Os Constitucionalistas
23.11.09

Conversas acadêmicas: Paulo Gustavo Gonet Branco e os Direitos Fundamentais (I)

 

 

 Parte 1

O professor Paulo Gustavo Gonet Branco é graduado em Direito pela Universidade de Brasília (1982), com mestrado em Direitos Humanos pela University of Essex (1990) e doutorado em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (2008). É membro fundador e professor de Direito Constitucional do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), onde também é o coordenador do mestrado acadêmico. É procurador regional da República e autor dos livros Juízo de ponderação na jurisdição constitucional, sua tese de doutorado, e Curso de direito constitucional, que escreveu com os professores Gilmar Ferreira Mendes e Inocêncio Mártires Coelho.

Os Constitucionalistas: O que fez o senhor cursar Direito?

Paulo Gonet: Quando eu estava na graduação, eu queria ser diplomata. Na época que eu entrei no Direito foi em 1979. Então eu me lembro que todos os meus amigos foram fazer Engenharia. Eu me lembro até que uma vez teve uma reunião, eu estudava no Objetivo, era o terceiro ano e eles gostavam de reunir um grupo de alunos para preparar para o ITA. Pegavam lá os alunos que tinham as melhores notas em exatas e eu estava nesse grupo. E aí foram perguntando para cada um: “O que você quer ser?” “O que você vai fazer?” “Eu quero fazer engenharia aeroespacial.” “Eu vou fazer engenharia interplanetária.” “E você?” “Vou fazer Direito.” “Mas Direito?” “Vai decorar lei?” “Isso é desperdício de talento”. “Obrigado, só desperdiça quem tem.” Naquela época o Direito era muito pouco valorizado. Vivíamos num momento em que não fazia muito sentido alguém ficar especializado em Direito. Mas eu queria fazer Rio Branco para ser diplomata e tinha que fazer dois anos de um curso. No primeiro ano de Direito eu já comecei a me entusiasmar tanto por aquilo que me esqueci completamente. Escolhi o lugar certo. E fui ficando. O Direito é um lugar ótimo para quem gosta de ler, gosta de escrever, gosta de raciocinar, sem aquelas prisões da Matemática, em que você só tem uma resposta certa. No Direito você pode contornar dificuldades, ser mais criativo, construir. E tudo isso foi me fascinando.

Os Constitucionalistas: Mais tarde o senhor se tornou membro das bancas dos concursos de admissão à carreira de diplomata. O senhor se sentiu realizado?

Paulo Gonet: Pois é, foi muito engraçado isso. Em 1985, o Márcio Garcia [hoje professor de Direito Constitucional Internacional do IDP] tinha sido convidado para participar das bancas de acesso ao Rio Branco. Aí ele me procurou, pois nós dois tínhamos sido, em momentos diferentes, assessores do Ministro Rezek, que foi a influência mais importante na minha vida profissional. Assim que me formei, ele me chamou para ser assessor dele no Supremo. Quando eu encontro com ele, eu digo: “Olha Ministro, aquilo valeu mais que qualquer pós-doutorado”. E o Márcio depois foi assessor dele também. E nós dois éramos amigos. Ele foi chamado para esta banca e aí ele disse: “Vamos lá juntos? Eu fico na área de Internacional e você na de Constitucional.” E ficamos onze anos nesta banca. Ele continuou e eu cansei, saí depois.

Os Constitucionalistas: Foi carrasco de alguém?

Paulo Gonet: Não, a gente era muito bonzinho. Uma coisa engraçada é que pegávamos a prova do Rio Branco, que era dividida em várias etapas. Nós pegávamos a penúltima. A última prova era de Economia e a penúltima era de Direito. Restavam [nesta fase] só os melhores candidatos. Era raríssimo alguém reprovar, o que dava certa tranquilidade.

O problema dos direitos fundamentais hoje é a falta de um fundamento fora dos direitos fundamentais. É a falta de um fundamento transcendental

Os Constitucionalistas: Qual é o conceito dos direitos fundamentais? Quais foram os fatos históricos mais importantes na determinação desse conceito?

