Por Renata Dayanne Peixoto de Lima
6.05.13

PEC 33 e a democracia reduzida à quantidade de votos

 

Muito tem se falado sobre o poder que terá o Congresso Nacional de invalidar algumas decisões e súmulas vinculantes do STF, caso a PEC 33/2011 seja aprovada. No entanto, essa não é a única mudança esdrúxula que se pretende nessa proposta de emenda à Constituição. Há também a tentativa de alteração do quórum de aprovação das súmulas vinculantes e das decisões sobre a inconstitucionalidade das emendas constitucionais. No STF, por exemplo, em vez dos votos de 6 ministros, a partir da alteração pretendida pela PEC seriam necessários os votos de 9 ministros para a declaração de inconstitucionalidade. Lendo a justificativa da PEC, pois toda proposta legislativa deve ser acompanhada de uma fundamentação, dentre os vários argumentos que considero fracos e absurdos há um que merece destaque:

Em primeiro lugar, entendemos salutar o aumento da maioria qualificada para declarar a inconstitucionalidade de lei aprovada no Parlamento. A opinião de apenas seis juízes, por mais cultos que sejam, não pode sobrepor a soberania popular, pois conhecimento jurídico não é fator de legitimação popular.

A minha pergunta é: seis não podem se sobrepor ao povo brasileiro, mas nove ministros poderiam? Que grande diferença isso faz? Vejam, talvez a o debate acerca do quórum nem seja tão relevante diante de uma proposta que prevê um absurdo maior, mas esses dispositivos da PEC 33 que tratam do quórum geram a sensação de que os legisladores desse país, ou pelo menos alguns deles, têm uma visão diminuta do que é democracia. A escolha pela maioria é uma técnica de decisão adotada para garantir o funcionamento da democracia, e neste ponto vale destacar o que pregou Hans Kelsen em seus escritos sobre democracia. Para Kelsen, não há grande diferença entre maioria simples e maioria qualificada (ele inclusive critica o uso desta última), pois em ambas você terá minorias e o compromisso com a minoria é um dos fatores mais importantes de legitimação da democracia.

Tendo a finalidade de respeitar as minorias, sendo esse o grande compromisso das democracias, Hans Kelsen propõe, inclusive, a troca da terminologia. Em vez de chamar de princípio majoritário, ele prega que este princípio deveria ser chamar de princípio majoritário-minoritário.[1] Esse compromisso hoje e desde o surgimento do Estado Constitucional é garantido através da Constituição, que existe para ser o pilar que sustenta os limites éticos às decisões da maioria em relação às minorias, evitando a “tirania da maioria” já propagada em 1834 por Alexis de Tocqueville:

Afinal o que é uma maioria tomada coletivamente, senão um indivíduo que tem opiniões e, na maioria dos casos, interesses contrários a outro indivíduo, denominado minoria? Ora, se você admitir que um homem investido da onipotência pode abusar dela contra seus adversários, por que não admite a mesma coisa para uma maioria? Os homens, reunindo-se, mudaram de caráter? Tornaram-se mais pacientes diante dos obstáculos tornando-se mais fortes? Quanto a mim, não poderia acreditar em tal coisa; e o poder de fazer tudo, que recuso a um só de meus semelhantes, nunca vou conceder a muitos.[2]

O estudo sobre a legitimidade democrática do controle de constitucionalidade tem sido preocupação constante de muitos constitucionalistas no Brasil e no mundo, sendo o meu objeto particular de estudo há algum tempo. Algo que sempre me incomodou foi a percepção de que alguns têm uma visão simplória de democracia, limitando-a ao voto e, ainda pior, a limitando à quantidade de votos. Se o debate fica em torno disso, a concepção sobre democracia empobrece. E mais, se é para ficar tratando democracia em números, nem 11 ministros do STF, nem 513 deputados, nem 81 senadores, nem 1 presidente, representarão os mais de 190 milhões de brasileiros que somos. A técnica de decisão é necessária para democracia, claro que é, mas argumentar que seis ministros não podem se sobrepor à soberania popular, mas nove podem, é, no mínimo, ilógico.

