No Código Penal, esta proteção sexual de vulnerável se verifica com a penalização das seguintes condutas[32]: 1) o art. 217-A, acrescentado ao CPB pela Lei 12.015/2009, estatuiu o tipo estrupo de vulnerável[33]; 2) o art.218 previu o tipo do induzimento de menor à lascívia[34]; 3) o art.218-A, o crime de satisfação de lascívia mediante presença de criança e adolescente[35]; e 4) o art.218-B, o de favorecimento da prostituição ou outra forma de exploração sexual de vulnerável[36].
O Estatuto da Criança e do Adolescente, por sua vez, penalizou distintas e múltiplas condutas nos tipos dos arts. 228 a 244-A, que vão além da proteção sexual da criança e adolescente, estatuindo diversos crimes praticados contra a criança, num esforço de tentar alcançar qualquer ato contrário à dignidade da criança e do adolescente, que não se limitam a práticas sexuais ilícitas e repugnáveis face à maior vulnerabilidade destas vítimas que não possuem ainda a capacidade de querer e determinar-se segundo seu entendimento, face ao incompleto desenvolvimento humano, biológico, psíquico, emocional, social, cultural ou ainda em qualquer de sua dimensão existencial. Assim, não se pode negar que o grau de proteção constitucional e legal disponibilizado a esta categoria jurídica de criança e adolescente, é maior, mais intensa e mais ampla que a proteção disponibilizada ao gênero.
Nesta esteira de raciocínio, o enfrentamento institucional dos crimes contra criança e adolescente, independente de qualquer condição – por exemplo, se o infante é do sexo feminino ou masculino ou se é dessa ou daquela raça ou etnia ou ainda pertencente a classes sócio-econômicas mais baixas ou mais altas ou ainda insistindo neste raciocínio, se é de família que pratica tal ou qual religião – deve ser feito com o mesmo rigor e seriedade, por profissionais especializados na matéria e segundo as normas da organização judiciária local, respeitando-se neste caso os princípios constitucionais do Juiz Natural e da Específica Competência. Destarte, não se pode jamais abandonar estes princípios, que se transformam em exigências para aqueles encarregados da prestação jurisdicional.
Ademais, a denegação deste direito àquelas vítimas de maior vulnerabilidade, de serem protegidas pelo juiz natural e competente[37], afronta norma constitucional e legal, constituindo-se assim em grave violação das normas aplicáveis às espécies, podendo, salvo melhor juízo, ser considerado inconstitucional qualquer posicionamento por ato administrativo ou decisão judicial que atente contra tais direitos fundamentais da criança e do adolescente.
Nesta ordem de ideias, é de considerar-se, de que maneira se encontra regulamentada esta especial competência nas leis estaduais de divisão e organização judiciária, para assim verificar se a mesma se encontra contemplada, na unidade da federação em apreço, com uma unidade jurisdicional própria de proteção à criança e adolescente ou se a distribuição desta especial competência está reservada, de forma destacada a uma das varas criminais existentes nas comarcas. Na primeira hipótese, tal unidade jurisdicional (vara especializada de proteção à criança e adolescente, ainda que não possua esta nomenclatura), é a única competente para processar e julgar os crimes cometidos contra infantes e adolescentes, sem qualquer distinção de gênero.
Assim, considerar as unidades jurisdicionais especializadas em combate à violência doméstica e familiar, contra a mulher, que foram criadas sob a égide da Lei 11.340/06, mais conhecida como Lei Maria da Penha (e, portanto, sob o manto de proteção ao gênero feminino), como competente para julgar os crimes cometidos contra meninas é atentar contra o conceito de gênero[38] que foi o critério escolhido pelo legislador nacional ao enfrentar, no plano legislativo, este tipo especialíssimo de violência contra a mulher.