Paulo Gonet: Os direitos fundamentais, como compreendemos hoje, é fruto da evolução do pensamento político, da concepção da relação do indivíduo com o poder público, com o Estado e do pensamento de vários humanistas, iluministas e até de filósofos de linhas religiosas. Tudo que vinha enfatizando a importância da dignidade da pessoa, no plano da criação, e a necessidade de proteção dessa dignidade contra poderes que fossem faticamente mais relevantes, que tivessem mais força e pudessem aniquilar esses indivíduos. Aos poucos foi se entendendo que era necessário que o Estado se retraísse, não interferisse sobre essa esfera de autonomia, sobre esses direitos que seriam inerentes à própria dignidade. Os direitos fundamentais teriam começado com a Independência Americana, com a Revolução Francesa, embora, é claro, já houvesse outras postulações de proteção do indivíduo antes disso, mas eram sempre ligadas a certas situações da pessoa. A Magna Carta do Rei João Sem Terra, de 1215, não era, na verdade, um catálogo de direitos universais. Era uma imposição que os barões fizeram ao Rei para que ele respeitasse certas prerrogativas dos barões. Agora, declaração de direitos de todos os homens a gente vai ter em Virgínia, em 1776, e na declaração da Revolução Francesa. Por isso costuma-se dizer que os direitos fundamentais começam aí, no final do século XVIII. Essa história já mostra algumas características do que entendemos como direitos fundamentais. Seriam justamente esses direitos que seriam inerentes à pessoa e que seriam indispensáveis para garantir a ideia de dignidade da pessoa, o seu contato, sobretudo, com os poderes públicos. O grande problema dos direitos fundamentais é o conceito. Nós temos uma noção mais ou menos do que é, mas precisar este conceito é difícil. E por que é difícil? Porque nós não temos mais um fundamento definitivo para os direitos fundamentais. Se a gente tivesse um fundamento seria mais fácil encontrar o conceito.

Os Constitucionalistas: Mas esse fundamento é o quê? É universal?

Paulo Gonet: Pois é. Nem isso temos mais. A gente não sabe se é um fundamento universal, se é local. Outro dia eu lia dois autores muito interessantes. Um escritor católico, que vê as coisas sob esse ângulo religioso, e o outro agnóstico, totalmente desvinculado. E os dois chegavam à mesma conclusão. Isso que eu achei mais interessante. O problema dos direitos fundamentais hoje é a falta de um fundamento fora dos direitos fundamentais. É a falta de um fundamento transcendental. Então o que ficam sendo os direitos fundamentais hoje? O que caracteriza os direitos fundamentais? Não se sabe. E aí, qual é o problema disso? Bom, se os direitos fundamentais são os que estão positivados, então eu posso positivar um direito e posso tirar outros. Entra num relativismo, num critério de oportunidade e num critério político que é justamente o oposto do que os direitos fundamentais pretendem. Eles querem justamente constranger as opções políticas. Perde uma noção fora do sistema para justificar os direitos fundamentais. A única forma de você dizer o que é um direito fundamental é dizer que é o que a Constituição diz que é. Que é o que a gente acaba fazendo. Direito fundamental é tudo aquilo que na hora você diz que é direito fundamental. [Norberto] Bobbio diz que é aquilo que as lutas políticas em cada momento conseguem impor como direito fundamental, o que também é uma coisa que não confere nenhuma força para os direitos fundamentais. Parece que direito fundamental é só aquilo que uma maioria conseguiu num determinado momento. Que a maioria é que está com a força. E os direitos fundamentais são justamente para constranger a maioria.

Os Constitucionalistas: Então temos um risco. Se os direitos fundamentais são apenas aqueles que estão positivados na Constituição, eles perdem o seu caráter de fundamentalidade, não?

Paulo Gonet: Exatamente. Este é o problema. Que fundamentalidade é esta que são os destinatários que escolhem o que são direitos fundamentais? Esse é o drama do momento presente. Os direitos fundamentais têm esse drama. Por que é que nós lutamos por eles?