Acredito que é preciso pensar seriamente no papel que as instituições exercem e com fenômenos que possam representar exacerbação de poder, como é o caso do ativismo judicial. Na conclusão de minha dissertação de mestrado[3] fora observado isso, que a Constituição e o controle de constitucionalidade, sua criação e fortalecimento estavam ligados a momentos de abuso de poder e que no pós segunda guerra mundial, toda a estrutural social, econômica, teórica, política e, principalmente, jurídica, davam um protagonismo ao Judiciário que poderia representar um terceiro momento de abuso de poder. É preciso um debate sério que leve em consideração tudo o que nossa Constituição representou, representa e representará, passando inclusive pelo pensar se a concepção teórica do Estado Constitucional é a melhor para nós. Enquanto ela for a utilizada, é preciso que se respeitem as decisões do nosso Poder Constituinte Originário.

É preciso que se dê atenção a esse papel mais ativo do STF. Entendo que antes de descartarmos teorias precisamos decidir se preferimos ficar com elas porque se coadunam, concretizam e respeitam a história do povo brasileiro, ou a descartemos apenas porque elas ferem a vaidade de meia dúzia daqueles que, no fim de tudo, deveriam implementar a Constituição, mas optaram por não fazê-lo, porque não é esse seu principal objetivo de vida, mas sim, sempre ter mais e mais poder e pior, apenas porque é bom ter para atender interesses meramente pessoais.

Concluo com as palavras do professor José Adércio Leite Sampaio:

Eles, os políticos, não estão cientes da impossibilidade semântica de seus discursos, mas estão conscientes da distorção pragmática que dão às palavras. Sabem que mentem e mentem mesmo assim. Políticos habilidosos conseguem usar da demagogia, termo que resume esse estratagema sóciolinguístico, com tal desenvoltura que enganam a si mesmos, passando a acreditar piamente naquilo que dizem. Tornam-se, por isso, autênticos, embora mentirosos, mentirosos autênticos.[4]

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RENATA DAYANNE PEIXOTO DE LIMA é mestre e doutoranda em Direito Constitucional pela UFPE. Professora de Direito Constitucional da Faculdade Boa Viagem, Faculdade de Olinda e Faculdade Metropolitana do Grande Recife e de Processo Constitucional da Pós-Graduação lato sensu em Direito Processual da Faculdade Maurício de Nassau.

Foto: HORIZON

Notas:

[1] KELSEN, Hans. A democracia. Tradução de Ivone Castilho Benedetti, Jefferson Luiz Camargo, Marcelo Brandão Cipolla e Vera Barkow. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 70

[2] TOCQUEVILLE, Alexis. Democracia na América: livro 1, leis e costumes. Tradução de Eduardo Brandão, 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 294-295.

[3] LIMA, Renata Dayanne Peixoto A relação democracia e constituição: uma análise a partir da evolução do controle de constitucionalidade e fatores que o legitimaram. 2011. 168 fls. Dissertação de mestrado em Direito. Universidade Federal de Pernambuco. Recife. 2012.

[4] SAMPAIO, José Adércio Leite. A mentira autêntica dos políticos. Revista digital domtotal.com. Quarta-feira, 16 de novembro de 2011. Disponível em: <http://domtotal.com/colunas/detalhes.php?artId=2343> Acesso em: 17 nov. 2011, p. 1.



Um comentário

  1. O nobre deputado pareceu apenas querer dificultar ao máximo que o STF tenha um poder real de decisão. Não teve o descaramento de exigir unanimidade, pelo menos.

    Minha opinião sobre a PEC 33: http://italogomesadv.blogspot.com.br/2013/05/pec-33-nazareno-fonteles-venezuelizacao-do-brasil.html