Pode-se reconhecer que a violência de gênero é revestida de atributos assaz específicos, e de um grau de especialidade elevado, em razão da própria dificuldade de compreensão do conceito de gênero por parte daqueles que não lidam com a matéria. Por isso, não é incomum encontrar-se entre os atores do direito (advogados, promotores e juízes), quem não saiba discernir, com rigor e precisão, entre gênero e sexo. [39] Logo, se o profissional do direito não lida com a matéria cotidianamente, por causa deste grau de especialidade e daqueles atributos específicos que são próprios do conceito de gênero, é compreensível esta confusão conceitual. Tal distinção tem repercussões que escapam, em muito, ao tecnicismo acadêmico, por importar em reflexões de ordem prático-operacional, como o de saber aonde ajuizar as demandas de responsabilização de crimes contra a mulher ou mesmo dos crimes cometidos contra criança e adolescente. Na hipótese de maus tratos ou de violência sexual ou ainda de outro tipo de violência contra meninas – compreendidas estas aquelas personas que ainda não atingiram o limite de idade de 18 (dezoito) anos – indagar-se-ia, de quem é a competência para processar e julgar tais crimes? Da vara especializada em repressão aos crimes contra criança e adolescente? Ou da vara especializada em combater os crimes contra a mulher, criadas sob a égide da Lei Maria da Penha? Bem, a resposta, segundo as considerações retro expostas, somente pode ser atribuída à vara de proteção à criança e adolescente, por causa da maior vulnerabilidade de quem ainda não conta com o pleno desenvolvimento pessoal; que não se confunde da vulnerabilidade em razão do gênero ou mesmo de idosos ou de portadores de necessidades especiais.
Considere-se ademais que o conceito de gênero, para tal situação, somente se verifica quando o ser do sexo feminino atingir a maioridade, aos 18 (dezoito) anos de idade. Antes disso não se pode falar em gênero, mas sim em especial proteção de criança e adolescente. Uma menina é menina, é criança ou adolescente, pois enquanto não se desenvolver completamente em seus aspectos biológico, psicológico, moral e social, ainda não é mulher e nem detém a plena capacidade de querer e de determinar-se por si só, necessitando do auxílio dos pais ou responsáveis para os atos da vida civil[40] e também não responde pelos crimes eventualmente cometidos, por não serem imputáveis. [41]
A vulnerabilidade das crianças e adolescentes é maior do que a de gênero.[42] Assim quis o legislador constituinte, quando estabeleceu no caput do art.227 que “é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, descriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”. (sem negrito no original).
É de se notar ainda, que toda violência de gênero é uma violência contra a mulher, mas nem toda violência contra a mulher é violência de gênero. Verbi gratia, se uma mulher é agredida fisicamente no meio da rua por um transeunte (que ela sequer conhecia) ou se é assaltada ou ainda estuprada[43], trata-se esta hipótese de violência contra a mulher e nunca de violência de gênero. E assim a competência para tais crimes é de uma das varas criminais comuns, segundo a Lei de Divisão e Organização Judiciária. [44]
Vale a colação do art. 5º da Lei 11.340/06, que configura a opção legislativa pelo gênero, ao definir o entendimento de violência doméstica e familiar contra a mulher, como sendo: “qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial” (negritos nossos), nos âmbitos da unidade doméstica (espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas) e da família (a comunidade formada por indivíduos que são ou se considerem aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa) e em qualquer relação íntima de afeto (extraído dos incisos I a III do mencionado art.5º, LMP).
À guisa de conclusão, é de se convocar novamente John Rawls, em sua maravilhosa afirmação[45]: “a Justiça só será efetiva se os homens tiverem um sentido de justiça e se respeitarem uns aos outros”.
É no respeito ao outro, independente de ser criança, adolescente ou ser integrante do sexo feminino (ou qualquer outra condição), e no reconhecimento de que somos todos iguais, sem qualquer distinção, e ainda, valorizando a dignidade destes nossos semelhantes de forma fraternal, que construiremos uma sociedade melhor, mais justa e solidária.
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NELSON M. DE MORAES REGO é juiz titular da Vara Especial de Combate a Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher da Comarca de São Luís – MA. É doutor em Direitos Humanos pela Universidade de Salamanca, Espanha, mestreem Ciências Jurídico-Processuais pela Universidade de Coimbra, Portugal, e licenciado em Filosofia e em Teologia. Professor universitário, escritor e conferencista.
Foto: Pink Sherbet Photography/Flick.