Quem é vai estabelecer esse equilíbrio entre igualdade e liberdade quando esses dois valores estiverem em atrito?

Os Constitucionalistas: Direitos fundamentais sem fundamento?

Paulo Gonet: Pois é. Direitos fundamentais, mas fundamentais por quê? Essa é a pergunta que ainda está sem uma resposta. Eu me lembro que na aula, não sei qual de vocês levantou, que falou sobre a característica da universalidade. Como é que existe essa característica da universalidade diante da pluralidade de tantas concepções de vida no mundo inteiro? Esse é um drama. Se você não tem um fundamento fora do sistema, então como é que você pode dizer que certos direitos o mundo inteiro tem que respeitar? Que a ONU pode ir lá e invadir o país, o Conselho autorizar uma intervenção militar para proteger os direitos fundamentais? E não faz por quê? Porque tem que ser assim. Esse que é o problema.

Os Constitucionalistas: Como resolver então o problema da colisão de direitos fundamentais? Os direitos fundamentais são absolutos?

Paulo Gonet: Quando o Estado começa a reparar que não pode ficar afastado da sociedade civil, que tem que interferir na sociedade por meio dos direitos sociais, algumas das liberdades vão entrar em atrito com esses novos direitos sociais. O Estado vai ter que agir e, para agir, vai interferir sob o âmbito das relações dentro da sociedade civil. Que era aquilo que os direitos de primeira geração queriam garantir como absolutamente imunes ao próprio Estado. Então, agora, o Estado vai definir o que são direitos fundamentais. Começam os grandes debates. É possível conciliar liberdades com direitos sociais, os direitos de abstenção com os direitos positivos? Como fazer isso? Vai ter que haver uma conciliação entre esses direitos. Não é que esses direitos sociais tenham neutralizado os direitos de primeira geração. Um dado interessante: às vezes esses direitos sociais servem para criar direitos típicos de primeira geração que não haviam sido criados. Querem um exemplo? O direito de associação. O direito de associação, na Europa, demorou a ser reconhecido. Por quê? Era ligado à associação religiosa, que a Revolução Francesa desconfiava. E a associação política também não fazia sentido, porque era o Parlamento que era a voz do povo. Não poderia haver outros grupos para ser a voz do povo. Então o direito de associação não era garantido no primeiro momento. Vem com os direitos sociais, como meio para que os direitos sociais possam ser reclamados. Esses direitos sociais não só condicionam os típicos direitos de defesa, aqueles de primeira geração, como somam direitos de defesa, como somam direito de abstenção do Estado.

Os Constitucionalistas: No Estado Pós-Social, como o Poder Judiciário pode transmitir segurança ao cidadão comum para que a ordem social continue estabelecida?

Paulo Gonet: Esse que é o grande desafio. Não há uma fórmula. Tudo vai depender de uma opção política. Quem é que vai fazer? Quem é que vai tomar essas decisões sobre soluções desses conflitos, dessas colisões que irão acontecer entre pretensões do Estado atuar como fator de igualdade social e pretensões a que Estado respeite a liberdade dos outros? Quem é que vai estabelecer esse equilíbrio entre igualdade e liberdade quando esses dois valores estiverem em atrito?

Você vai chegar à conclusão que às vezes duas soluções são aceitáveis, são racionais. Se o legislador escolher uma delas, o Judiciário não deve criticar. Se criticar, ele realiza um ativismo judicial. E um ativismo negativo

Os Constitucionalistas: Estamos diante de um impasse?