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Notas:
[1] RAWLS, John, Teoria de la Justicia, (A Teory of Justice, 1971. Trad. espanhola, 1979), 2ª ed., 2ª reimpressão, Madrid, 2002, p.529. Para RAWLS os princípios de Justiça “solo serán efectivos si los hombres tienen um sentido de justicia y se respetan, por tanto, unos a otros, el concepto del respeto o del valor intrínseco de las personas no es base adecuada para llegar a esos princípios…una vez que se dispone de la concepción de la justicia, las ideas de respeto y de dignidad humana pueden adquirir um significado más definido. Entre otras cosas, el respeto a las personas se demonstra tratándolas de modo que ellas puedan ver justificado…Así, respetar a las personas es reconocer que poseen una inviolabilidad fundada en la justicia, que ni siquiera el bienestar de la sociedad en conjunto puede atropelar. Esto significa que la perdida de la libertad por parte de algunos no se compensa por el hecho de que otros gocen de un mayor bien-estar. La Teoria de la Justicia ofrece uma versión de estas ideas.”.
[2] Instrumento para a construção de uma sociedade fraterna, plularista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional com a solução pacífica das controvérsias, calcou sua fundamentação jurídico-político, consoante seu art 1º, em cinco pilares: I) a soberania; II) a cidadania; III) a dignidade da pessoa humana; IV) os valores sociais do trabalho e da live iniciativa e o V) o pluralismo político. Assim temos, segundo GARRIDO DE PAULA, Paulo Afonso “Criança e Dignidade da Pessoa Humana”in Tratado Luso-Brasileiro da Pessoa Humana, Quartier Latin (2ª ed, atualizada e ampliada), São Paulo, 2009, pp.1037 a 1058, uma planta prévia para a construção de um edifício do povo (soberania), para uso e gozo pleno do povo (cidadania), num ambiente de respeito a cada um e a todos ( dignidade da pessoa humana), custeado pelas atividades e iniciativas de seus abrigados voltadas ao bem comum (valores sociais do trabalho e da livre iniciativa) e dirigido pelos seus moradores, através de suas livres organizações (pluralismo político), cujos objetivos desta nossa sociedade estão elencados no art. 3º: I) construir uma sociedade livre, justa e solidária; II) garantir o desenvolviemento nacional; III) erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV) promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outra forma de discriminação.
[3] Os direitos a proteção, como é o caso da proteção da criança e do adolescente, na concepção de Robert Alexy, Derechos Sociales y Ponderación, Fundação Colóquio Jurídico Europeo, 2ª Edição, Madrid,, 2009, p.54, são os direitos constitucionais que ostenta o particular contra o Estado, quer dizer, a que este lhe proteja da interferência de terceiros. Acrescenta Alexy, à p.66: “…si se viola um derecho a protección al denegarle totalmente protección o al no darle protección suficiente”
[4] Sem negritos no original.
[5] A propósito de política de proteção, é de se lembrar de FOUCAULT, Michel, História da Sexualidade, a vontade de saber, vol. I, Relógio D’Água Editores, Lisboa, 1994, p.132 quando menciona a política de proteção referente à prática do incesto: “…toda uma política de proteção da criança ou de colocação sob tutela dos menores “em perigo” tinha, em parte, como obejectivo a sua retirada para fora das famílias que eram suspeitas – por falta de lugar, proximidade duvidosa, hábitos de deboche, “primitivismo selvagem”ou degenerescência – de praticarem o incesto. Enquanto o dispositivo de sexualidade tinham desde o século XVIII intensificado as relações afectivas, as proximidades corporais entre pais e filhos, enquanto houvera um perpétuo incitamento ao incesto na família burguesa, o regime de sexualidade aplicado às classes populares implica, pelo contrário, a exclusão das práticas do incesto ou, pelo menos, o seu deslocamento sob outra forma. Na época em que, por um lado, o incesto é perseguido como comportamento, pelo outro, a psicanálise esforça-se por trazê-lo a luz como desejo e por destruir para aqueles que o sofrem o rigor que o recalca. Não se deve esquecer que a descoberta do Édipo foi contemporânea da organização jurídica da perda do poder paternal (em França, pelas leis de 1989 e 1898). No momento em que FREUD descobria qual era o desejo de Dora e permitia que ele se formulasse, todos se armavam para desfazer em outras camadas sociais, todas aquelas proximidades censuráveis; o pai era, por um lado, erigido em objecto de amor obrigatório; mas por outro, se era amante, era destronado pela lei. Assim, a psicanálise como prática terapêutica reservada, desempenhava relativamente a outros processos um papel diferenciador, num dispositivo de sexualidade agora generalizado.”. Sabe-se pelas informações de FOUCAULT nesta referida obra que no século XIX, além da psiquiatrização e da cientificização do sexo (pela Pedagogia, Medicina e Economia), ocorrera outro fenômeno histórico, a “jurisprudencialização” do sexo (embora FOUCUALT não use esta expressão), pela regulação legal de sanções a certas práticas sexuais censuráveis, como o incesto.
[6] Art. 227, § 7º, da CF/88: “No atendimento dos direitos da criança e do adolescente levar-se-á em consideração o disposto no art.204.”
[7] Art.195 da CF/88:”A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais: (omissis, incisos I a IV e §§ 1º a 13)”
[8] Direito Constitucional e Teoria da Constituição, (Reimpressão da7ª edição), Almedina, Coimbra, 2005, p.1440.
[9] Ver a este respeito também ALEXY, Robert, Teoria dos Direitos Fundamentais, (trad. Virgílio Afonso da Silva da 5ª ed. Alemã, Theorie der Grundrechte, 2006), Malheiros Editores, São Paulo, 2008, pp.90/91:”O ponto decisivo na distinção entre regras e princípios é que princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida do possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes. Princípios são, por conseguinte, mandamentos de otimização, que são caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus variados e pelo fato de que a medida devida de sua satisfação não depende somente de possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas. O âmbito das possibilidades jurídicas é determinado pelos princípios e regras colidentes. Já as regras são normas que são sempre ou satisfeitas ou não satisfeitas. Se uma regra vale, então, deve se fazer exatamente aquilo que ela exige; nem mais, nem menos. Regras contêm, portanto, determinações no âmbito daquilo que é fática e juridicamente possível. Isso significa que a distinção entre regras e princípios é uma distinção qualitativa, e não uma distinção de grau. Toda norma é ou uma regra ou um princípio.”. (negritos nossos).
[10] DWORKIN, Ronald, Los Derechos en Serio, Editorial Ariel, 1ª ed, 5ª reimpresión, Barcelona, 2002, p.9. O autor referido acrescenta que os princípios “informan las normas jurídicas concretas de tal forma que la literalidad de la norma puede ser desatendida por el juez cuando viola um principio que em esse caso especifico se considera importante”. A respeito dos princípios do Direito e da Justiça, John RAWLS assevera:”los princípios del derecho y de la justicia son colectivamente racionales; y va em interes de cada uno que todos los demás cumplan com las disposiciones justas. También es cierto que la afirmación general del sentido de la justicia es un gran valor social, pues establece la base de una confianza y una seguridad mutuas, a partir de la cual, normalmente, todos se benefician”. Desta forma RAWLS demonstra sua visão sobre o sentido da Justiça, in Teoria de la Justicia, Op. Cit.,pp.519/521.
[11] Eis o denominador comum a todos os homens em que consiste esta igualdade. Dotados de razão e consciência, fator este essencialmente relevante e categórico, para além das diferenciações econômicas, culturais e sociais a justificar o reconhecimento, a garantia e a promoção dos direitos fundamentais.
[12] MIRANDA, Jorge, A Constituição de 1976, formação, estruturação, princípios fundamentais, Lisboa, 1978, p.348.
[13] GARRIDO DE PAULA, Paulo Afonso, “Criança e Dignidade da Pessoa Humana”, Op. Cit. p.1039.
[14] Sobre a dogmática dos direitos fundamentais, ver ALEXY, Robert, Teoria dos Direitos Fundamentais, Op. Cit, pp.42/49.
[15] MIRANDA, Jorge, A Dignidade da Pessoa Humana e a Unidade Valorativa do Sistema de Direitos Fundamentais, in Tratado Luso-Brasileiro da Dignidade Humana, 2ª ed Atualizada e Ampliada, Ed. Quartier Latin do Brasil, São Paulo, 2009, p.168.
[16] Cfr Preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos do Homem, ONU, 10 de dezembro de 1948. Por sua vez, a Carta das Nações Unidas, celebrada há mais ou menos três anos antes, na cidade de São Francisco/EUA, também no preâmbulo, reafirmou a fé nos “direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor da pessoa humana, na igualdade de direitos dos homens e das mulheres, assim como das nações, grandes e pequenas”, cfr. RODRIGUES, L. Barbosa & CARNEIRO, Alberto Soares, Direitos Humanos, textos fundamentais, Quid Júris Editora, Lisboa, 2011, pp.7/27.