Paulo Gonet: Estamos diante de um problema. Um problema de ordem política. Quem é que vai tomar essa decisão? No sistema que nós temos, quem tem que tomar em primeiro lugar essa decisão é o próprio constituinte. Então o próprio constituinte já pode fazer essas definições. Ele não faz. Ele só proclama dois direitos, que, incidindo num caso concreto, dão resultados antagônicos. Como vai se resolver isso? O primeiro a ser chamado a resolver isso somos nós, por meio dos nossos representantes eleitos para este tipo de tarefas, que são os parlamentares. Estas colisões, elas podem ser resolvidas pelos legisladores. Eles têm legitimidade para isto, mesmo que o constituinte não tenha previsto expressamente esta possibilidade. Mesmo que não haja uma reserva legal desses direitos. Agora, não há nenhuma garantia de que o legislador vá fazer uma boa ponderação entre esses direitos. Ele pode agir também de modo arbitrário. Ele pode ferir um direito fundamental. E aí, quem vai controlar o legislador? Vai ter que ser o Judiciário. O Judiciário vai agir para controlar as opções feitas pelo legislador e para realizar aquelas ponderações que são necessárias para resolver um caso concreto e que não foram efetuadas anteriormente pelo legislador. O Judiciário atua como crítico do legislador e como primeiro a fazer uma ponderação. Quando ele age como crítico é que está o grande problema. Qual é a margem de discricionariedade que se deve conferir ao legislador para ele fazer essa ponderação, de qual dos dois direitos que estão em atrito deve ter prevalência? Se reconhecermos, em primeiro lugar, que quem deve tomar essa decisão é o legislador, se essa decisão for razoável, o Judiciário não deve criticar. Mas quando é que essa decisão vai ser razoável? Aí é que vêm os movimentos, sobretudo partindo do [Robert] Alexy, sobre os critérios para você descobrir a razoabilidade da interferência do Estado sobre um direito fundamental em favor de um outro direito que está em colisão. Então você tem que ver qual é o peso de cada direito fundamental no caso concreto. Qual é o peso abstrato de cada um deles. Você vai chegar à conclusão que às vezes duas soluções são aceitáveis, são racionais. Se o legislador escolher uma delas, o Judiciário não deve criticar. Se criticar, ele realiza um ativismo judicial. E um ativismo negativo. Por quê? Porque ele toma uma tarefa que não é dele. Agora, se aquela decisão do legislador não é razoável, aí cabe, por conta do sistema de separação dos poderes, ao Judiciário criticar, porque o legislador não é o dono dos direitos fundamentais, ele não pode dispor contra os direitos fundamentais. Então o Judiciário, para proteger os direitos fundamentais, julga inconstitucional a lei que efetuou uma ponderação imprópria de direitos fundamentais em colisão.

Os Constitucionalistas: O que significa ponderar na jurisdição constitucional?

Paulo Gonet: Quando você tem dois direitos fundamentais em colisão, ponderar significa que você vai ter que dar preferência a um em detrimento do outro no caso concreto. Em qualquer hipótese, é isso que vai acontecer. Então, naqueles casos clássicos, de liberdade de expressão e privacidade. Vai ter que ceder em um. No caso concreto, um vai perder. Agora, qual deve perder, qual deve ser rejeitado? Nesse caso é que entram a ponderação e o critério também do princípio da proporcionalidade. Vamos ter que verificar qual a importância destes dois direitos no caso concreto.

Quando você tem dois direitos fundamentais em colisão, ponderar significa que você vai ter que dar preferência a um em detrimento do outro no caso concreto

Os Constitucionalistas: Naquele contexto.

Paulo Gonet: Naquele contexto. Naquele contexto e mais: à vista do conteúdo do significado, da importância da função dos dois direitos fundamentais. Aí nós vamos ter que descobrir no fundo qual deles é o mais importante para chegar a uma solução justa. O grande drama, mas é um drama que a gente não tem como escapar, é que não existe critério jurídico de escolha. Nesse instante, vai haver um voluntarismo. O máximo que se pode conseguir é estabelecer que o juiz, na hora que ele faz essa escolha, que ele fundamente da forma mais clara, mais transparente, até para possibilitar que aquela decisão possa ser criticada num espaço curto e, mais adiante, talvez ser reformulada.

(continua)



2 Comentários

  1. […] This post was mentioned on Twitter by EDUARDO TAJRA, Luciana Baldoino and Rodrigo Lago, Israel Nonato. Israel Nonato said: "O legislador não é o dono dos direitos fundamentais" http://migre.me/10Hh1 […]

  2. Giovani Spinelli de Almeida disse:

    Ele é um mestre! Belíssima e grandiosíssima entrevista!!