[17] Interessante o escólio de SILVIO MOTA & WILLIAM DOUGLAS, Direito Constitucional, Teoria, Jurisprudência e 1000 Questões, ed. Impetus, 14ª ed, Rio de Janeiro, 2004, p.73, ao considerar, a título propedêutico que: “os direitos [fundamentais] são apenas cinco: à vida, à liberdade, à igualdade e à propriedade. Os setenta e sete incisos [são atualmente setenta e oito] que se seguem ao caput são apenas variações destes cinco direitos, de forma que existem “n” variações do direito à vida, como proteção à intimidade, a proteção à integridade física, a vedação de tratamento desumano, etc. Existem ainda outras variações do direito à liberdade, como liberdade de crença, de locomoção, de comunicação, de reunião, etc. Em suma, são setenta e sete variações de cinco direitos colocados no caput, sendo essencial que os leitores disso se apercebam antes de intentar uma compreensão escorreita do dispositivo constitucional em tela [art.5º]”.
[18] PECES BARBA, G., Curso de Derechos Fundamentales, I, Teoria General, Eudema, Madrid, 1991, pp.34.
[19] PÉREZ LUÑO, Antonio Enrique, Derechos Humanos, Estado de Derecho y Constitución, Editorial Tecnos, 9ª ed., Madrid, 2005, pp.32/33 doutrina-nos que;”El término ‘derechos fundamentales’, droits fondamentaux, aparece em Francia hacia 1770 en el movimiento político y cultural que condujo a la Declaración de los Derechos del Hombre y del Ciudadano de 1789. La expresión ha alcanzado luego especial relieve en Alemania, donde bajo el título de Grundrechte se ha articulado el sistema de relaciones entre el individuo y el Estado, en cuanto fundamento de todo el orden jurídico-político. Este es su sentido en la Grundgesetz de Bonn de 1949. De ahí que gran parte de la doctrina entienda que los derechos fundamentales son aquellos derechos humanos positivizados en las constituciones estatales. Es más, para algún autor los derechos fundamentales serían aquellos princípios que resumen la concepción del mundo (Weltanschauung) y que informan la ideología política de cada ordenamiento jurídico.”
[20] PEREZ LUÑO, Antonio Enrique, Los Derechos Fundamentales, Ed. Tecnos, Octava edicion, Madrid, 2004, p.50 (tradução nossa do conceito de d. fundamentais, citado no texto). E, ainda no plano conceitual do mencionado autor à página 51, os direitos fundamentais são “uma categoria descriptiva de los derechos humanos positivados en el ordenamiento jurídico”. Por sua vez conceitua os direitos humanos como uma “categoria previa, legitimadora e informadora dos direitos fundamnetais”, p.51.
[21] PEREZ LUÑO, Antonio Enrique, Op. Cit., p.50.
[22] São os direitos fundamentais o resultado do acordo básico das diferentes forças sociais que atuam em um dado momento histórico e em um delimitado espaço social.
[23] Cfr J.J. GOMES CANOTILHO, O Círculo e a Linha, Da Liberdade dos Antigos à Liberdade dos Modernos, na Teoria Republicana dos Direitos Fundamentais, in Estudos sobre Direitos Fundamentais, Coimbra Editora, Coimbra, 2004, p.33. Ainda, à p.34, aponta este festejado autor lusitano os topoi essenciais da teoria democrática-funcional:”1) reconhecimento de direitos fundamentais aos cidadãos para serem exercidos como membros da comunidade e no interesse público; 2) o exercício da liberdade é um meio de garantia e prossecução do processo democrático; 3) a vinculação do exercício dos direitos à prossecução de fins públicos justifica a sua articulação com a idéia de deveres; 4) a dimensão funcional justifica em caso de “abuso”, a intervenção restritiva dos poderes públicos.”.
[24] Faltam referências expressas à criança na Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948. Embora o art.2º vede discriminação de qualquer natureza, o que inclui as relacionadas à idade, somente no art .25, inciso II, é que se verifica expressa menção: “a maternidade e a infância têm direitos a cuidados e assistência especial”. Na verdade, o direito internacional caminhou lentamente em direção ao reconhecimento dos direitos da criança. Vale registrar aqui a Declaração de Genebra, aprovada pela Liga das Nações em 26 de setembro de 1924. Mais de trinta e cinco anos depois dessa histórica Declaração, aos 20 de novembro de 1959, a ONU adota, em assembléia, uma declaração especial, explicitando que é a mesma proclamada “visando que a criança tenha uma infância feliz e possa gozar, em seu próprio benefício e no da sociedade, dos direitos e das liberdades” que enuncia. Destaca-se do preâmbulo o seguinte: “…visto que a criança, em decorrência de sua imaturidade física e mental, precisa de proteção e cuidados especiais, inclusive proteção legal apropriada, antes e depois do nascimento; visto que a necessidade de tal proteção foi enunciada na Declaração dos Direitos da Criança em Genebra, de 1924, e reconhecida na Declaração Universal dos Direitos Humanos e nos estatutos das agências especializadas e organizações internacionais interessadas no bem-estar da criança e visto que a humanidade deve à criança o melhor de seus esforços”. (negritos nossos). Esta Declaração representou um avanço significativo na construção do direito da criança e do adolescente, estando na ocasião na vanguarda das formulações normativas.
[25] GARRIDO DE PAULA, Paulo Afonso, “Criança e Dignidade da Pessoa Humana”, in Tratado Luso-Brasileiro da Pessoa Humana, Op. Cit., p. 1049.
[26] DE MORAES, Alexandre Direito Constitucional, Editora Atlas, S.Paulo, 2003, p.136: “A enumeração do art.5º da Constituição não excluí a existência de outros direitos e garantias individuais, de caráter “infraconstitucional”…”.Também no mesmo sentido, MOTA, Silvio & DOUGLAS, William, Direito Constitucional…, Op. Cit., p.135; “O dispositivo derradeiro busca afirmar que a Constituição, ao enumerar os direitos fundamentais, não teve a preocupação de ser taxativa, admitindo direitos implícitos (ou sensíveis) decorrentes da legislação infraconstitucional”. Os direitos elencados no art.5º e seus incisos, constituem um mínimo minimorum dos direitos que qualquer indivíduo deve usufruir em um Estado democrático. Ainda os autores, à p.75, afirmam que os direitos fundamentais reconhecidos no art. 5º e seus LXXVIII: “Existem para garantir a dignidade da pessoa humana, conforme estabelece o art. 1º, III, da nossa Carta.”.
[27] Tal como ocorre no culturalismo reativo da igualdade de gênero e do respeito aos direitos humanos das mulheres, deslanchado a partir da vigência da Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/06).
[28] Sem negritos no original.
[29] GARRIDO DE PAULA, Paulo Afonso, “Criança e Dignidade da Pessoa Humana”, in Tratado Luso-Brasileiro da Pessoa Humana, Op. Cit., p. 1055, com destaque para a cidadela jurídica da criança e do adolescente, nesta referida página:”…a cidadela jurídica, estabelecida notadamente a partir do nascimento, representa fortaleza que também abriga e a protege crianças e adolescentes, principalmente das investidas arbitrárias e violentas do mundo adulto. A definição deste patamar de direitos, não foi fácil. A resistência foi enorme, mostrando que o obstáculo cultural – reconhecimento da criança como sujeito de direitos, obrigando Família, Sociedade e Estado – era de tal ordem que até mesmo a admissão de clássicas e antigas garantias processuais contra o arbítrio do Estado na persecução penal eram sustentadas como desnecessárias e desprovidas de valor na manutenção da liberdade de crianças e adolescentes. Estava ainda muito arraigada a idéia de que o Estado constituía-se em uma grande e boa família administrativa, de modo que qualquer decisão,ainda que “aparentemente” truculenta ou carregada de castigos, sempre era adotada em prol do “bem estar do menor”…(omissis). A Nova Carta gerava para os defensores dos direitos da criança e do adolescente a expectativa de que explicitasse o óbvio, ou seja, que quando em risco a liberdade pessoal em razão da prática de crimes. Crianças e adolescentes também eram titulares das garantias e direitos dos adultos, até mesmo em razão da igualdade perante a lei….[é o que se nota com a garantia do contraditório e da ampla defesa], no que determinou uma fórmula alternativa de conteúdo idêntico, consoante se verifica pela redação do art.227, § 3º, inciso IV da Constituição da República:garantia de pleno e formal conhecimento da atribuição de ato infracional, igualdade na relação processual e defesa técnica por profissional habilitado, segundo dispuser a legislação tutelar específica”(negritos nossos).
[30] GARRIDO DE PAULA, Paulo Afonso, “Criança e Dignidade da Pessoa Humana”, in Tratado Luso-Brasileiro da Pessoa Humana, Op. Cit., p.1057, que destaca a função deste art.15, ainda à p.1057; “O dispositivo deliberadamente contempla as três gerações de direitos fundamentais (direitos civis, humanos e sociais) e abrange a completude do ordenamento jurídico (Constituição e leis), vinculando-os às condições básicas da vida humana civilizada (liberdade, respeito e dignidade), conferindo à criança e ao adolescente uma cidadela jurídica de igual importância ao do cidadão-adulto.”.
[31] Percebe-se que o legislador previu no item IV deste art. 16 do ECA, o direito de brincar, praticar esportes e de divertir-se. Com o que defendemos aqui, tratar-se de outras hipóteses de direitos fundamentais.
[32] Cfr. a doutrina de ROGÉRIO GRECO, Código Penal Comentado, 6ª ed. revista, ampliada e atualizada, Editora Impetus, Niterói, 2012, p.643 e 644 é por demais significativa: ”A Lei nº 12.015, de 7 de agosto de 2009, caminhando de acordo com as reivindicações doutrinárias, unificou, no art.213 do Código Penal, as figuras de estupro e do atentado violento ao pudor, evitando-se desta forma, inúmeras controvérsias relativas à esses tipos penais, a exemplo do que ocorria com relação à possibilidade de continuidade delitiva, uma vez que a jurisprudência de nossos Tribunais, principalmente os Superiores, não era segura. A nova lei optou pela rubrica do estupro, que diz respeito ao fato de ter o agente constrangido alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou com ele permitir que se pratique outro ato libidinoso. Ao que parece, o legislador se rendeu ao fato de que a mídia, bem como a população em geral, usualmente denominava de “estupro” o que, na vigência da legislação anterior, seria concebido por atentado violento ao pudor, a exemplo do fato de um homem ser violentado sexualmente. Agora, como veremos mais adiante, não importa se o sujeito passivo é do sexo feminino, ou mesmo do sexo masculino que, se houver o constrangimento com a finalidade prevista no tipo penal do art. 213 do diploma repressivo, estaremos diante do crime de estupro. Em alguns países da Europa, tal como ocorre na Espanha, esse delito é chamado de “abuso sexual””. ( negritos nossos).
[33] Art. 217-A do Código Penal Brasileiro: “Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos: Pena – reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos”. E o § 1º
[34] Art. 218 do Código Penal Brasileiro, modificado pela Lei 12.015/2009: “Induzir alguém menor de 14 (catorze) anos a satisfazer a lascívia de outrem.”..
[35] Art. 218-A do Código Penal Brasileiro, incluído pela Lei 12.015/2009: “Praticar, na presença de alguém menor de 14 (catorze) anos, ou induzi-lo a presenciar, conjunção carnal ou outro ato libidinoso, a fim de satisfazer lascívia própria ou de outrem: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos”.
[36] Art. 218-B do Código Penal Brasileiro, incluído pela Lei 12.015/2009: “Submeter, induzir ou atrair à prostituição ou outra forma de exploração sexual alguém menor de 18 (dezoito) anos ou que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, facilitá-la, impedir ou dificultar que a abandone: Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 10 (dez) anos.”. Os §§ 1º e 2º, I e II descrevem, respectivamente, as formas qualificadas, com o fim de obter vantagem econômica e conjunção carnal ou outro ato libidinoso com menor em situação de prostituição e ainda responsabilização criminal de favorecimento da prostituição ou outra forma de exploração de vulnerável a quem é proprietário, gerencia o é responsável pelo local em que se verifica tais práticas sexuais criminalizadas pelo mencionado art.218-B: “§ 1º Se o crime é praticado com o fim de obter vantagem econômica, aplica-se também multa” e o “§ 2º,I, quem pratica conjunção carnal ou outro ato libidinoso com alguém menor de 18 (dezoito) e maior de 14 (catorze) anos ou na situação descrita no caput deste artigo”, e ainda “§ 2º, II,o proprietário, o gerente ou o responsável pelo local em que se verifiquem as práticas referidas no caput deste artigo[art.218-B]”.
[37] NERY JUNIOR, Nelson & ANDRADE NERY, Rosa Maria, Constituição Comentada e Legislação Constitucional, 2ª ed., Editora Revista dos Tribunais, S. Paulo, 2009, p. 236, discorre sobre o princípio do juiz natural e a designação de magistrado: “A designação de juiz para atuar, de forma genérica, em uma determinada vara, não ofende o princípio do juiz natural. Configura nulidade processual apenas a designação específica, casuística de magistrado para atuar em determinado feito. Diante do pedido de afastamento do juiz titular, por motivo de foro íntimo, o processo deve ser encaminhado para o outro juiz, designado pelo TJ, ante o acúmulo de processos, para ter exercício naquela Vara ( STF, 1ª T., RHC 89890-BA, rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 5.12.2006, v.u., DJU 2. 3.2007, p. 38; RT 861/515)”.
[38] Cfr. PEREIRA DE ANDRADE, Vera Regina, “A Soberania Patriarcal: o Sistema de Justiça Criminal no Tratamento da Violência Sexual contra a Mulher” in Revista Brasileira de Ciências Criminais, nº 48, S. Paulo, maio/jun. 2004, pp.260/290, notadamente à p.263, donde se percebe esta conceituação de gênero: “para além do dado biológico que define o sexo (cada nascimento requer um registro sexual, homem/mulher), o “gênero” será concebido como o sexo socialmente construído (a dicotomia feminino/masculino). E SAFFIOTI, Heleieth, O Poder do Macho, ed. Moderna, S. Paulo, 1987, p.11, a autora explicita que a difusão de que o sexo feminino é inferior ao masculino, é um fenômeno construído socialmente, sendo esta a teoria que demonstra, de forma mais lógica e coerente, a questão da desigualdade entre os gêneros.
[39] A propósito do conceito de gênero, vide MORAES RÊGO, Nelson et all, Lei Maria da Penha: o Conceito de Gênero como Núcleo Interpretativo, S.Luis/MA, 2012.
[40] Art. 5º da Lei 10.406/2002 (Código Civil): “A menoridade cessa aos dezoito anos completo, quando a pessoa fica habilitada a todos os atos da vida civil”.
[41] Art. 27 do CPB: “Os menores de 18 (dezoito) anos são plenamente inimputáveis, ficando sujeitos às normas estabelecidas na legislação especial”.
[42] Conquanto não se possa atribuir qualquer grau diferenciador no aspecto axiológico. A maior vulnerabilidade é unicamente normativa, isto é, o legislador constituinte optou por priorizar maximamente, com absoluta prioridade, a vulnerabilidade da criança e do adolescente, creio que pelo incompleto desenvolvimento pessoal. Apenas para argumentar, em caráter meramente reflexivo explicativo: o constituinte poderia até ter feito outras opções, como por exemplo, pela mulher, historicamente desprestigiada e desrespeitada em seus direitos humanos.
[43] GRECO, Rogério, Código Penal Comentado, Op. Cit., p.644, discorre sobre a situação que se encontra envolta a mulher vítima de um estupro: “A conduta de violentar uma mulher, forçando-a ao coito contra a sua vontade, não somente a inferioriza, como também a afeta psicologicamente, levando-a, muitas vezes ao suicídio. A sociedade, a seu turno, tomando conhecimento do estupro, passa a estigmatizar a vítima, tratando-a diferentemente, como se estivesse suja, contaminada com o sêmem do estuprador. A conjugação de todos estes fatores faz com que a vítima, mesmo depois de violentada, não comunique o fato à autoridade policial, fazendo parte, assim, daquilo que se denomina cifra negra. Hoje, com a criação das delegacias especializadas, pelo menos nas cidades de grande porte, as mulheres são ouvidas por outras mulheres sem o constrangimento que lhes era comum quando se dirigia aos homens, narrando o ocorrido. Era, na verdade, a narração de um filme pornográfico, no qual o ouvinte, embora fazendo o papel de austero, muitas vezes praticava atos de verdadeiro voyeurismo, estendendo, demasiadamente, os depoimentos das vítimas tão somente com a finalidade de satisfazer sua imaginação doentia”. (sem negritos no original).
[44] No Estado do Maranhão, vide a Lei Complementar nº 14/91 e suas emendas subseqüentes.
[45] Que aqui se traduz, de forma simplificada, Teoria de la Justicia, Op. Cit., p.529.
[…] artigo publicado em Os Constitucionalistas, o juiz Nelson M. Moraes Rego, faz algumas reflexões importantes sobre a Proteção […]